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Corpo e alma: Notas etnográficas de um aprendiz de boxe | Loïc Wacquant

O livro “Corpo e Alma” do francês Loïc Wacquant foi publicado no Brasil em 2002 pela Editora Relume Dumará2. E rapidamente vem se tornando referência na abordagem acadêmica do meio esportivo. Essa repercussão se explica pela inovadora proposta: misturar a experiência etnográfica do campo, a análise sociológica do espaço social do gueto norte americano (em Chicago) e uma bela escrita que bebe na fonte dos clássicos da literatura do boxe norte-americano3. A partir desses instrumentos teóricos, o autor busca compreender o ethos do boxeador da academia de boxe, quais são as táticas (MAUSS, 2005) e as práticas corporais dos lutadores. Para melhor compreender essas disposições, Wacquant adota a chamada “participação observadora” e decide a aprender a boxear.

A princípio, o sociólogo pretendia realizar uma pesquisa sobre os guetos de Chicago. Mas por caprichos da circunstâncias preliminares de sua pesquisa, acabou sendo levado à Woodlawn Boys Club, famosa academia do gueto de Chicago. Através dessa surpresa etnográfica, passou a se estudar as relações entre os freqüentadores dessa academia e o ringue de boxe.

O livro “Corpo e alma” foi dividido em três seções. Na primeira e mais extensa, “A rua e o ringue”, o autor estuda como se forma as práticas sociais e corporais e do boxeador. Na segunda, “Uma noitada no Studio 104”, acompanha a equipe do Woodlawn Boys Club no trajeto de uma luta com o boxeador profissional da academia, Curtis Strong. E na terceira e última parte, “Busy Louie” nas Golden Gloves, apresenta a preparação de Wacquant para uma luta no prestigioso torneio amador, Golden Gloves.

Nessa primeira parte, o autor tenta desvendar os caminhos e as escolhas da vida de boxeador. A partir das importantes referências traçadas por Pierre Bourdieu (2004a; 2004b), as disposições e lógicas do boxeador estão construídas através de um referencial: o seu corpo, ou melhor, o seu capital-corpo. Assim, constrói-se sua rígida preparação física, a sua vida fora do ringue (evitar os abusos da alimentação, do sexo) e principalmente controlar a gestão da violência. A prática do boxeador é sempre calculada; é preciso administrar o seu corpo para o máximo rendimento no ringue. Tal procedimento é calcado pela crença de que esses boxeadores nasceram para esse esporte e que devem buscar esse equilíbrio corporal. Wacquant, com destreza, ilumina a busca por tal equilíbrio a partir dos atores retratados: como românticos soldados espartanos, acreditam e buscam excelência no seu ofício e escapam da dura realidade do gueto4.

Na segunda parte, o pesquisador francês descreve uma noite no Studio 104, boate-bar em que Curtis Strong, lutador Professional do Boys Club, irá enfrentar um oponente. Essa jornada será compartilhada pelos assistentes da academia, Cliff e Eddie e por uma figura central da narrativa, o treinador Dee Dee. Wacquant também encontrará figuras marcantes no posicionamento social do universo do boxe: o matchmaker, que organiza as partidas de boxe, o cutman, responsável pelos curativos dos lutadores durante as partidas e o lutador “aventureiro” que “sabe que nunca será campeão, mas que é capaz de combater mais ou menos qualquer um” (WACQUANT, 2002, p. 226).

Em uma terceira e última seção, descreve-se a preparação e a partida amadora do pesquisador francês no torneio “Golden Gloves” de Chicago. Wacquant experimentou os sacrifícios físicos e mentais que os boxeadores aplicam no seu capital-corpo. Na sua única luta, acaba sendo derrotado por decisão de pontos. A partir de sua participação observadora, o pesquisador francês pode, em primeira mão, experimentar o “habitus”5 que norteia os boxeadores retratados no livro: a junção entre teoria e prática, ou seja, a união entre corpo e alma. É preciso aplicar essas disposições para participar do universo do boxe.

Por fim, acredito que “Corpo e Alma” traz uma grande contribuição para os estudos sociais do esporte. É notável que a reconstrução do espaço social que norteia a prática do boxe: a construção de crenças, valores e normas dos boxeadores de Woodlawn Boys Club. O que faz essa experiência de pesquisa tão única é a inserção e o fascínio que o boxe exerce sobre o autor; Wacquant preenche a escrita de metáforas poéticas descritiva da chamada “Nobre Arte”(um apelido carinhoso para o boxe). Essa abordagem bela e singela que foge dos padrões acadêmicos dá ao livro uma coloração única que vai além dos limites das Ciências Sociais.

Notas

2 Infelizmente a versão brasileira está há alguns anos fora de catálogo.

3 Wacquant constantemente faz referência às interessantes obras literárias do boxe nos EUA como Gardener (1969) e sua excelente versão cinematográfica dirigida por John Huston: Cidade das Ilusões (Fat City, 1972), Oates (1987) e Plimton (1972).

4 É recorrente que os praticantes de boxe de Woodlawn Boys Club reconheçam que o boxe os tenha “resgatado” de possível escolha de vida marginal. Até mesmo o membro mais antigo e mais respeitado da academia, o treinador Dee Dee reconhece que o boxe o salvou de uma “vida no crime”.

5 “Habitus” é um conceito popularizado por Pierre Bourdieu em que se delimita um sistema de disposições inconscientes em que se baseiam certos grupos sociais para a construção de suas ações.

Referências

BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In: ORTIZ, Renato (org). A sociologia de Pierre Bourdieu. São Paulo: Editora Olho D’água, 2004a.

______. Programa para uma sociologia do esporte. In: ______. Coisas Ditas. São Paulo: Editora Brasiliense, 2004b.

GARDENER, Leonard. Fat City. Nova York: Vintage, 1969.

OATES, Joyce Carol. On boxing. Garden City: Doubleday, 1987

MAUSS, Marcel. As técnicas do corpo. In: _____. Sociologia e Antropologia. Rio de Janeiro: Cosac-Naify, 2005.

PLIMPTON, George. Shadowbox. Nova York: Putnam, 1972.

WACQUANT, Loïc. Corpo e alma: Notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.


Resenhista

Gabriel Chavarry Neiva – Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia – PPGSA/IFCS/UFRJ. E-mail: gneiva10@gmail.com


Referências desta Resenha

WACQUANT, Loïc. Corpo e alma: Notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. Resenha de: NEIVA, Gabriel Chavarry. Recorde: Revista de História do Esporte, v.2, n.2, dez. 2009. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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