Em primeiro lugar, não podemos deixar de agradecer, ao Conselho Editorial da revista Navigator, e em especial ao seu editor, Sérgio Oliveira, a amabilidade do convite que nos foi endereçado para organizar este dossiê, e a confiança depositada perante tal responsabilidade, que muito nos honra, assim como aos colegas e amigos, que aceitaram o desafio de colaborar neste número.
A capacidade de transpor obstáculos naturais, desde simples cursos de água e rios, aos vastos oceanos, através de diversos tipos de embarcações, é uma das conquistas mais significativas da Civilização, talvez apenas equiparável, nos nossos dias, à exploração espacial.
Por meio de pequenos barcos ou grandes navios, pôde suprir várias necessidades, e cumprir distintos propósitos, individuais ou coletivos, alguns dos quais, essenciais à sua própria sobrevivência. Desde o simples wanderlust, à busca de alimentação, transporte de pessoas e bens, passando pelas trocas comerciais de médio e longo curso e, de âmbito supra-individual, aos objetivos político-militares, associados à expansão territorial, defesa e segurança.
Porém, um dos contributos mais extraordinários que a navegação internacional e intercontinental proporcionou, foi o contacto, à escala planetária, entre culturas, a permuta de produtos, tecnologias e ideias, que deram origem ao processo civilizacional da chamada globalização.
Sem esta capacidade de transpor rios e oceanos, o mundo seria certamente muito diferente daquilo que hoje conhecemos. E foi com os navios que se distinguiram muitos dos nomes da cultura e do imaginário universal, como Eriksson, Colombo, Vasco da Gama, Cabral, Magalhães, Cook, Darwin, Shackleton, Bartlett, ou Cousteau, entre tantos outros.
No entanto, permanecem ainda na sombra da História, os inúmeros construtores e arquitetos navais que, em grande parte, tornaram possível todos esses sucessos, através dos navios que desenharam ou construíram. Se Fernão de Magalhães é mundialmente conhecido, mormente no ano em que se celebra o 5º centenário da Circum-Navegação, quantos conhecem o nome do construtor da nau Vitória, a única sobrevivente da frota, que resistiu a todas as dificuldades daquela extraordinária primeira volta ao mundo? Um dos propósitos da História da Construção e Arquitetura Naval, é também o de dar voz a todos estes intervenientes, de quem ainda se conhece muito pouco, da vida, formação, ou grande parte da obra produzida. O estudo do trabalho desenvolvido pelos construtores possibilita, simultaneamente, quer o conhecimento do progresso do estatuto socioprofissional que se opera durante os séculos XVII e XVIII; os avanços formais, técnicos e científicos do navio; como uma compreensão mais adequada da evolução qualitativa das forças navais, estratégias e sua operacionalidade.
É ao construtor (mestre, arquiteto, engenheiro) naval, que compete a responsabilidade da qualidade dos navios, e o correspondente sucesso das frotas. Os estaleiros não deixam de se constituir em centros de experiência e inovação técnica da construção naval, tanto no tocante ao próprio navio, como ao desenvolvimento de equipamentos, estruturas e instrumentos usados no fabrico, lançamento, e manutenção dos mesmos. O aperfeiçoamento das práticas de construção naval, ao longo dos séculos, levou a que o seu desenho fosse o mais adequado, de acordo com cada aspeto e função específicos dos navios, tendo em conta as diversas condições naturais a que tinham de se sujeitar durante as viagens.
Não obstante a tendência para a uniformização generalizada da construção naval europeia, cada construtor acaba por desenvolver uma abordagem particular, no sentido de resolver os vários problemas colocados pelas exigências contraditórias que surgiam, durante a conceção e realização de uma máquina de guerra eficaz, e com boa performance.
Mas a História da Construção e Arquitetura Naval, não se reduz à pesquisa sobre os seus mestres e construtores. Estamos perante um assunto de grande complexidade pluridisciplinar, onde se cruzam os mais diversos aspetos – técnicos, científicos, sociais, políticos, artísticos ou económicos. Entre as diversas áreas de investigação, podemos referir o estudo dos navios (técnicas, materiais, modelos e tipologias); os estaleiros onde foram produzidos (estatais, companhias comerciais e particulares); a formação e o ensino (os tratados, as escolas e academias); bem como os aspetos relacionados com a globalização tecnológica e militar (estratégias, espionagem, mercados, captura de navios, intercâmbio, transmigração de mestres).
Não foi naturalmente o propósito deste dossiê, dada a vastidão do assunto, tratar de todos estes tópicos, mas sobretudo aqui apresentar um conjunto exemplificativo dessa mesma riqueza, reunindo alguns textos inéditos de vários investigadores, e que fosse suficientemente abrangente, no tocante ao âmbito cronológico e temático.
O dossiê abre com um estudo de Augusto Alves Salgado, Capitão de Mar e Guerra, docente da Escola Naval, investigador do Centro de Investigação Naval (CINAV-EN) e do Centro de História/Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, sobre os “Meios Navais Ibéricos para a defesa do Atlântico”, entre 1580 e 1640. Trata-se de uma análise de particular importância e interesse, dado abordar um dos períodos mais sensíveis e menos estudados da nossa historiografia, como é o da União das Coroas Ibéricas.
É sabido que, no tocante às forças terrestres, a ação dos terços de infantaria do exército espanhol, teve um papel de relevo na defesa (ou recuperação) dos antigos territórios portugueses, regularmente ameaçados pelas forças holandesas e inglesas.
O texto de Augusto Salgado realça a estreita cooperação entre as duas coroas, no domínio menos conhecido das forças navais, inclusivamente no tocante à defesa do próprio Oriente. O seu artigo pretende demostrar a interligação profunda que existiu entre a Coroa de Portugal e a de Castela, em especial após a célebre Gran Armada, ou “Invencível Armada”, bem como as alterações da estratégia naval, que oscilam da tradicional defensiva, para uma ofensiva. Igualmente relevante, é a nota sobre o recurso reiterado aos particulares, na compra ou fretamento de navios para suprir as necessidades da Armada.
A nossa escolha para integrar este dossiê, incidiu sobre Joaquim Vicente Foro (act. 1761- 1796), um importante mestre e construtor do Arsenal de Belém. Embora pouco conhecido, a sua obra encontra-se excecionalmente documentada iconograficamente. Para além do projeto das principais canoas cobertas do Pará, a partir de 1773, de especial importância, é o ter desenhado o “Plano de Navio” de uma corveta, em 1786, raríssimo e inédito testemunho da Arquitetura e Construção Naval luso-brasileira setecentista. Por outro lado, este texto constitui-se como uma continuação lógica do trabalho que publicámos recentemente, sobre o construtor Luís Isidoro de Gouveia, e a génese do Arsenal Real de Belém.
O século XX, encontra-se representado por um par de artigos de dois investigadores, sobre o aparelhamento, e a construção naval da Marinha do Brasil, na primeira metade da centúria.
Ludolf Waldmann Júnior, Doutor em Ciência Política (Universidade Federal de São Carlos), escreve sobre os diversos programas de reaparelhamento naval da Marinha brasileira entre 1904 e 1945, estabelecendo uma periodização arrazoada dos diferentes momentos. Após uma primeira fase de aprovação de programas ambiciosos, o cenário só parece ter mudado significativamente, entre 1930 e 1945, com a política da presidência de Getúlio Vargas. O autor fala-nos também dos jogos diplomáticos desenvolvidos durante os conflitos mundiais, da modernização efectivada com a Segunda Guerra Mundial, assim como da aliança, crescente cooperação, mas também dependência, dos Estados Unidos da América.
Por sua vez, Fernando Martini, Mestre em História Social (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo), e doutorando em História Econômica (USP), apresenta-nos um texto sobre as motivações, e os esforços, que tornaram possível o surto de construção Naval Militar, de 1936 a 1946, um dos períodos examinados no artigo anterior, e aqui desenvolvido. Neste caso, o autor propõe-se estabelecer uma periodização da História da Construção Naval brasileira, naquilo que designa como os “Quatro Surtos”, onde o período aqui tratado se insere. O artigo também busca interligar quatro elementos que dão conta da complexidade do tema, defendendo a impossibilidade de abordagens unívocas de aspetos da atividade. Os quatro elementos são assim: as relações internacionais, as necessidades militares, as necessidades de absorver tecnologias, e a economia.
A parte final do dossiê é constituída por textos que versam aspetos mais teóricos ou historiográficos da Arquitetura e História Naval, analisando dois autores bem distintos, o português Fernando de Oliveira, e o norte-americano Alfred Thayer Mahan.
O primeiro, de Amanda Cieslak Kapp, Doutora em História (Universidade Federal do Paraná), e professora no Unibrasil Centro Universitário, propõe-se estudar de que forma o conhecimento náutico, no que toca à Arquitetura Naval, foi sistematizado no Livro da Fabrica das Naus, de Fernando Oliveira, obra pioneira dos tratados de construção naval que sobreviveram até aos nossos dias. A autora pretende examinar como o tratado aliou premissas teóricas, às demandas utilitaristas e práticas dos estaleiros e ribeiras. Segundo ela, o tratado, resulta de um contexto de institucionalização das atividades e saberes relacionados à expansão marítima, assim como da formação humanista do autor, marcada pela retomada dos Clássicos, e pela valorização da experiência.
O texto final deste dossiê, intitulado “Navios, tecnologia e o nascimento do pensamento marítimo: as influências epistemológicas da obra de Mahan”, é da autoria de Marcello José Gomes Loureiro, Doutor em História e Civilização (École des Hautes Études en Sciences Sociales-Paris), Doutor em História Social (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e Pósdoutor (Universidade Federal Fluminense); e de Bruno de Seixas Carvalho, especializado em Filosofia Contemporânea (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos da Escola de Guerra Naval.
O seu estudo incide sobre Alfred Thayer Mahan, um dos mais reputados teóricos da estratégia marítima e naval, e autor do famoso The Influence of Sea Power Upon History 1660- 1783, a mais conhecida das suas obras sobre História da Guerra Naval, que aqui é examinada. Apesar de Mahan não se ter debruçado propriamente sobre a Construção ou Arquitetura Naval, e conceba que novas tecnologias e a tática sejam coisas distintas, compreende que elas podem ter um efeito decisivo, tanto na alteração no desenrolar da batalha, como no seu resultado. De facto, táticas e tecnologia complementam-se mutuamente, e não há melhor período da história para estudar esta interligação, que a mudança do navio de vela para o navio a vapor, no século XIX.
Enquadrado no ambiente epistemológico norte-americano oitocentista, e numa abordagem “cientificista” da História, os autores deste artigo pretendem demonstrar em que medida a visão epistemológica de Mahan foi influenciada pela tecnologia.
Em jeito de balanço, cremos cumprido o propósito deste dossiê, na apresentação de um conjunto de textos inéditos de investigadores de ambos os lados do Atlântico que, embora não esgote a temática, é suficientemente exemplificativo da sua riqueza, e de modo abrangente, quer no tocante ao âmbito cronológico (do século XVI ao XX), como no temático (Construtores e Construção Naval, História e Teoria da Arquitetura Naval, Estratégia e Tecnologia Naval).
Organizador
Nuno Saldanha – Docente do IADE – Faculdade de Design, Tecnologia e Comunicação/Universidade Europeia, Lisboa. Investigador da UNIDCOM/IADE, e do CHAM/FCSH-UNL.
Referências desta apresentação
SALDANHA, Nuno. Apresentação. Navigator – Subsídios para a história marítima do Brasil. Rio de Janeiro, v. 15, n. 30, p.7-10, 2019. Acessar publicação original [DR]
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