Conflicting Missions. Havana, Washington and Africa vem cobrir um vácuo na história da política externa de Cuba, relativo a um aspecto já tão discutido anteriormente, mas que, até aqui, não ia além de meras conjecturas sem provas: foi Cuba subserviente à União Soviética em seus envolvimentos de suporte a movimentos revolucionários na África? Desde 1991, Gleijeses realizou quatorze viagens a Cuba a fim de pesquisar nos documentos oficiais a história dessa época e trabalhou, ainda, com os arquivos norte-americanos, britânicos, alemães e belgas, além de realizar inúmeras entrevistas com personagens-chave africanos. Os resultados dos estudos de Gleijeses mostram nitidamente que os fatores que moveram Cuba em direção à África foram basicamente dois: uma “compulsão messiânica de liderar a revolução” e a sobrevivência da própria revolução cubana (p. 375). Para tanto, não houve nenhuma coordenação prévia com a União Soviética, e Cuba chegou, em alguns momentos, a pôr em risco relações importantes em função desses ideais.
Das 552 páginas do livro, cerca de 150 são constituídas por notas e referências bibliográficas e documentais. O restante está dividido em duas partes bem nítidas: a primeira inclui os primeiros dez capítulos e relata as intervenções na Argélia, no Zaire (hoje República Democrática do Congo), no Congo (hoje República do Congo) e na Guiné-Bissau; a segunda inclui sete capítulos referentes ao caso de Angola e as conclusões gerais. Todos os capítulos são enriquecidos de mapas e fotos explicativas e com referências adicionais às do texto.
O primeiro passo cubano em direção à África foi dado na Argélia, em 1961, quando Castro enviou armas ao National Liberation Front of Argelia (FLN), que lutava contra o domínio francês desde 1954. Castro arriscou as relações com o Marrocos e com a França de de Gaulle, mas tratava-se de uma forte identificação ideológica de Cuba com o FLN. Ben Bella, líder do movimento revolucionário argelino, chegou ao poder, mas foi removido em 1965. Em seguida, Cuba engajou-se no Zaire, cujo líder da independência, Patrice Lumumba, havia sido assassinado pela oposição. A expedição foi marcada pela presença de Che Guevara, que para lá se dirigiu em 1964. Gleijeses utiliza o diário de Che Guevara como principal fonte ao relatar o caso do Zaire e constata a decepção do companheiro de Fidel diante do desfecho da expedição. A falta de preparo revolucionário dos zairenses e a própria falta de vontade de lutar, associadas às atitudes dos líderes revolucionários, que passavam mais tempo viajando ao exterior do que ao lado de suas tropas, limitaram a ação dos cubanos. O que foi um “fracasso”, nas palavras do próprio Che Guevara, teve como futuro imediato a vitória em campo dos Estados Unidos e a ascensão de seu protegido, Mobutu, ao poder. A experiência no Congo-Brazzaville não foi muito melhor, até por estar associada aos acontecimentos no Zaire. Aqui Cuba apoiava o governo no poder, que estava sob ameaça de grupos de oposição e de seu próprio exército. Nesse caso, porém, foram os cubanos a retirar-se voluntariamente, não obstante o pedido do governo de que permanecessem.
O quadro de pessimismo cubano em relação aos movimentos africanos vai virar com a experiência na Guiné-Bissau, em 1967. O Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), liderado por Amílcar Cabral, revelou-se extremamente organizado e disciplinado. Cuba contribuiu com tropas e principalmente com ajuda médica. Como o PAIGC queria resguardar o caráter nacional de sua luta, a presença cubana foi mantida em segredo, mas revelou-se decisiva no caminho que levaria a Guiné-Bissau à independência de Portugal, em 1973.
A intervenção em Angola, em 1975, abriu um novo capítulo na política exterior de Cuba. Até então, as intervenções cubanas haviam sido desvinculadas de Moscou. Castro não poupava críticas à própria experiência socialista soviética, suas relações com governos militares na América Latina e sua política intervencionista em Cuba. O envio de tropas a Angola não foi coordenado com Moscou: havia um interesse comum, mas de forma alguma um “alinhamento automático”. Ao estourar do conflito, a FNLA (Frente Nacional para Libertação de Angola) era o movimento mais forte, em termos de financiamento e apoio militar (apoio cedido pelo Zaire, Estados Unidos e África do Sul), enquanto o MPLA (Movimento para Libertação de Angola) mostrava-se o mais organizado e qualificado para tomar o poder e organizar a construção de um estado. A grande revelação trazida por Gleijeses é a relação dos Estados Unidos com o Zaire e depois com a África do Sul, no que se refere ao financiamento ao FNLA e, depois, à coalizão FNLA-Unita. Dada a situação do apartheid na África do Sul, os Estados Unidos não podiam assumir uma relação com esse país, mas tudo indica que houve um diálogo explícito entre os dois para que as tropas da África do Sul dessem treinamento à FNLA e, posteriormente, interviessem de maneira direta em prol da FNLA-Unita. Além dessa parceria, oficialmente negada, os Estados Unidos teriam concedido apoio financeiro a Mobutu, no Zaire, para que esse apoiasse a FNLA-Unita, evitando, assim, um envolvimento direto. Cuba, bem como nos casos anteriores, nunca esteve presente nos cálculos norte-americanos e talvez isso tenha contribuído para a vitória final do MPLA no campo de batalha. Na verdade, a própria intervenção cubana, a despeito do que se poderia pensar, tardou a chegar. Gleijeses aponta como fator decisivo para o envio das tropas a descoberta da presença sul-africana em Angola e o medo de que, assim, a coalizão FNLA-Unita tomasse a capital Luanda. No caso de Moscou, também houve uma forte hesitação, em função do clima de détente com os Estados Unidos. O episódio, contudo, marca a aproximação e o início de uma coordenação entre Cuba e União Soviética (a se revelar no caso da Etiópia e da Somália em 1977-1978, por exemplo).
Conflicting Missions vem suprir uma lacuna no debate acadêmico sobre a política exterior de Cuba e sua postura em relação à União Soviética e também traz revelações quanto à política externa norte-americana na África no período delimitado. Aspectos polêmicos que antes eram debatidos no plano das conjecturas agora podem ser comprovados, dado o trabalho com arquivos até então fechados ao público. Restam, contudo, aspectos a serem retomados, especialmente os lados soviético e africano da história, a partir dos arquivos destes últimos, e o autor faz questão de ressaltar esse porém.
Gleijeses escreve de maneira rica e não apenas inova, como traz à tona trabalhos históricos anteriores e retoma os debates aos quais a obra vem dar a sua contribuição. Ele contextualiza o período e facilita a compreensão dos diversos debates históricos mesmo ao leitor mais desinformado. Para quem acompanha o tema, o livro não apenas enriquece, mas instiga a busca daquelas informações que ficaram faltando para fechar esse capítulo da história.
Resenhista
Roberta Holanda Maschietto
Referências desta Resenha
GLEIJESES, Piero. Conflicting Missions. Havana, Washington and Africa, 1959-1976. Chapel Hill: North Carolina University Press, 2002. Resenha de: MASCHIETTO, Roberta Holanda. Revista Brasileira de Política Internacional, v.46, n.1, 2003. Acessar publicação original [DR]
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