Corpo em trânsito: ensaios sobre imagem/memória e cidade | Andréia Casa Nova Maia

O livro Corpo em trânsito, publicado pela editora Telha, no Rio de Janeiro, tem origem no curso de pós-graduação Memória, História e Patrimônio, ministrado por Andréa Casa Nova, professora de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com o doutorando Wladimyr Sena Araújo, no contexto da crise sanitária global do SARS-CoV-2. Os organizadores possuem formação na área da história, mas com interesses bastante diversificados. Andréa Casa Nova Maia chefia o laboratório Imagem, Metrópole, Arte e Memória (Imam), assim como participa do Laboratório de Estudos da História dos Mundos do Trabalho (Lehmt), ambos na UFRJ. Em suas pesquisas atuais, trabalha com história e imagem, circulação de ideias e cultura visual, arte urbana e movimento operário. Wladimyr Sena Araújo possui graduação em história pela Universidade Federal do Acre, fez especialização em artes cênicas, mestrado em antropologia social pela Unicamp e, no momento da escrita desta resenha, é doutorando na UFRJ.

Popularmente conhecida como Covid-19, a doença tirou a vida de muitas pessoas ao redor do mundo, sendo o Brasil muito afetado pela pandemia, dada a emergência sanitária conjugada com a irresponsabilidade de autoridades públicas. Nesse contexto, os cursos de pós-graduação estavam experimentando, por necessidade e de maneira improvisada, sua versão virtual. Assim, no ano em que o livro estava sendo produzido, as aulas virtuais foram um desdobramento das medidas preventivas de distanciamento social, isolamento e quarentena devido à pandemia. Em meio a incertezas e traumas, surgia uma nova possibilidade de diálogo, visto que aquela modalidade possibilitou encontros até então muito difíceis de se concretizarem, mas também bastante desejados. As aulas virtuais estreitaram as fronteiras continentais do Brasil, possibilitando uma troca de saberes, olhares e pesquisas entre os programas de pós-graduação, e desse encontro surgiu a presente coletânea, composta por dezesseis textos de mestrandos e doutorandos que participaram do curso, além do artigo introdutório escrito pelos organizadores.

O livro, exatamente por esse contexto de criação, tem um caráter ensaístico inevitável. Tal dimensão também se deve ao fato de contar com pesquisas em diferentes graus de desenvolvimento. Ele foi construído por meio da combinação de fragmentos das pesquisas dos pós-graduandos com as reflexões possibilitadas pela bibliografia do curso, que englobava uma seleção de autores como Sennet (2008), Boym (2001), Benjamin (2004; 1985), Warburg (2012), Georges Didi-Huberman (2017, 2016, 2013), entre outros.

Essa característica ensaística não diminui em nada a qualidade da produção, pelo contrário, atribui-lhe coerência e consciência frente às influências teóricas que propõe, e ousadia intelectual, posto que deixa claro ao leitor e à leitora que a publicação pretende ser construída como um mosaico, como um registro possível das múltiplas camadas no tempo e no espaço vivido e dos significados possíveis de serem carregados pelas imagens propostas. Em outras palavras, ele mesmo se apresenta como um registro de seu tempo e de seus conflitos, sendo carregado de significados mutantes e nem sempre harmoniosos.

Os trabalhos possuem recortes, temas e temporalidades muito distintas, o que acentua a ideia de constituírem uma multiplicidade de “atlas”. As imagens propostas pelos autores e seus significados, seja em sua leitura artística, psicológica ou como parte constituinte do espaço, recebem um olhar questionador e se tornam parte formadora de um ambiente físico e imaginário com profundas implicações na construção dos mundos sociais que compartilhamos na sociedade local e global. Temas atuais como a xenofobia, o machismo, o nacionalismo, a marginalidade, a violência, a racialidade, as expressões artísticas, entre outros assuntos, são trabalhados a partir da forma como são apresentados e como memória. Esse objetivo se justifica porque interessa à coletânea refletir sobre os conflitos que cercam os materiais de pesquisa, tal como eles são lembrados através do tempo e em suas transformações.

Do ponto de vista metodológico, a interpretação das imagens propostas por cada autor ou autora é parte fundamental para a construção dos textos. Contudo, essas imagens não são apresentadas de maneira independente do seu espaço físico, social e psicológico. Existe um esforço para entender o aspecto semiótico das imagens como parte da formação da coletividade. Por isso, a história oral também desponta como uma metodologia importante na maioria dos textos, visto que integra as percepções da imagem com as narrativas possíveis sobre elas. A ênfase na interação, na multiplicidade e na transversalidade coloca em evidência a questão dos estudos urbanos e das múltiplas possibilidades de representações, vivências e identidades.

O artigo inicial, assinado pelos organizadores, traz os conceitos que inspiraram os outros artigos da coletânea, com o objetivo de que cada um deles criasse seu próprio “atlas” por meio da seleção de imagens e suas problematizações sob a influência de Aby Warburg. O arquivo, como um instrumento ativo e de composição diversificada, a partir das dinâmicas dos sujeitos, ganhou características subjetivas inspiradas pelos textos de Walter Benjamin e Didi-Huberman. Os temas do corpo, da cidade e das imagens analisados em conjunto instigam a pensar de maneira transversal e atravessada pela sensibilidade das memórias múltiplas e sobrepostas. A tensão entre a memória e a nostalgia, conforme pensada por Svetlana Boym (2001), e os conceitos de “nostalgia restauradora” e “nostalgia reflexiva” revelam formas de operar na memória individual e coletiva. Alguns desses autores ainda são pouco trabalhados no Brasil, de forma que este primeiro artigo auxilia os leitores e as leitoras a entenderem os caminhos e os desafios teóricos perseguidos em cada artigo que compõe a coletânea.

O segundo texto, que foi assinado por Wladimyr Sena Araújo, chamado “Ayahuasca, imagens e mundos”, propõe, através de imagens projetadas, mesmo em espaço psicológico, aproximar traços da pajelança cabocla e da umbanda, das religiões ayahuasqueiras no Brasil. Esse paralelo se faz por meio por meios de construção imaginária de locais encantados, cujos traços podem ser encontrados em muitas representações religiosas populares. Essa perspectiva faz dialogar um mundo imaginário com um mundo físico, as influências dos povos originários amazônicos com a religiosidade urbana que mescla influências africanas.

Em seguida, temos o texto de Carla Teodoro Costa, sobre “Comunidade caiçara do Bonete, Ilhabela”. Neste artigo temos a questão da preservação como uma disputa discursiva e mercadológica. Preservar é fundamental para a economia pesqueira local, mas é importante também para a manutenção de um turismo elitista e segregador. Ilhabela tem sido ponto de conflito entre a população local e as diferentes modalidades de turismo, o que promove grande transformação na paisagem e no mercado local. A imagem usada pela autora para ilustrar e problematizar esse conflito é a canoa versus o veleiro.

O artigo de Paulo Holanda, “Conflitos do vestir no espaço urbano”, traz a imagem das primeiras indígenas vacinadas contra a Covid-19. Vale ressaltar que, além da identidade indígena, as mulheres em questão eram enfermeiras e atuavam na linha de frente no combate à pandemia. O uso de elementos nativos nas vestimentas das profissionais registradas nas fotos da ocasião da vacinação é carregado de significados que contribuem para a visibilidade e o empoderamento da luta dos povos originários no espaço urbano, na mídia, e reforça o fortalecimento dos povos indígenas frente às constantes ameaças e ao apagamento.

A discussão levantada por Ingrid Gomes Ferreira no artigo “Imagens de uma cidade situada entre a montanha e o mar” aborda de maneira mais central a questão do patrimônio e da paisagem carioca. A autora buscou nas periferias e na cultura popular a imagem de um Rio de Janeiro alternativo, exótico e curioso aos olhares externos, mas ainda visto com reservas pelo setor turístico. O imaginário da violência é penetrado pela arte urbana e pela beleza da simplicidade do cotidiano da periferia.

Em uma perspectiva global, o trabalho de Paulo Henrique Torres Valgas, “Quando os tempos se encontram na cidade”, analisou o movimento conhecido como Urban sketching, uma comunidade global de desenhadores dedicados à prática do desenho nos diferentes espaços das cidades. Esse movimento traduz os conflitos dos espaços em forma de arte urbana, fazendo dialogarem diferentes experiências e vivências nas urbes.

O texto de Leonardo José Iorio, intitulado “Cenários da sociedade boêmia”, teve como material a perspectiva da boemia através do tempo. O autor relacionou imagens de pubs e tavernas dos séculos XVII e XVIII com os registros dos chamados “baixos”, áreas de conurbação de bares e boates entre os anos de 1970 e 2010 no Rio de Janeiro.

Ainda sobre o Rio, e também buscando pensar as “sobrevivências” de questões que conectam o passado e o presente, Lenna Carolina da Silva Solé Vernin, em “O Campo de Santana através do tempo, espaço e imagens”, debruçou-se sobre a vivência urbana e o cotidiano e mostrou que as imagens e os saberes históricos acumulados são fatores de constituição do cotidiano.

O tema da arte ressurge com Isabella Daiub através da fotografia, de poemas e das atividades do grupo Mujeres Libres da Espanha, no artigo “Mulheres cercadas, imagens de guerra”. A autora buscou capturar as vivências e os sentimentos das mulheres no contexto da Segunda Guerra Mundial e da Revolução Espanhola. Essas imagens e narrativas se projetam do passado para o presente, inspirando e emocionando as feministas do presente século, conectando-se a lutas políticas atuais e às condições de conflito, por exemplo, com relação ao drama das mulheres curdas.

Na coletânea houve espaço também para discutir o tema da Palestina e do Estado de Israel. Nina Galvão escreveu o artigo “Memórias da catástrofe palestina histórica”, e nele articula imagens que mostram a disputa pelo território e a incoerência sionista com sua própria história, visto que ao desenvolver uma “nostalgia restauradora” em muito reproduz com os palestinos as dores sofridas pelos judeus no passado. As imagem trazidas, como fotografias, grafites, mapas e imagens cinematográficas, retratam o tema do exílio e da permanência das comunidades antagônicas no território.

O tema do terrorismo de Estado encontrou espaço no texto de Bárbara Geromel, “A violência de Estado no Uruguai, Chile e Argentina nas décadas de 1970 e 1980”. A autora trouxe imagens cinematográficas para mostrar a ressignificação e a representação da violência e da repressão das ditaduras na memória social e do espaço.

No artigo seguinte, foi tratado o tema da escravidão em seu processo de discussão legal e da tensão racial, especificamente a questão das mulheres. Fábio de Mello Baptista, em “Estratégias de sobrevivência das mulheres na freguesia de Santana (1850-1890)”, faz dialogarem os debates do período: fim do tráfico de escravos, imigração, migrações internas e a condição cotidiana das mulheres na área da corte imperial. O autor se debruça sobretudo em imagens do espaço público, mostrando uma extensão entre o espaço doméstico e o espaço da rua.

Através da arte de bordar, Elizabeth Lara Cantoni Ferreira continuou com o tema das mulheres no artigo “O avesso da trama”, no qual trouxe a imagem dos pontos de bordado e seu significado histórico frente a novas formas de bordar na atualidade, considerando a influência das redes sociais. Um argumento importante do texto gira em torno de pensar o bordar como expressão de posicionamentos políticos e sociais. Em outras palavras, não permitir que a arte seja esquecida. Ainda que ela venha por meios e necessidades distintas daquelas das gerações passadas, é carregada de significados que aparecem nas imagens trazidas pela autora.

Outra interseção entre o tema das artes e das mulheres aparece no artigo de Danielle Maia Francisco, que estuda a obra da artista negra contemporânea Aline Cozta e sua exposição chamada “Sob a potência da presença”, realizada no Museu da República, no Rio de Janeiro, em fevereiro de 2020. No texto, é trabalhada a questão da ocupação do espaço público e dos meios intelectuais por pessoas negras. As imagens analisadas são os materiais produzidos e exibidos pela artista na exposição.

O artigo de Brenda Leite trouxe para o leitor e para a leitora as impressões de Manuel Bandeira sobre sua cidade natal, Recife, e o local onde passou grande parte de sua vida, o Rio de Janeiro. No artigo “Imagens da nostalgia, imagens e cotidiano”, a autora resgata as crônicas do artista modernista para problematizar em suas memórias a questão da nostalgia, mostrando que a relação dele com o espaço provocou sentimentos diferentes frente às mudanças físicas e sociais de cada cidade.

Ainda no sentido de pensar a memória, mas também as questões do arquivo e de seu tratamento, Rafael Cal, a partir do livro de literatura argentina O espírito dos meus pais continua a subir na chuva, problematizou como a literatura consegue capturar imagens de uma memória histórica ficcional, mas também carregada de sentido. A repressão e o medo durante a ditadura argentina se descortinam da memória infantil do eu-lírico para ganhar novos sentidos através do contato com os papéis do pai, que trabalhava como jornalista na ditadura, e das conversas com a irmã mais velha no tempo presente do texto.

Por último, temos o artigo de Anna Lygia Stavale Frazão, “Barroquismos”. Nele a autora estuda os sentidos do barroco português e por meio de suas formas mostra que existem traços muito particulares da ornamentação que diferem muito de outros espaços na Europa, mesmo quando pensamos na Península Ibérica. Essas peculiaridades dizem respeito às características próprias de Portugal. Alguns traços típicos do barroco português são encontrados no Brasil, contudo também com características próprias da colônia. Por exemplo, a pintura de figuras religiosas de pele escurecida, pelo mestre Ataíde, mostra a arte barroca muito diversa em cada espaço. As imagens trazidas por Anna expressam essas diferenças, que fazem com que o barroco não possa ser entendido como um estilo único.

O livro termina sem um posfácio que ajude a entender a disposição dos artigos ou que proponha um sentido único à sua ordem. Certamente, isso é parte do interesse dos organizadores: permitir que o leitor e a leitora tenham uma postura ativa frente à coletânea. Os artigos são inovadores e as perspectivas teóricas propostas ainda pouco trabalhadas no Brasil, de forma que a obra oferece amplas possibilidades de análise e de aplicação teórica, o que favorece a inovação e a valorização da pesquisa.

Referências

BENJAMIN, Walter. Imagens do pensamento. Lisboa: Assírio Alvin, 2004.

BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Obras escolhidas, 1).

BOYM, Svetlana. Cities and re-invented traditions. In: BOYM, Svetlana. The future of nostalgia. Nova Iorque: Basic Books, 2001.

DIDI-HUBERMAN, Georges. A disposição às coisas. Observar a estranheza. In: DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tomam posição. O Olho da História, v. I. Belo Horizonte: UFMG, 2017.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Remontar (remontagem) do tempo. Caderno de Leitura, 46. Chão de Feira, 2016.

DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.

SENNET, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.

WARBURG, Aby. Atlas Mnemosyne. Madrid: Akal, 2012.

Resenhista

Flavia Ribeiro Veras – Doutora em História, Patrimônio e Bens Culturais pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (Cpdoc/FGV). Professora do Instituto Federal do Pará (IFPA), Brasil.  E-mail: verasf06@gmail.com

Referências desta Resenha

MAIA, Andréa Casa Nova; ARAÚJO, Wladimyr Sena (Orgs.). Corpo em trânsito: ensaios sobre imagem, memória e cidade. Rio de Janeiro: Telha, 2021. Resenha de: VERAS, Flavia Ribeiro. Corpo em trânsito: ensaios sobre imagem, memória e cidade. Acervo. Rio de Janeiro, v. 36, n. 1, p. 1-7, jan./abr. 2023. Acessar publicação original [DR]

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