Investigador jubilado do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa (Portugal), Valentim Alexandre é autor de um conjunto de livros e artigos fundamentais sobre o fim do Império luso-brasileiro, a viagem de Portugal para África ao longo de oitocentos e o colonialismo português nos séculos XIX e XX nas suas vertentes política, ideológica e econômica. Depois de se aposentar, dedicou vários anos à pesquisa e elaboração deste livro sobre a evolução do sistema colonial português entre o fim da Segunda Guerra Mundial e 1960 (e de outro, em preparação, centrado no período da Guerra Colonial). A obra é monumental a vários títulos. Não me refiro à dimensão que se traduz em número de páginas, mas à investigação histórica que lhe subjaz e ao contributo decisivo que traz à compreensão da durabilidade do Império, fenômeno que andou a par da durabilidade do Estado Novo português (1933-1974).
É sabido que a escrita da história requer a consulta, mais exaustiva e sistemática possível, de fontes primárias e secundárias. Ciente da quantidade e diversidade de fontes disponíveis para o estudo da questão colonial no pós-Guerra, Alexandre escolheu privilegiar o arquivo Oliveira Salazar, “que reúne uma amplíssima documentação com interesse” para o tema e serve de “filtro, concentrando os materiais que subiam à Presidência do Conselho pela especial relevância que […] lhes era reconhecida” (ALEXANDRE, 2017, p.24). Tendo como principal ponto de observação esse fundo documental, não deixou de recorrer a outras fontes primárias (documentos oficiais impressos, periódicos e publicações da época) e de confrontar a bibliografia que vem sendo publicada em Portugal e noutros países. Cumpre assim enfatizar que um dos grandes méritos deste livro reside precisamente no trabalho com as fontes, um trabalho minucioso, exigente, rigoroso e necessariamente demorado, resultado de uma postura livre e ética, na contramão da exigência académica de pesquisa e publicação rápidas sob o jugo dos fatores de impacto.
Importa, por outro lado, destacar a abrangência temporal, geográfica e temática da obra. O livro está estruturado em quatro partes que apontam para um horizonte cronológico de quinze anos. Ao invés de se focar nos meses que medeiam do 25 de abril de 1974, data do golpe que derrubou a ditadura portuguesa, ao 11 de novembro 1975, data da proclamação da independência de Angola, Alexandre recua ao fim da Segunda Guerra Mundial e termina provisoriamente em 1960, isto é, antes do início da Guerra Colonial, que será objeto de um próximo livro já em preparação (ALEXANDRE, 2017). O entendimento da descolonização enquanto processo histórico mais longo, multidimensional, violento e contestado, e não como acontecimento em um tempo curto, está em linha com a mais recente historiografia internacional sobre o tema. As partes do livro, por sua vez, subdividem-se em capítulos que convocam várias camadas espaciais, políticas e institucionais – a nacional, a imperial e a colonial –, e fornecem uma contextualização nas dinâmicas europeia e internacional, e um quadro comparativo com os outros impérios coloniais europeus. Além disso, cobrem diversos aspectos da evolução do império: a política, a ideologia, a economia, as relações externas, as relações entre o Estado e a Igreja católica, e a defesa militar e policial.
Os estudiosos do império colonial português na sua derradeira fase têm dado mais atenção às colónias africanas, especialmente à Angola e à Moçambique, os dois principais territórios do ponto de vista político e econômico e onde se fixou uma população colona significativa a partir do final da década de 1940. O livro de Alexandre, por seu turno, dá igualmente ênfase à evolução na periferia do império, trazendo aí alguma novidade. O autor mostra a influência das elites goesas e da ameaça que pendia sobre Goa na revogação do Ato Colonial, dá conta em pormenor das tensões, das negociações e das desilusões no desfecho da questão do padroado do Oriente, põe em evidência quão difícil era combater a componente mítica da narrativa sobre o lugar de Goa na história de Portugal ante a queda dos enclaves de Dadrá e Nagar-Aveli e o adensar das ameaças à integridade do império português na Índia. Entre as poucas “vozes dissonantes”, refere designadamente a do intelectual oposicionista António Sérgio. Embora rejeitasse a intromissão da União Indiana nos assuntos de Goa, em duas cartas ao ministro do Ultramar, Sarmento Rodrigues, a 6 e 21 de agosto de 1954, publicadas clandestinamente pelo Movimento de Unidade Democrática Juvenil, Sérgio atribuía a crise da “Índia portuguesa”, em parte, aos erros do regime salazarista. Salazar não deve ter tido acesso a estas cartas. Alexandre localizou-as no espólio de Pinto Quartim, no Arquivo de História Social do ICS. Este é apenas um exemplo de como o autor não escamoteia os limites e as lacunas do arquivo Oliveira Salazar.
As críticas à política colonial e à persistência de práticas de discriminação racial nas colônias emergiram também do interior do aparelho de Estado, mormente do sistema científico colonial, entre investigadores (p.e., o geógrafo Orlando Ribeiro) e no seio de organismos da Junta de Investigações do Ultramar (JIU), do Ministério do Ultramar, como o Centro de Estudos Políticos e Sociais (CEPS). Essas críticas chegaram ao presidente do Conselho, que lhes dedicou atenção, notória pela marginália em muitos desses documentos. Alexandre afirma que na JIU teve início “um importante trabalho de elaboração ideológica, procurando desenvolver e fundamentar as teses gerais do lusotropicalismo” (ALEXANDRE, 2017, p. 386), que postulavam a especial capacidade de os portugueses se relacionarem com os trópicos por amor e não por interesse material.
Com base na historiografia sobre as interdependências entre a antropologia, a sociologia e o colonialismo, considero que as Missões do CEPS (Missão de Estudo dos Movimentos Associativos em África, Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português, Missão para o Estudo da Atracção das Grandes Cidades e do Bem-estar Rural, entre outras) devem ser entendidas como operando dentro do campo científico, em um espaço, à época, ainda poroso entre várias disciplinas e o campo intelectual. Tal como é enganador supor que todos os sociólogos que estudavam as sociedades coloniais eram colonialistas (STEINMETZ, 2017), também me parece questionável pensar que os investigadores do CEPS não produziam ciência, mas tão só ideologia (ÁGOAS, 2013). Pretendia-se que a pesquisa social gerasse conhecimento sobre as mudanças introduzidas pelo domínio colonial, útil como guia à formulação de políticas pelos governos coloniais. Essa abordagem, embora pragmática, não deixava de ser científica. Os temas estudados estavam em linha com os que etnólogos e sociólogos coloniais franceses e britânicos privilegiavam: o impacto da urbanização, da industrialização e da proletarização, a chamada “destribalização”, o bem-estar das populações rurais, as migrações interterritoriais, as relações raciais e culturais, os estudos de comunidade. Temas na agenda de centros de investigação colonial e de organismos internacionais e regionais, com diferentes orientações políticas face ao colonialismo – a Agência das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura (Unesco) e a Comissão para a Cooperação Técnica na África ao Sul do Sara (CCTA) – , e plasmados nas conferências que promoviam.
A seção do capítulo 4 dedicada à política externa apresenta, a propósito da posição de Portugal relativamente à participação em conferências interafricanas, dados pouco explorados até ao momento. A resistência do Estado português à chamada “internacionalização dos problemas africanos” foi acompanhada por um envolvimento na cooperação técnica no quadro regional, na África ao Sul do Saara. Embora o fim em vista do lado dos decisores políticos portugueses (ou franceses, diga-se) não fosse tanto a resolução em comum de problemas coloniais, mas o afastamento da ONU e das organizações norte-americanas dos territórios africanos, estou em crer que os cientistas souberam tirar partido da oportunidade que a diplomacia lhes abriu.
A presença de George Balandier na cidade de Lisboa, em 1957, para proferir uma conferência no Instituto Superior de Ciências Ultramarinas (ISEU), é reveladora da importância que no Instituto se reconhecia à sociologia para a análise do mundo colonial e estará relacionada com o processo de institucionalização da disciplina em Portugal (ÁGOAS, 2012). Afirmar que o sociólogo francês estava em início de carreira (ALEXANDRE, 2017) pode induzir em erro, pois, aquando da visita, ele já havia publicado a sua abordagem teórica à situação colonial (BALANDIER, 1951), realizara pesquisa de campo em Brazzaville, participara da conferência da UNESCO sobre as implicações sociais da industrialização e urbanização na África ao Sul do Saara, e publicara o primeiro estudo de sociologia urbana de uma cidade africana (BALANDIER, 1955). Esta visita, como a de Lord Hailey, que Alexandre também se refere, atesta que, ciente das suas fragilidades, o campo científico colonial português tentava seguir agendas de pesquisa transnacionais e alimentava conexões internacionais.
No ponto 1.2. da conclusão, Alexandre sistematiza de forma exímia as convergências e divergências de Portugal com outros Estados imperiais europeus na era da descolonização. Gostaria de acrescentar um ponto de convergência, relacionado com a importância que é reconhecida pela generalidade das potências coloniais à pesquisa social na África na era da descolonização; e de explicitar um ponto de divergência, o fato essencial de a evolução do sistema colonial português na sua última fase se processar em ditadura e não em democracia, como nos casos belga, britânico ou francês. O autor refere-se à política repressiva, à censura, à ausência de liberdade e ao medo, como fatores que ajudavam a fabricar a “pax lusitana” propagandeada pelo regime. De fato, a natureza política do regime não pode deixar de ser equacionada quando comparamos o caso português como os demais impérios coloniais europeus. A natureza ditatorial do regime explica a limitada margem de autonomia do campo científico e, creio, explica por que é que a tendência reformista nunca pôde existir enquanto corrente organizada. A incursão de Alexandre pelos sistemas totalitários no ponto 1.3. poderá ser uma tentativa de aprofundamento da análise das divergências do Estado-império português com as demais potências coloniais europeias, mas a intenção do autor não fica clara.
Duas últimas notas. A compensar a leitura aqui e ali mais árida, a introdução e a conclusão do livro são peças magistrais de síntese, capacidade já evidenciada pelo autor em Origens do Colonialismo Português Moderno (1979) e em artigos científicos. O livro termina com uma frase que condensa todo o trabalho crítico e hermenêutico empreendido:
Longe de se contraporem, reforma e repressão não passaram de duas faces da mesma política, tendentes a preservar a soberania nacional sobre o Império – como os tempos iniciais da guerra em Angola em 1961, tornariam evidente (ALEXANDRE, 2017, p. 774).
Aguarda-se com expectativa o volume sobre o período da Guerra Colonial, quando a persistência siamesa do império e do regime seria submetida à sua prova derradeira. Obra de referência para todos os que se interessam pela história do último império colonial português e do Estado Novo português, este livro é também é uma espécie de serviço público no sentido da construção de uma memória coletiva descolonizada e crítica, assente em conhecimento histórico.
Referências
ÁGOAS, Frederico. Estado, universidade e ciências sociais: a introdução da sociologia na Escola Superior Colonial. In: JERÓNIMO, Miguel Bandeira (ed.). O Império Colonial em Questão. Lisboa: 70, 2012. p. 317-347.
ÁGOAS, Frederico. Narrativas em perspectiva sobre a história da Sociologia em Portugal. Análise Social, Lisboa, v. xlviii, n. 206, p. 221-256, 2013.
BALANDIER, George. La situation coloniale: Approche théorique. Cahiers internationaux de sociologie, Paris, v. 11, p. 44-79, 1951.
BALANDIER, George. Sociologie des Brazzavilles noires. Paris: Armand Colin, 1955.
STEINMETZ, George. Sociology and Colonialism in the British and French Empires, 1945-1965. The Journal of Modern History, Chicago, v. 89, n. 3, p. 601-648, 2017.
Resenhista
Cláudia Castelo – Doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Lisboa, é investigadora do projecto WUD – Os mundos do (sub)desenvolvimento: processos e legados do império colonial português em perspectiva comparada (1945-1975), no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Suas publicações incluem, como co-organizadora, Os outros da colonização: Ensaios sobre o colonialismo tardio em Moçambique (2012), Gilberto Freyre do outro lado do Atlântico (2015) e Casa dos Estudantes do Império: Dinâmicas Coloniais, Conexões Transnacionais (2017). https://orcid.org/0000-0001-7403-4404 E-mail: .castelo@ces.uc.pt
Referências desta Resenha
ALEXANDRE, Valentim. Contra o vento: Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960). Lisboa: Temas e Debates, 2017. Resenha de: CASTELO, Cláudia. Para a compreensão do império colonial português na era da descolonização. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 45, n. 1, p. 177-180, jan./abr. 2019. Acessar publicação original [DR]
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