Durante as últimas três décadas disseminou-se, entre os historiadores da educação, um forte interesse pelo funcionamento interno da escola e pela história cotidiana das práticas escolares, a qual se convencionou chamar de cultura escolar. Das fontes históricas disponíveis para adentrarmos no universo das práticas e fazeres escolares, uma das mais profícuas tem sido o conjunto dos livros utilizados nas escolas. Desde a origem dos sistemas nacionais de educação, no começo do século 19, os manuais escolares têm ocupado um lugar privilegiado nas salas de aula de todos os países. Daí resulta a sua indiscutível relevância para a História da Educação.
Todavia, apesar de serem uma fonte valiosa, a pesquisa histórica sobre os manuais escolares tem estado reduzida ao campo dos emissores das mensagens, sobretudo no que se refere ao currículo prescrito pelas políticas e pela legislação escolar. Convictas da importância de tais análises para o campo da manualística e da história do currículo escolar acredita-se, todavia, que elas pouco têm contribuído para o avanço das investigações no campo da história da cultura escolar, haja vista que os manuais escolares, por si sós, dificilmente poderão proporcionar informações acerca da complexa história da prática nas salas de aula, das mediações e transformações realizadas pelos professores do conteúdo dos manuais escolares e de como as mensagens veiculadas nas salas de aula foram recebidas e decodificadas pelos estudantes.
Nessa perspectiva, nos últimos anos, alguns centros de investigação na área da manualística, em diferentes países, trilham novos caminhos teóricos e metodológicos em busca de vestígios ou evidências de como os receptores das mensagens, professores ou alunos, recebem, trabalham e decodificam as mensagens dos textos escolares. Dentre estes se destaca o Centro de Investigación en Manuales Escolares – Manes – em Madrid, na Espanha, que por meio de incursões pela história cultural, história do currículo, etnohistória, etnografia, cultura escolar, história de vida e das instituições escolares tem buscado acercar-se não apenas dos contextos de produção e de incorporação, mas dos contextos de recepção e de interpretação de sentido dos manuais escolares, ou seja, dos seus usos.
Nessa sua busca tem sido bastante profícuo o entrecruzamento do manual com fontes primárias complementares, provenientes dos contextos de recepção, tais como os diferentes tipos de cadernos escolares, exames, folhas de exercícios, diários de mestres e de alunos, informes de inspeção, atas de reuniões pedagógicas etc., as quais podem auxiliar o pesquisador a compreender como os professores e a escola em geral reagem diante do currículo a eles apresentado, permitindo uma maior aproximação do uso e do consumo que deles se fizeram e, consequentemente, da cultura escolar.
Neste sentido, busca-se apresentar investigações realizadas recentemente pelas pesquisadoras do Manes, da Espanha, e por pesquisadores brasileiros ligados a este Centro, os quais têm experimentado, de uma forma ou de outra, estes novos caminhos teórico-metodológicos no sentido de aproximar-se dos contextos de recepção e interpretação dos manuais escolares.
Abrindo o dossiê, Kira Mahamud e Ana Maria Badanelli, em Los contextos de transmisión y recepción de los manuales escolares: una vía de perfeccionamiento metodológico en manualística, apresentam os novos caminhos metodológicos ensaiados pelo Manes no que se refere ao que as autoras chamam de segunda fase de vida do manual escolar: os contextos de transmissão e de recepção. Nesse sentido, destacam a existência multicontextualizada do manual e os diferentes contextos de transmissão e de recepção: de um lado, professores e alunos e as fontes envolvidas em ambos: programas, diários, memórias, autobiografias e biografias de professores, e, de outro lado, cadernos e exames, para cuja análise mobilizam conceitos como os de inferência textual e contextual, intertextualidade e interdisciplinaridade.
Gladys Mary Ghizoni Teive, em Recepção de manuais escolares: um estudo a partir dos comunicados e das atas das reuniões pedagógicas do Grupo Escolar Gustavo Richard (1946-1952), privilegia duas fontes complementares ao estudo dos manuais escolares: os comunicados apresentados pelas professoras nas reuniões pedagógicas do Grupo Escolar Gustavo Richard entre 1946 e 1952 e as atas das mesmas. Estas três fontes entrelaçadas possibilitaram à autora perceber quais problemas eram enfrentados pelas mestras no seu dia a dia nas salas de aula, quais – dentre os manuais prescritos pelo Departamento de Educação de Santa Catarina – foram selecionados para ajudá-las a solucioná-los, como as mestras os utilizaram: se os textos foram extraídos literalmente ou se sofreram alterações por parte das professoras e, neste último caso, que tipo de mescla e ou fusão se operou entre a chamada cultura empírica das professoras e a cultura expressa nos manuais escolares lidos e, ainda, quais as suas representações a respeito das leituras realizadas.
O artigo assinado por Nicolas Martínez Valcárcel aborda o uso do livro didático pelos alunos, tanto nas aulas, quanto em casa, um âmbito raramente investigado na área dos manuais. As marcas presentes em cada manual, tal como os sublinhados, diagramas, símbolos, sínteses, permitiram ao pesquisador identificar as tarefas executadas pelos seus utilizadores, iniciadas em sala de aula e continuadas em casa. Por outro lado, o estudo simultâneo do livro com as anotações dos professores possibilitou compreender qual é o papel dos livros de texto na escola. Ademais, a avaliação das características positivas e negativas dos manuais e das anotações, associadas às preferências dos alunos por um ou outro, ofereceram, segundo as conclusões do autor, informações relevantes acerca do presente e do futuro de ambos os recursos a partir do conhecimento de um dos agentes: o alunado.
Em Manuais escolares para um ensino prático, Heloisa Helena Pimenta Rocha indaga sobre o lugar dos manuais escolares no ensino das noções de higiene nas escolas primárias paulistas, um ensino que, segundo as orientações e os programas aprovados nas primeiras décadas do século 20, deveria ser alicerçado na dimensão prática, no intueri, intuitus. Entrecruzando os manuais escolares voltados para o ensino de higiene e saúde com os programas de ensino e com fotografias que documentam aspectos das aulas de puericultura nos grupos escolares, Heloisa objetiva capturar, para além dos enunciados presentes nas obras, indícios das práticas escolares engendradas com o intuito de conformar os gestos de cuidado com o corpo e a saúde dos estudantes.
Finalmente, em Livro didático como indício da cultura escolar, Kazumi Munakata se debruça sobre as possibilidades de utilizar o livro didático como fonte para pesquisas sobre a cultura escolar. Para tal, discute as noções de livro didático, cultura escolar e cultura material e examina livros didáticos franceses, espanhóis, argentinos e brasileiros, destacando os elementos constitutivos da cultura escolar, como os conteúdos das disciplinas escolares, exercícios e atividades, avaliações, ideologias, valores morais e de civilidade, cotidiano escolar, sensibilidades estéticas, materiais escolares e organização das práticas de ensino.
Cabe destacar que este dossiê apresenta apenas uma pequena parcela do potencial de investigações em torno da segunda fase da vida dos manuais escolares: a da recepção e da interpretação de seus conteúdos por professores e alunos. Nosso intento é que esta coletânea de textos possa inspirar ao deciframento da caixa-preta da história da educação: a cultura escolar, a qual, supomos, guarda os padrões – patterns – essenciais que regulam a vida das instituições escolares.
Gladys Mary Ghizoni Teive – Professora na Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina. Pesquisadora associada do Centro de Investigación en Manuales Escolares – Manes. Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná com estágio sandwich e pós-doutorado no Centro de Investigación en Manuales Escolares – Manes / Uned. E-mail: gladysteive@gmail.com
Gabriela Ossenbach-Sauter – Doutora em Ciencias de la Educación e licenciada em História da América. Catedrática de Historia de la Educación e diretora do Centro de Investigación sobre Manuales Escolares – Manes – de la Universidad Nacional de Educación a Distancia, Madrid. Actualmente é presidente da Sociedad Española de Historia de la Educación. E-mail: gossenbach@edu.uned.es
TEIVE, Gladys Mary Ghizoni; OSSENBACH-SAUTER, Gabriela. Apresentação. Revista História da Educação. Porto Alegre, v. 20, n. 50, set. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]
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