Pensar os conflitos agrários, em especial na América do Sul, sua relação com a história fundiária e agrária, em perspectiva local, regional e mundial, é premente e necessário à compreensão do aumento da fome e da desnutrição, em diversas sociedades. Atualmente, a fome atinge 820 milhões de pessoas, de acordo com o relatório da ONU publicado em 2019. Destes milhões de pessoas com fome, 513,9 milhões estão na Ásia (11,3% da população), 256 milhões na África (19,9%) e 42,5 milhões (6,5%) na América Latina e no Caribe, tornando-se, assim, o grande desafio para atingir uma das metas de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que prevê fome zero até 2030.[1]
Esse problema perpassa por reflexões e estudos histórico, sociológico, antropológico, entre outros, dos processos estruturais e simbólicos de exclusão social, fruto da história da ocupação espacial através do apossamento, da expansão, expropriação e dominação que, por sua vez, processaram-se sincronicamente ao projeto “civilizatório” e “modernizante” de racionalização econômica, bem como da relação entre o acesso à terra, o desenvolvimento e as revoluções agrícolas.
Portanto, a apropriação socioeconômica, cultural e jurídica da terra é contraditória e polissêmica e desde a primeira revolução agrícola até à contemporânea, gerando assim concentração da propriedade da terra, efeitos das políticas de ajuste estrutural, corrupção, concentração de renda e desigualdade social. De um lado, a apropriação da terra efetivou-se através da hegemonia de poderes políticos e econômicos regionais e globais desde a colonização, pública e privada, dos territórios, em especial latino-americanos, até o neocolonialismo, promovendo múltiplas dimensões da violência estrutural (ADORNO, 2002) e violência simbólica (BOURDIEU, 2012). Por outro lado, temos a lucidez social e acadêmica de que o problema da fome e da desigualdade social perpassa por diversas variáveis socioeconômicas, culturais e políticas além das que aqui indicamos.
Nesse sentido, qualquer discussão e intenção de democratizar a terra e a produção agrícola como possibilidade de desenvolvimento implica em discutir, para além do mero crescimento, a estrutura fundiária, ou seja, a herança agrária, a teoria das transformações históricas e socioambientais da agricultura e o acesso de seu produto, a necessidade de políticas nacionais e regionais de proteção e de desenvolvimento da economia camponesa pobre e a reforma agrária frente ao agronegócio.
Todos esses temas, candentes e atuais, evidenciam magistralmente a centralidade dos conflitos agrários, da estrutura fundiária e agrária na América Latina, em especial, na América do Sul, exibem seu entrelaçamento essencial com a própria história social da agricultura, da propriedade da terra e, principalmente, de seus protagonistas e seus desafios.
Tomando essas questões como objeto de estudo, os textos que compõem este Dossiê, Conflitos agrários na América do Sul: história fundiária e agrária, resultam de investigações, em sua maioria, de historiadores, antropólogos e sociólogos, que se baseiam em análises críticas de fontes primárias e secundárias, escritos em consistente base teórico-conceitual, de abordagem metodológica conjugada e de análises qualitativa e quantitativa. Assim, os autores oferecem resultados finais de pesquisas concluídas ou em desenvolvimento. Eis, aqui, a apresentação das destacadas produções acadêmicas.
A fome e agricultura, vistas de uma perspectiva inovadora, estão no estudo O cardápio do agronegócio: monocultura e desnutrição de produtor para consumidor (1996- 2019), de Luis Ernesto Blacha. Centra o debate nas categorias agronegócio, monocultura e desnutrição. Nele, é tratada a problemática das desigualdades nutricionais e a tipologia de dieta do século XXI. Portanto, as reflexões acerca da desnutrição estão embasadas nas proposições de que ela é o resultado da consolidação do agronegócio, da monocultura, como modelo produtivo e, consequentemente, o aumento da influência de grandes empresas transnacionais que comercializam alimentos através de conhecimentos especializados, assim, permitem simplificar os ecossistemas e promover a padronização de todos os componentes das cadeias agroalimentares que reduzem a natureza onívora da dieta. A abordagem é uma crítica consistente e explicativa dos usos do território como construtos à degradação da dieta da população argentina desde meados da década de 1990.
Na guisa dessa problemática, José Pierri, em Agronegócio na produção de grãos, seus resultados econômicos e sua relação com políticas públicas em um país dependente, também centra a discussão no modelo do agronegócio monocultor de grãos na Argentina. Aborda a problemática da conveniência econômica de adotar o modelo ao longo do tempo e a influência de políticas públicas na lucratividade e o faz através de consistente construção de séries estatísticas sobre custos de produção e comercialização de trigo e soja, demostrando a sua evolução durante as três etapas econômicas que afetaram o setor entre 1900 e 2017, analisando seus resultados. O estudo evidencia os pressupostos centrais do agronegócio e a influência das políticas públicas no setor, complexifica a análise das políticas de exportação de grãos e o mercado mundial e a natureza estruturalmente dependente da economia argentina.
No artigo Agroindustria Ervateira Argentina: Agro, conflitos e políticas públicas nas margens Misiones (1953- 2013) Lisandro Rodrigues problematiza a construção social e histórica da Região Ervateira Argentina. Ele analisa detidamente as transformações do modelo econômico e suas repercussões na agroindústria. O estudo pauta-se em fontes primárias originais como boletins oficiais da Comissão Reguladora da Yerba Mate (CRYM), dados do Instituto Nacional de Ervas Mate (INYM), documentos originais das cooperativas ervateiras (memórias e balanços), publicações periódicas do Movimento Missionário Agrário e entrevistas com os protagonistas históricos.
Deslocando a fronteira territorial em relação aos trabalhos anteriores, Catullo, em Análise comparada das realocações rurais e urbanas obrigatórias: Barragem de Itá (Alto Uruguai, Brasil) (1979-2001), apresenta resultados de pesquisas referentes à modernização e deslocamentos compulsórios de populações, traz análises sobre os efeitos da construção da barragem de Itá (Brasil) localizada no rio Uruguai, entre os municípios de Itá (Estado de Santa Catarina) e Aratiba (Estado do Rio Grande do Sul). Formando um lago com altitude de 370m e volume total de 5.1 bilhões de metros cúbicos, ocupando área total de 141Km², apresenta um potencial instalado de 1620 MW que afetou, sobretudo, áreas rurais, parcialmente o município de Marcelino Ramos (RS) e em sua totalidade a sede do município de Itá (SC). A análise compara as estratégias e respostas da população rural que se organizou na Comissão Regional de Atingidos por Barragem (CRAB), resistindo à construção da barragem, em contraposição à população da cidade de Itá, que esteve “majoritariamente” a favor da mesma.
No trabalho Os paradoxos do agronegócio fumageiro entre os pequenos agricultores no oeste de Santa Catarina, as pesquisadoras Arlene Renk e Silvana Winckler discutem os “desencontros” das políticas brasileiras em relação à Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT), sob auspícios da Organização Mundial da Saúde, ratificada pelo Brasil em 2005. Um dos pontos de embate está na diminuição / erradicação do cultivo do tabaco. O governo brasileiro, numa postura politicamente correta, bane o fumo do espaço público, diminui o número de fumantes, mas oficialmente estimula o cultivo do tabaco para o incremento da balança comercial. O estudo embasado em fontes documentais, estatísticas e dados obtidos em campo e em entrevistas, encontra-se em desenvolvimento e, como resultados preliminares, destacam que: o cultivo do fumo não é opção dos pequenos agricultores, mas uma das únicas saídas encontradas para permanecer na agricultura; o cultivo é feito em pequena propriedade, fruto de trabalho familiar, com alta carga de agrotóxico, em integração com a agroindústria fumageira.
Inteiramente diferente em sua temática e perguntas de investigação dos trabalhos anteriores, mas semelhante em sua essência, o texto Experiência histórica, catolicismo e resistência indígena camponesa: análise do processo de constituição do Neozapatismo em Chiapas trata de um dos eventos da história social latino-americana mais relevantes à constituição dos movimentos sociais rurais, que dialogam com as contradições mais gritantes da América Latina, como, por exemplo, a luta pela reforma agrária. Os (neo)zapatistas foram e têm sido, provavelmente, o movimento social de maior influência e repercussão no Ocidente nas duas últimas décadas. Mas, certamente, suas narrativas, tanto no conteúdo quanto na forma, tiveram uma importância incomensurável. De fato, focando o referido movimento social, foram realizadas diversas pesquisas e publicações, neste universo, destacando-se o estudo ímpar e atualíssimo de Émerson Neves da Silva, que examina o processo de formação do Neozapatismo a partir de um denominador comum: a relação deste movimento com a Igreja Católica. Apesar da existência de outras igrejas também envolvidas na constituição desse ator social, a análise restringe-se à Igreja Católica, em virtude da intensidade, ou melhor, do grau de influência e aproximação de setores com o processo de constituição do movimento Neozapatista.
Entre os protagonistas do trabalho rural, destacam-se as mulheres. Elas têm um peso significativo na produção de alimentos do mundo. Neste quadro, as mulheres rurais são as que mais vivem em situação de desigualdade social, política e econômica. Problematizando esta questão, a pesquisadora uruguaia, Silvana Maubrigades, em Disparidades de género no mercado de trabalho rural no Uruguai, 1990-2010, discute as diferenças de gênero na zona rural do Uruguai e as enquadra nas mudanças que ocorreram na América Latina no mesmo período. Ela fornece evidências sobre o processo de incorporação das mulheres no mercado de trabalho rural no âmbito da segunda globalização e a segregação persistente das mulheres rurais nas atividades menos qualificadas deste contexto. O estudo é baseado em sólido corpo documental e análise quantitativa e qualitativa.
Tematizada por meio de outras chaves de leitura, a revolução agrícola contemporânea / Revolução Verde, portanto, a matriz da monocultura de grãos em grande escala, é analisada na perspectiva da História Regional e História Ambiental no texto O Posto Agropecuário de Ijuí e a modernização da agricultura. Os pesquisadores Paulo Afonso Zarth e Marcos Gerhardt problematizam o fomento à modernização agrícola na região noroeste do Rio Grande do Sul, a qual se destacou na história da agricultura pelo desenvolvimento das lavouras de trigo e soja, com base no estudo da implantação do Posto Agropecuário de Ijuí pelo Ministério da Agricultura. O estudo está embasado em documentação primária produzida pelo diretor do Posto Agropecuário e artigos publicados no jornal Correio Serrano. A ênfase dada a questão centra-se no papel do Estado como agente de difusão de novas tecnologias e nos impactos socioambientais decorrentes do processo de modernização da agricultura no período de 1940 a 1976.
Nessa chave de leitura, das temáticas deste dossiê, contamos com as palavras do historiador Paulo Pinheiro Machado, em entrevista concedida em 13 de novembro de 2019, sobre os Conflitos agrários na América do Sul, especificamente, sob o viés das desigualdades produtivas, de investimento, de desenvolvimento agro-industrial e social do “mundo rural” e, neste movimento histórico, a estrangerização da terra e a expropriação de povos tradicionais, camponeses e indígenas.
E, ainda, apresentamos a resenha O preço da Liberdade: servidão, sujeição e reforma na Prússia, 1648-1848, onde Eduardo Relly analisa de forma crítica e sintética a obra Freedom’s Price: Serfdom, subjection and reform in Prussia, 1648-1848, Oxford University Press, 2013, de Sean Eddie, na qual é debatida questões relativas a terra, ao mundo rural sob variáveis que ajudaram a configurar diferentes gradações de servidão e a reforma agrária prussiana, bem como as recepção, reavaliações e o significado social e o peso das interpretações da história agrária alemã.
As questões abordadas nesse Dossiê explicam a heterogeneidade do mundo rural, sua complexidade e as várias experiências e possibilidade de abordagens (inter)disciplinares a partir das quais são feitas análises e interpretações sobre a produção agrária e suas desigualdades na América do Sul. É uma história marcada por desigualdades produtivas, de investimento, de desenvolvimento agroindustrial e social. Este dossiê cumpre com o objetivo de estudar os desequilíbrios agrícolas no longo prazo, ponderando a transição do agricultura para agrobusiness em estreita relação com os modelos econômicos existentes e suas transformações, analisando a construção social do território associado com o poder, as políticas públicas e os efeitos que produzem nestas economias dependentes do mercado externo. Enfim, os estudos de caso, aqui publicizados, nos permitem dar conta dessas declarações e abrir uma gama de opções para pesquisas atuais e futuras, considerando a análise micro e macro do território, suas políticas, poder, uso de recursos naturais, meio ambiente e seus atores sociais, econômicos e culturais.
Desejamos proveitosa leitura aos interessados na história do mundo rural e dos conflitos agrários!
Nota
1. El Estado de la seguridade alimentaria y la nutrición em el mundo 2019. Organización de las Naciones Unidas para la Alimentación y la Agricultura. Roma, 2019. FAO, FIDA, OMS, PMA y UNICEF. 2019. https: / / nacoesunidas.org / . Acessado em 10 / 01 / 2020.
Ironita A. Policarpo Machado (PPGH / UPF / Brasil)
João Carlos Tedesco (PPGH / UPF / Brasil)
Noemí Girbal-Blacha (CONICET-CEAR / Argentina)
(Organizadores)
MACHADO, Ironita A. Policarpo; TEDESCO, João Carlos; GIRBAL-BLACHA, Noemí. Editorial. História – Debates e Tendências, Passo Fundo- RS, v. 20, n. 2, maio / jul, 2020. Acessar publicação original [DR]
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