Conhecimento e fronteira: história da ciência na Amazônia | Priscila Faulhaber e Peter Mann de Toledo
Conhecimento e fronteira: história da ciência na Amazônia ofe- rece aos leitores, além de farta documentação e muita informação, uma acurada análise a respeito do tema englobado pelo título: a história da ciência, dos cientistas e das instituições científicas na Amazônia brasileira. O livro focaliza primordialmente o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), sediado em Belém, e, de modo secundário, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), sediado em Manaus. O volume está destinado a se tornar uma obra de referência.
O livro divide-se em duas partes principais. A primeira delas, intitulada ‘Estratégia científica e unidades de pesquisa na Amazônia’, reúne 14 ensaios e artigos de especialistas em história e política da ciência, em tecnologia e instituições científicas. A segunda parte, sob o título ‘Trajetória social e memória institucional’, apresenta as transcrições de 31 entrevistas e depoimentos de pesquisadores e administradores que atuaram direta ou indiretamente no MPEG, no Inpa ou no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), órgão ao qual são subordinados esses dois principais institutos de pesquisa da Amazônia. A ‘cronologia’ dos dois institutos e a ‘iconografia’, levantadas com rigor e que figuram ao final do volume, formam uma terceira e enriquecedora parte, situando fatos e personagens mencionados ao longo do livro.
Os 14 artigos e ensaios iniciais representam o estado da arte da reflexão científica brasileira sobre a situação da ciência na Amazônia ou sobre a Amazônia. A limitação de espaço obriga-me a comentar apenas alguns deles. O tema da criação do Inpa surge nos artigos assinados por Ana Maria Ribeiro Andrade, por Heloísa Bertol Domingues e Patrick Petitjean e por Marcos Chor Maio.
Marcos Chor Maio enfrenta um dos assuntos mais citados e polêmicos do volume: a questão da participação estrangeira na pesquisa sobre a Amazônia e, no limite, a relação entre essa participação e um suposto projeto de ‘conspiração internacionalizante’ afetando a região. O autor, com base em rica e inédita documentação, mostra como a criação do Instituto Internacional da Hiléia Amazônica (Ilha), por iniciativa da Organização Educacional, Científica e Cultural das Nações Unidas (Unesco), frustrou-se por efeito da combinação de dois fatores: o relativo desinteresse dos países centrais ou hegemônicos e a pouca articulação ou mobilização dos próprios países amazônicos interessados.
Maio não encontrou registros a respeito de qualquer interesse especial dos países centrais em internacionalizar a região por meio da pesquisa científica ou outros métodos, ‘intenção’ que passaria a integrar um duradouro ‘folclore’ sobre o Ilha. Ele mostra ainda a ligação entre a reação nacionalista brasileira contra o instituto, articulada pela comunidade científica, e a emergência do projeto de criação do próprio Inpa como uma alternativa ‘nacionalista’. Por fim, o autor demonstra como a cooperação científica internacional inscreveu-se nas próprias origens do Inpa, circunstância na verdade feliz para o desenvolvimento científico e institucional da entidade nas décadas seguintes.
O artigo de Paulo Egler destaca a “extrema desigualdade” da “distribuição de recursos humanos qualificados” e de cursos de pós-graduação entre as diversas regiões do país, sendo a Amazônia a menos aquinhoada. Em 1997, apenas 153 (1,79%) dos 8.544 grupos de pesquisa cadastrados pelo CNPq em todo o país estavam sediados na região Norte, correspondendo a apenas 591 (1,72%) dos 34.205 pesquisadores engajados nesses grupos. Em toda a região Norte, havia, em 1996, apenas 34 cursos de pós-graduação stricto sensu (1,93% de um total nacional de 1.756), e estes estavam concentrados em dois estados: Pará e Amazonas.
Essas minúsculas percentagens confirmam o termo ‘fronteira’ presente no título do volume e freqüentemente usado nos artigos, ensaios, entrevistas e depoimentos que o integram. Infelizmente, esses números também desmentem as afirmações grandiloqüentes sobre a importância da região para a ciência brasileira no passado, no presente e no futuro próximos. Mas o artigo de Egler não é negativista. Ele apresenta um conjunto sistemático de propostas capazes de trazer a realidade propriamente científica da região para o nível alegado da sua importância para a ciência nacional.
Cabem ainda breves menções a alguns dos outros artigos, com destaque para o fato de que eles têm focos bastante diferentes. Os textos de Mariza Correa e João Pacheco de Oliveira destacam a importância das contribuições de pesquisadores individuais (respectivamente a ornitóloga Emília Snethlage e o antropólogo Eduardo Galvão) para o desenvolvimento do saber científico sobre a Amazônia. Examinando a trajetória de um conjunto de disciplinas científicas, e não de pesquisadores individuais, Ângela Maria de Moraes Bertho analisa os altos e baixos das ciências humanas no âmbito do MPEG entre 1886 e 1914. Luís E. Aragón, em uma abordagem distinta, focalizada em instituições, examina a trajetória das entidades amazônicas de ensino e pesquisa, correlacionando-as com os ciclos econômicos regionais e tentando verificar sua capacidade de influenciar o desenvolvimento regional.
Peter Weigel segue uma linha similar à de Aragón, ao tratar da trajetória do Inpa. Vale destacar a conclusão do artigo: o modelo de geração de conhecimento adotado pelo Inpa não lhe deu fôlego suficiente para interferir nas políticas de desenvolvimento adotadas na região, tal como rezava a sua missão institucional, embora esse conhecimento tenha alcançado um certo respeito nos circuitos internacionais da ciência. Weigel mostra o grande desafio atual do Inpa: ao mesmo tempo ampliar o seu prestígio propriamente científico e alcançar maior capacidade de interferir nos rumos do desenvolvimento da região.
O artigo de Manoela F. F. da Silva e colaboradores toma um outro caminho, apresentando o histórico de um projeto de pesquisa específico do MPEG. Trata-se do projeto Flora Amazônica, um esforço de longo prazo desenvolvido para dinamizar a coleta de espécimes botânicos regionais, ampliar as coleções, fazer a sua classificação taxonômica e pesquisar a biodiversidade amazônica. Nelson Sanjad, em linha distinta, faz uma leitura crítica da historiografia gerada por pesquisadores e administradores do Museu Goeldi a respeito da própria história institucional do museu para o longo período entre 1894 e 2000. Assim, os artigos presentes em Conhecimento e fronteira cobrem muitos assuntos e adotam ângulos analíticos bem diversificados, como mencionamos.
Passemos à segunda parte do livro. Os organizadores entrevistaram 23 cientistas atuantes no MPEG e no Inpa, ou cujas trajetórias profissionais se cruzaram com as linhas de pesquisa e os pesquisadores de carreira dos dois institutos, e publicaram as transcrições editadas e revistas. Entre os entrevistados alinham-se Luís de Castro Faria, José Leite Lopes, Roberto Cardoso de Oliveira, Roque Laraia, Lourdes Furtado e Adélia Rodrigues. Há ainda oito depoimentos escritos por pesquisadores experientes em temas amazônicos, como Bertha Becker, Ghillean Prance, William Overal e Lúcio Flávio Pinto. Essas 31 contribuições individuais especialmente produzidas para o volume têm grande valor documental e, em vários casos, analítico.
Como geralmente ocorre com entrevistas, elas resultam desiguais em conteúdo e densidade, apesar do caráter sistemático do roteiro de entrevista elaborado pelos organizadores. No entanto, o conjunto do material reunido no volume é de boa qualidade e tem excepcional valor de raridade, pois poucos dos entrevistados terão tido oportunidade de registrar de forma sistemática as suas reminiscências e opiniões sobre os assuntos em pauta.
Alguns entrevistados passaram apenas brevemente pelos institutos ou deles obtiveram apenas apoios pontuais para as suas investigações. Desse modo, nem sempre eles dispõem de informações originais sobre vários assuntos. Por vezes apenas reproduzem o que ouviram de terceiros ou expressam opiniões que nem sempre parecem bem fundamentadas. Isso é recorrente, por exemplo, nas respostas às perguntas sobre as supostas ameaças de ‘internacionalização da Amazônia’. Quase todas as respostas mencionam especulações vagas e batidas e acusações sem alvo ou fundamento.
Essas respostas expressam, no entanto, uma questão de fundo: existe um saudável nacionalismo da comunidade científica brasileira manifestado na idéia força de que a riqueza natural e humana da Amazônia deveria ser estudada cientificamente pelos próprios brasileiros. A questão, contudo, acaba revelando-se um dilema. Tanto em artigos quanto em entrevistas e depoimentos, fica evidente a grande distância entre esse ideal e o volume de pesquisa efetivamente realizada por brasileiros na Amazônia, tanto no MPEG e no Inpa quanto por cientistas de outras regiões do país. Os entrevistados qualificam a Amazônia como um “desafio”, uma região “extraordinária”, “riquíssima”, que detém “a maior biodiversidade do planeta”, e usam outros termos e expressões igualmente hiperbólicos. Fica evidente, no entanto, inclusive nas trajetórias cheias de altos e baixos dos dois institutos, que os cientistas brasileiros ainda não conseguiram enfrentar a enorme tarefa de pesquisar a região de maneira adequada. Na verdade, em seu conjunto, Conhecimento e fronteira talvez inadvertidamente mostre que a comunidade científica brasileira como um todo se interessou pela Amazônia muito menos do que seria de se esperar diante das grandiosas alegações sobre a sua importância
O valioso depoimento de Osvaldo Cunha sobre o MPEG vai por outro caminho. Ele discorre com segurança e detalhes sobre pesquisadores, linhas de pesquisa, intercâmbios, coleções, achados científicos e publicações do museu, além de historiar a alternância entre longos períodos de decadência e breves surtos de recuperação. Roque de Barros Laraia fornece outros índices reveladores da precariedade do empreendimento científico amazônico, destacando que apenas 3% da produção científica brasileira vêm da região Norte, e que 75% dessa parcela ínfima saem de uma única cidade, Belém.
Adélia de Oliveira Rodrigues dá outra medida das dificuldades crônicas do MPEG, destacando que apenas na década de 1980, 120 anos depois de sua criação, o museu conseguiu ter um número razoável de pesquisadores de carreira com mestrado, já que os doutores quase sempre vinham de fora, do exterior ou de outras áreas do país. Ela destaca ainda os benefícios que o PP-G7, um programa ambiental com apoio multilateral, trouxe recentemente (na segunda metade da década de 1990) para o MPEG e para o Inpa, introduzindo melhorias em aspectos básicos, tais como a qualificação de pesquisadores e funcionários e até mesmo a recuperação de prédios e acervos de bibliotecas.
Aziz Ab’Saber critica a ênfase do CNPq no financiamento da pesquisa em ciências biológicas e naturais na Amazônia, defendendo um apoio mais efetivo às ciências sociais e humanas. Lúcio Flávio Pinto faz uma comparação muito interessante entre as agendas e as prioridades atuais de pesquisa na Amazônia e as que foram discutidas em encontro científico ocorrido em Belém, em 1966, em comemoração aos cem anos de fundação do MPEG. Ele registra e discute algumas continuidades significativas, inclusive a questão da participação de cientistas estrangeiros, e a descontinuidade crônica dos esforços institucionalizados de pesquisa na região antes e depois de 1966.
Warwick Kerr destaca a falta de doutores atuantes na Amazônia, contrastando os 140 doutores do quadro atual do Inpa com a necessidade mínima estimada de dois mil doutores para toda a região. Sérgio Fonseca discorre sobre a importância de um fato ‘compensatório’ — e o termo é meu — dessa falta: a presença sistemática de pesquisadores estrangeiros na Amazônia, forma pela qual Inpa e MPEG enfrentaram a escassez de pesquisadores brasileiros qualificados e interessados em trabalhar na região. Assim, apesar do discurso nacionalista de alguns entrevistados e depoentes, o volume permite que se avalie a importância das contribuições de cientistas e instituições estrangeiras no avanço dos conhecimentos científicos sobre a Amazônia, tanto no passado quanto no presente.
Phillipe Léna apresenta a reflexão mais elaborada e instigante sobre um tema caro aos organizadores e para o qual os demais entrevistados não deram respostas tão candentes: as relações existentes entre a Amazônia como uma fronteira geográfica, humana e de recursos e a mesma região como fronteira da ciência ou para o conhecimento científico. O autor mostra ainda o perigo de a Amazônia “morrer” como região, perigo implícito em recorrentes propostas regionalistas ou xenófobas de ‘fechar’ a área aos estrangeiros. Ele sustenta — ao meu ver, com toda razão — que a Amazônia precisa construir a sua identidade interagindo com as outras regiões do país e com outros países.
Os depoimentos de dois pesquisadores estrangeiros — Ghillean T. Prance e William Leslie Overall — vêm muito a propósito quanto a esse ponto. Ambos registram e agradecem o apoio que receberam do MPEG, do Inpa e do CNPq durante as suas longas carreiras de estudiosos da natureza amazônica. Overall chega a enfatizar que vê na pesquisa amazônica uma potencialidade muito maior — já efetivada em diversas frentes — de produzir idéias e achados genuinamente inovadores no campo da biologia, o que favorece tanto os pesquisadores estrangeiros quanto os brasileiros.
As entrevistas e depoimentos foram bem editados. São fáceis e interessantes de se ler e ainda guardam um delicioso sabor coloquial. É possível seguir as concordâncias e discordâncias entre diferentes personalidades, pois o mesmo roteiro básico de perguntas se repete em quase todas as entrevistas. Faltaram, contudo, as datas e os locais de entrevista. Alguns nomes próprios foram grafados de forma incorreta (por exemplo, Julian Stewart em vez de Julian Steward, e Herman Kahnn em lugar de Herman Kahn). A lamentar é que o Inpa tenha às vezes sido confundido com o Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), com sede no Rio de Janeiro (ver p. 533, por exemplo), outro centro de pesquisa vinculado ao CNPq, mas cujas atividades não guardam qualquer relação especial com a região amazônica.
Conhecimento e fronteira é de grande valor para se conhecer e entender o conjunto da experiência recente e contemporânea de pesquisa científica na Amazônia. É uma sólida contribuição para a história da ciência brasileira. Será útil por muito tempo também como obra de consulta. Além disso, ao destacar as descontinuidades e as dificuldades enfrentadas até hoje pelos cientistas, o livro mostra o tamanho do desafio que representa se construir uma grande, profícua e duradoura empreitada de pesquisa científica na vasta região. Essa é uma tarefa que exigirá a mobilização de, literalmente, milhares de pesquisadores nas áreas das ciências da vida, tecnológicas e sociais, todos eles trabalhando em frentes disciplinares e interdisciplinares, em tempo integral, ao longo de mais de uma geração. Isso tudo implica produção e reprodução de recursos humanos qualificados, continuidade de muitas linhas de pesquisa e apoio institucional duradouro para cientistas e linhas de investigação. A participação de cientistas estrangeiros, o que na verdade já é uma tradição, deve continuar e ajudar nesse esforço. Os cientistas brasileiros, por sua vez, conseguirão construir um projeto dessa envergadura apenas quando um número maior deles se interessar pela Amazônia e se dedicar a estudá-la, inclusive residindo e trabalhando lá.
Resenhista
José Augusto Drummond – Doutor em recursos naturais e desenvolvimento, Pesquisador associado, Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília (UnB). E-mail: jaldrummond@uol.com.br
Referências desta Resenha
FAULHABER, Priscila; TOLEDO, Peter Mann de (Orgs.). Conhecimento e fronteira: história da ciência na Amazônia. Belém/Brasília: Museu Paraense Emílio Goeldi; Editora Paralelo 15, 2001. Resenha de: DRUMMOND, José Augusto. Ciência na Amazônia: análises, depoimentos e documentos. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.10, n.1, jan./abr. 2003. Acessar publicação original [DR]