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Cooperação Sul-Sul/ Democracia e Decolonialidade: estudos sobre os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOPs) | AbeÁfrica – Revista da Associação Brasileira de Estudos Africanos | 2020

O presente Dossiê surgiu a partir do contato dos organizadores com a discussão sobre a realidade social, cultural, econômica e política dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, os PALOPs, no âmbito da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), que completou dez anos em 2020, e cujo projeto se relaciona à cooperação solidária para o desenvolvimento entre o Brasil países de África e Ásia através da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). A pluralidade cultural e social destes países, suas trajetórias políticas de independência e transição democrática, somada aos laços históricos e políticos de cooperação cultural, educacional e econômica com a sociedade brasileira vem alimentando uma rede de estudos, de pesquisas e de mobilidade que consolidam o destaque destas sociedades na área de Estudos Africanos no Brasil.

Com base nesta experiência, pautamos a necessidade de congregar reflexões teóricas e estudos empíricos considerando dois aspectos: 1. as diversas disciplinas das Humanidades (Antropologia, Ciência Política, História, Relações Internacionais e Sociologia, Geografia, Filosofia), em uma perspectiva que relacione Cooperação Sul-Sul, Democracia e Decolonialidade, no sentido de um fazer acadêmico crítico e de qualidade, tendo em vista um desenvolvimento emancipatório; 2. a maior diversidade possível de nacionalidade, etnia/raça e gênero nas contribuições recebidas. Nesse sentido, embora não tenhamos conseguido contemplar todos os PALOPs, o presente número reúne reflexões e estudos de brasileiros(as) e africanos(as) de/sobre Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau e Moçambique, sem perder de vista possibilidades de comparações com o Brasil e visadas mais amplas sobre o conhecimento produzido sobre África.

O texto de abertura, “Pesquisa em e sobre África no século XXI: África, africanos e africanistas”, de Cláudio Alves Furtado, procura justamente descrever e analisar as condições institucionais, políticas e epistemológicas do conhecimento produzido sobre África por pesquisadores africanos e por africanistas. O autor indica que o número de cursos relacionados aos Estudos africanos e o volume de pesquisas sobre o continente africano e suas diásporas se desenvolveram de maneira crescente ao longo das últimas décadas, articulados em duas direções principais: de um lado, a objetivos estratégicos de países europeus, americanos e asiáticos, em uma nova “corrida à África” por empresas internacionais de ensino superior em um processo mais vasto de (neo)liberalização das economias africanas e da reforma das universidades públicas africanas; e, de outro, a construção de novos olhares e estudos a partir das múltiplas comunidades diaspóricas africanas nas Américas, na Europa e em Ásia, que possibilitariam fissuras e interstícios no sistema de produção de conhecimento vinculados ao sistema hegemônico de representações estáticas e limitadas sobre África, decorrentes das relações neo(coloniais) Norte-Sul. A sustentação emancipatória destas novas perspectivas, entretanto, estaria dependente da construção de relações não assimétricas entre africanistas e africanos, através da superação de entraves para uma colaboração relevante para a autonomia da produção de conhecimento em África.

Em “Bandung e a solidariedade afro-latino-asiática: Nascimento, crise e as possibilidades descoloniais da cooperação Sul-Sul”, Vico Melo narra o processo de consolidação das redes de solidariedade Afro-Latina-Asiática nas relações internacionais ao longo dos séculos XX e XXI, ressaltando os principais marcos políticos (Congressos, Conferências e Acordos) da Cooperação Sul-Sul. O autor ressalta como a formação de novas coalizões internacionais entre “países periféricos”, “semiperiféricos” e “potências emergentes” aconteceram pelo interesse compartilhado de contra-hegemonia na expectativa de maior liberdade de atuação global, não subordinada às “grandes potências” e constituem a base política e institucional para uma perspectiva problematizadora da “história oficial” moldada pela colonialidade.

Em “As raízes sociais da violência na sociedade moçambicana contemporânea”, Joaquim Miranda Maloa demonstra outro aspecto da complexidade da democracia em Moçambique: as relações entre o processo de formação do Estado Nacional pós-colonial e práticas violentas, como a guerra civil (1977-1992) e políticas de controle estatal – as Aldeias comunais, a Operação produção, a Lei de Chicotada e a Pena de Morte -, experiências culturais comuns que também teriam moldado a identidade dos moçambicanos, afetando a realização da democracia no país. Com base em fontes documentais, o autor analisa estratégias de poder do Estado na gestão de ilegalismos, produtora de uma ordem social em que a violência é aceita como algo natural, uma “potencialidade de violência” que afetaria a maneira como a sociedade moçambicana lida com a vida, a autoridade, o mando e a obediência.

Em “Uma perspectiva antropológica sobre o comportamento político e a participação democrática em Moçambique”, Paulo Albino Mahumane propõe uma reflexão antropológica sobre o conceito de democracia e sua operacionalização em países africanos, o que permitiria mapear posições e discursos “a partir de baixo”, ou seja, captar práticas e significados contextuais muitas vezes silenciados em discursos oficiais. Conduzindo o leitor pela perspectiva de uma antropologia da contestação política e dos conflitos envolvendo elementos explicativos do cotidiano para populações locais, como a feitiçaria, o autor demonstra que na “democracia à moçambicana” os processos políticos são mais complexos que um pacote de exigências institucionais e normativas para viabilizar eleições multipartidárias em tempos de neoliberalismo.

Em “Cooperação Sul-Sul: uma visão sobre as relações Brasil-Angola no campo da Educação Superior (2010 – 2020)”, Silviana Fernandes Mariz e Melânia Tomás Baptista de Sousa partem da longa história de relações sociais, culturais e políticas entre Brasil e Angola para analisar como se estabeleceu uma relação de cooperação entre os dois países no âmbito da Educação Superior. As autoras utilizam como fio condutor a análise da estruturação de duas políticas de mobilidade acadêmica de estudantes angolanos(as) em universidades brasileiras – o Programa de Estudantes Convênio – Graduação (PEC-G) e a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) – e, com base em fontes documentais e entrevistas, analisam os limites e as potencialidades das duas experiências considerando a realidade local do estado do Ceará.

Em “Perspectivas e desafios da relação entre Brasil e Angola: (re)definições da Cooperação Sul-Sul?”, Joyce Amâncio de Aquino Alves e Marcelino Correia realçam aspectos históricos da cooperação entre Brasil e Angola a partir do governo Lula, que consolidou uma abertura para a internacionalização de empresas em território angolano. Com base em análise documentais e relatórios da Agência Brasileira de Cooperação e do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, a autora e o autor sugerem uma redefinição conceitual e geopolítica da Cooperação Sul-Sul. Uma redefiniçao que implicaria, entre outras coisas, articulação dos países e convergências em foros multilaterais, contribuindo para a construção de um sistema mundial multipolar e mecanismos institucionais mais equilibrados.

Em “Autonomia local em Angola: sentido e alcance”, Orlando Pedro Quintas analisa a experiência angolana em relação às autarquias locais. Ao desenhar o estado da arte da autonomia local como um princípio estruturante e que deve ser bem compreendido através da estrutura do Estado angolano, o autor incorpora a análise da realidade política de Angola. A autonomia local constituiria condição sine qua non para o êxito da institucionalização das autarquias locais para o desenvolvimento local e sustentável do Estado angolano. Em linhas gerais, o autor critica a forma centralizada do governado angolano e defende propostas de descentralização do governo com autonomia local, mais próximas dos eleitores, mais responsáveis, mais eficazes e eficientes, agregando os interesses dos residentes da localidade.

Em “Entre tradições locais e saberes transnacionais: subsídios para uma leitura Sul-Sul dos comércios de rua de Salvador e de Luanda”, Orlando Almeida dos Santos faz uma análise das conexões socioculturais e históricas entre o continente africano e suas diásporas, traçando um viés comparativo sobre o modus operandi das populações de duas cidades do atlântico: Salvador, no Brasil, e Luanda, em Angola, no tocante às formas como nelas se dá a apropriação dos espaços urbanos para práticas de atividades comerciais “informais”. Com base numa pesquisa etnográfica, dados documentais e empíricos das cidades em questão, o autor analisa as dimensões socioantropológica e transnacional das práticas da economia informal em Salvador e Luanda. O autor também compara, nestas duas cidades negras, as formas como essa categoria de trabalhadores tem se apropriado dos nichos de modernidade e o modo como essa apropriação alimenta e reconfigura as estratégias de sobrevivência tradicionalmente usadas nos dois contextos sociais citados.

Em “Vozes da diáspora cabo-verdiana”, Polyanna Costa traça uma representação da nova roupagem da imigração cabo-verdiana, tendo como fio condutor a análise do escritor cabo-verdiano Germano Almeida, que, ao conceder ao emigrante um lugar de fala, confere-lhe o papel do protagonista de sua própria história vinculada aos laços históricos da construção da nação caboverdiana. A autora demonstra que Germano Almeida dá voz à parcela da população que foi calada durante os movimentos pela libertação nacional: aqueles que eram contrários à independência da colônia africana. Com base na literatura sobre imigração em Cabo Verde e suas diásporas, a autora destaca a questão da mobilidade e os conflitos inerentes à migração. Polyana também atrela seus argumentos em questões identitárias – autoafirmação de ser africano fora de Cabo Verde. Segundo a autora, é geralmente fora de sua terra natal que o indivíduo deixa de se perceber como crioulo para se descobrir africano. O indivíduo que, no período colonial, tinha a ilusão de ser um cidadão português, ainda que de segunda categoria, depara-se com outra realidade que exige a aceitação de uma identidade diferente.

No artigo “Em Guiné-Bissau e Cabo Verde: perspectiva da unidade e ruptura binacional (1956-1980)”, Jean da Silva Empalá e Artemisa Odila Candé Monteiro traçam o panorama histórico da luta de libertação na Guiné-Bissau, desencadeada em conjunto com Cabo Verde, sob a perspectiva da unidade binacional e assente nas acepções históricas dos dois povos que sustentaram a união através dos laços históricos que lhes unem. Os autores se debruçam sobre a ideologia política do PAIGC para libertação da Guiné-Bissau e Cabo-Verde a partir do pensamento de Amílcar Cabral. Os autores enfatizam a relação dos dois países após a independência, entre 1973 e 1980, refletindo sobre rupturas e continuidades no projeto político de unidade entre Guiné-Bissau e Cabo Verde.

Em “Transição democrática na Guiné-Bissau: uma análise sobre a mercantilização da democracia”, Paulo Anós Té e Artemisa Odila Candé Monteiro traçam o estado de arte do processo de transição democrática na Guiné-Bissau destacando a “mercantilização da democracia” no cenário político guineense. Os autores enfatizam fatores exógenos que contribuíram para a liberalização política e econômica no país. Com base em fontes documentais, analisam aspectos como a influência do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional para a liberalização política e a adesão do país ao multipartidarismo. As abordagens evidenciam a ausência de um debate qualificado interno para escolha de um modelo democrático condicionado à carência da estrutura organizacional dos partidos políticos. Os autores consideram que a “mercantilização da democracia” é o resultado da forma como a Guiné-Bissau aderiu ao multipartidarismo, em que a compra ou a venda de voto é o resultado da ampliação dos interesses particulares em detrimento do povo. De acordo com os autores, tal comportamento tem impactado negativamente na consolidação dos princípios democráticos no país.

Agradecemos a todas e todos que colaboraram para a realização do presente Dossiê e convidamos à leitura.


Organizadores

Artemisa Odila Candé Monteiro – Professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB), Ceará.

Francisco Thiago Rocha Vasconcelos – Professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB), Ceará.


Referências desta apresentação

MONTEIRO, Artemisa Odila Candé; VASCONCELOS, Francisco Thiago Rocha. Apresentação. AbeÁfrica: revista da associação brasileira de estudos africanos, v.4, n.4, p. 9-13, abr. 2020. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Itamar Freitas

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