BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social. Tradução de Marcelo do Amaral Penna–Forte. São Paulo: Editora Unesp, 2009, 300 p. Resenha de: SPIESS, Maiko Rafael. Revista Trabalho, Educação e Saúde, v.8, n.2, Rio de Janeiro, jul./out. 2010.
Em diversas áreas do conhecimento, existem obras clássicas que são amplamente reconhecidas e discutidas, e cuja importância e influência persistem após muitos anos de sua publicação original. O livro Conhecimento e imaginário social, de David Bloor, lançado originalmente em 1976, é certamente uma destas obras. Desde seu lançamento, este livro – curiosamente, muitas vezes mais comentado do que propriamente lido – é considerado como uma das principais portas de entrada para a então nascente sociologia do conhecimento científico, que, sob a influência de pensadores como Mannhein, Kuhn e Wittgenstein, possibilitou a análise da produção científica através de uma perspectiva distinta da tradição mertoniana. De fato, a partir do marco simbólico representado pela obra A estrutura das revoluções científicas, de Thomas Kuhn (1962), o foco de análise sociológica sobre a atividade científica foi sendo gradativamente alterado: ao invés da investigação sobre os mecanismos de interação e as normas internas dos cientistas, a sociologia passou a investigar também o próprio ‘conteúdo’ da ciência. Em outras palavras, a atividade científica passou a ser analisada como o resultado de determinadas práticas sociais específicas, mas não privilegiadas ou intrinsecamente distintas das demais atividades humanas e, portanto, um objeto passível de análise sociológica (Knorr-Cetina & Mulkay, 1983). Neste sentido, Conhecimento e imaginário social contribuiu fundamentalmente para o processo de consolidação desta abordagem ao conhecimento científico.
De fato, na ocasião do lançamento da segunda edição em inglês do livro, em 1991, a possibilidade de análise social a respeito da ciência já havia se institucionalizado, resultando na emergência de um prolífico campo multidisciplinar, conhecido internacionalmente como Science and technology studies.1 Neste contexto, os leitores de Conhecimento e imaginário social eram sociólogos, filósofos, historiadores, antropólogos e até mesmo cientistas de áreas exatas e aplicadas, que compunham este campo de estudos e reconheciam a obra de Bloor como uma das principais inspirações para sua área de atuação. Sobretudo, convém salientar que os quatro princípios estabelecidos para o ‘programa forte da sociologia do conhecimento’ (causalidade, imparcialidade, simetria e reflexividade), compartilhados pelos colaboradores de Bloor na ‘Escola de Edimburgo’, e delineados no primeiro capítulo do livro, influenciaram, direta ou indiretamente, diversos autores seminais deste campo, tais como Harry M. Collins e até mesmo Bruno Latour. Assim, dado o contexto de seu surgimento e sua influência posterior, torna-se impossível negar o alcance e importância desta obra.
Por conta de seu conteúdo e ineditismo, a edição lançada recentemente pela Editora Unesp, com tradução de Marcelo do Amaral Penna-Forte, serve tanto ao leitor brasileiro das áreas de filosofia e epistemologia, quanto ao leitor familiarizado com os Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia. Trata-se de uma obra instigante (mas também um tanto árdua para leitores menos familiarizados com certos debates filosóficos), que se dedica principalmente à construção da legitimidade da análise sociológica do ‘conteúdo’ do conhecimento científico, justamente através da descrição daquilo que o autor chama de ‘programa forte’, e de sua aplicação aos casos mais extremos possíveis: a ‘lógica’ e o ‘conhecimento matemático’, ambas disciplinas consideradas exemplos de objetividade e neutralidade.
O livro está dividido em três grandes partes. A primeira parte, composta pelos quatro capítulos iniciais, refere-se ao programa forte da sociologia do conhecimento científico, seus preceitos, fundamentos e sua relação com a filosofia da ciência e também com as demais disciplinas científicas. Nestes primeiros capítulos, o autor procura demonstrar que, para além da superação das acusações de ‘idealismo’ e ‘subjetivismo’, o sucesso da sociologia do conhecimento científico está relacionado, de fato, com a adoção de uma postura científica tradicional, incorporando “os mesmos valores assegurados em outras disciplinas” (p. 21).
Aparentemente, Bloor estava consciente das possíveis consequências desta postura de ‘estudo científico da ciência’: ele reconhece que a ideia de uma sociologia da ciência pode parecer uma heresia, ou um ataque à ciência moderna, e sugere que a postura tradicional dos cientistas, de ausência total de questionamentos sobre a ciência, assemelha-se à manutenção da sacralidade do conhecimento religioso, conforme estudado por Durkheim. A aura quase impenetrável destas formas de conhecimento deve ser mantida por seus praticantes, sob pena de a investigação sistemática de seu funcionamento acabar com seu caráter privilegiado. Em especial, para o autor, esta postura de preservação da ciência é justamente a causa do ocultamento da influência dos demais fatores sociais sobre a produção científica.
Apesar dos possíveis ataques e críticas de cientistas e filósofos, Bloor insiste que
A poderosa imagem de Durkheim pode ser empregada com a suposição de que, quando pensamos sobre a natureza do conhecimento, o que estamos fazendo é, indiretamente, refletir sobre os princípios segundo os quais a sociedade é organizada. (p. 85)
Desta maneira, é possível concluir que se todo conhecimento diz algo a respeito da sociedade onde ele foi criado, então o conhecimento religioso e o conhecimento científico, ou as crenças ‘corretas’ e ‘erradas’ podem ser consideradas de modo ‘simétrico’, pois possuem valor explicativo semelhante:
O mundo pode ser povoado por espíritos invisíveis em uma cultura e por partículas atômicas sólidas e indivisíveis (mas igualmente invisíveis) em outra (p. 70).
Em outras palavras, este tratamento simétrico exposto acima e a busca pela ‘causalidade’ do conhecimento científico permitem construir uma perspectiva em que a disciplina sociológica e os fatores sociais não sejam aplicados apenas para explicar os erros e distorções no conhecimento científico, mas principalmente para compreender a determinação do contexto social sobre as descobertas e enunciados científicos, o papel da natureza e da experiência empírica no processo de construção consensual da ‘verdade’, e até mesmo as condições para a existência do próprio conhecimento sociológico.
Uma vez expostas estas premissas do programa forte, a segunda parte da obra apresenta uma análise do conhecimento matemático, procurando identificar diversos aspectos da influência social em seu conteúdo. O quinto capítulo inicia-se apresentando a ideia da autoridade moral imposta pelo caráter autoevidente e persuasivo dos enunciados e sequências lógicas da matemática. A partir disso, procura desconstruir esta autoridade, discutindo a ‘natureza’ das construções matemáticas, opondo e reordenando as ideias de pensadores como Mill e Frege, de modo a agrupar argumentos que possibilitem identificar os diversos elementos de causalidade do conhecimento matemático (p. 160).
No capítulo seguinte, Bloor expande esta perspectiva, discutindo a ideia de que pode existir “variação na matemática assim como há variação na organização social” (p. 163), utilizando-se de exemplos de ‘matemática alternativa’, tais como o estilo cognitivo diferenciado da matemática grega antiga (p. 167) ou as condições sociais que permitiram o surgimento da noção dos números irracionais (p. 184). Com isso, afirma que existe a possibilidade de variações no pensamento matemático, que podem ser explicadas através de causas sociais, ao mesmo tempo em que nega a existência de uma realidade matemática definitiva, exterior aos indivíduos. Este raciocínio se aprofunda no capítulo sete, dedicado ao processo de ‘negociação’ da lógica matemática, especialmente em relação aos contra-exemplos e processos de construção de provas de determinados teoremas. Por exemplo, ao utilizar-se da análise de Lakatos sobre o teorema dos poliedros de Euler (p. 219), Bloor demonstra o caráter negociado das definições matemáticas:
A invenção de novas ideias de prova ou de novos modelos de inferência pode alterar radicalmente o significado de um resultado lógico informal ou matemático informal. (…) Essa abertura à invenção e negociação, com todas suas possibilidades de reordenar a atividade matemática anterior, significa que qualquer formalização pode ser subvertida. Ou seja: quaisquer regras podem ser reinterpretadas e desenvolvidas de novos modos (p. 228).
O capítulo oito apresenta sinteticamente as conclusões decorrentes das reflexões teóricas e dos exemplos empíricos apresentados: inicialmente, Bloor insiste no caráter socialmente determinado do conhecimento, da lógica e da noção de objetividade. O conhecimento é concebido, afinal, como conjectural e relativo, tão subordinado ao contexto social de sua produção, quanto à realidade material que ele analisa. Além disso, o autor reafirma a necessidade de associar as ciências sociais, tanto quanto possível, ao método das ciências tradicionais; afinal, a ciência é a “nossa forma de conhecimento” (p. 240), e somente assim a sociologia do conhecimento poderia encontrar seu devido lugar entre as demais ciências.
Finalmente, na terceira parte do livro (apresentada na forma de posfácio), Bloor analisa algumas das críticas à primeira edição da obra, notadamente em relação às acusações recorrentes sobre a ingenuidade, idealismo, imparcialidade do programa forte. Sem grande surpresa, Bloor indica que muitas das críticas são baseadas em entendimentos incorretos a respeito das teses do livro, decorrentes principalmente da resistência generalizada ao processo de dessacralização da ciência, possivelmente decorrente das aplicações do programa forte. De modo significativo, o autor volta-se para a própria obra para defendê-la, tornando o posfácio uma parte interessante e historicamente relevante, mas realmente dispensável para a compreensão geral das teses do livro.
Em relação à edição brasileira, o projeto gráfico é agradável e a tradução é fiel ao tom original da escrita de Bloor. Todavia, é necessário ressaltar a existência de alguns poucos erros de tradução e digitação como, por exemplo, na página 131 onde se lê “Questão mais controversa é se a sociologia pode atingir o âmago do conhecimento sociológico [sic, grifo nosso]”, quando na realidade o original refere-se ao conhecimento matemático. 1
Em linhas gerais, para o leitor brasileiro contemporâneo, Conhecimento e imaginário social é uma obra importante para a compreensão da emergência e consolidação de uma área especializada das ciências humanas, os Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia. Mais especificamente, para o leitor pouco familiarizado com este campo, ou para aqueles que abordam a questão através da filosofia ou da matemática, trata-se de um livro desafiador, que faz jus às ciências exatas, ao mesmo tempo em que expõe algumas de suas particularidades e inconsistências internas, que normalmente são obscurecidas pelas reconstruções históricas de seus próprios praticantes.
Notas
1 No Brasil, este campo ficou conhecido como “Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia” (ESCT).
2 “A more controversial question is whether sociology can touch the very heart of mathematical knowledge” (Bloor, 1991, p. 84).
Referências
BLOOR, David. Knowledge and Social Imagery. Chicago: The University of Chicago Press, 1991. [ Links ]
KNORR-CETINA, K; MULKAY, M. Introduction: Emerging Principles in Social Studies of Science. In: KNORR-CETINA, K; MULKAY, M (Ed.). Science Observed. Perspectives on the Social Study of Technology. Sage Publications: London/Beverly Hills/New Delhi, 1983. [ Links ]
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1989. [ Links ]
ROOSTH, Sophia; SILBEY, Susan. Science and Technology Studies: From Controversies to Post-Humanist Social Theory. In: TURNER, Bryan S. The New Blackwell Companion to Social Theory. London: Blackwell Publishing Ltd, 2009. [ Links ]
Maiko Rafael Spiess – Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), São Paulo, Brasil. E-mail: spiess@ige.unicamp.br
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