Concelhos e organização municipal na Época Moderna | Joaquim Romero Magalhães
Nas últimas duas décadas é possível observar uma tendência cada vez maior entre os pesquisadores de divulgar seus trabalhos por meio de artigos. Isso se deve, em boa medida, ao acesso amplo e gratuito que a maior parte das revistas e periódicos online tem permitido, assim como à praticidade de se congregar os resultados de projetos de pesquisa em um único livro2. Se por um lado, essa modalidade de publicação é extremamente benéfica, por permitir um acesso mais conciso às ideias que cada autor quer transmitir, por outro, acaba estimulando a dispersão de suas contribuições historiográficas.
É tentando contornar esse problema e, ao mesmo tempo, articulando alguns resultados de 44 anos de carreira que Joaquim Romero Magalhães publicou pela Editora da Universidade de Coimbra o seu “Concelhos e organização municipal na Época Moderna”. Trata-se do primeiro volume de uma série prevista para três coletâneas intitulada “Miunças” (termo que, aludindo ao conjunto de produtos menos volumosos que compunham parte dos dízimos, explica o lugar que este trabalho tem na totalidade da obra do autor: um conjunto de miudezas que passam a ser agrupadas segundo alguma temática e que assim, ganha algum sentido mais amplo) que tem por objetivo reunir as publicações do autor sobre as temáticas dos Concelhos Municipais 3, da História Econômica do Algarve e do Regime Republicano em Portugal.
Nesse primeiro volume, encontram-se reunidos oito artigos – publicados entre 1994 e 2011 – que destacam a força da organização municipal no espaço político português, do reino e do ultramar, além de trazer um apanhado de fontes que utiliza para trabalhar a atuação de juízes ordinários, na América Portuguesa, fora do âmbito concelhio.
No primeiro deles, “As estruturas sociais de enquadramento da economia portuguesa de Antigo Regime: os concelhos” 4, a ideia central é a de que o processo de estruturação dos poderes em Portugal, no início da Época Moderna, condicionou suas principais características econômicas. Como principal estratégia para fazer frente à dependência que tinham em relação aos senhorios e visando fortalecer seu próprio poder, os monarcas portugueses, passaram a tentar colocar em prática uma série de medidas voltadas, por um lado, ao fortalecimento do poder concelhio e, por outro, à tentativa de sua uniformização. Com essa tese, Romero Magalhães nos apresenta um quadro de fortalecimento mútuo dos poderes centrais e dos poderes locais na constituição do Estado Moderno Português. Para ele, uma autoridade central só poderia fazer-se presente ao longo daquele território se contasse com o apoio dos homens poderosos de cada localidade. Estes, ao longo do século XVI e do XVII, terão suas bases de poder e autonomia cada vez mais ampliadas e garantidas, chegando a formar, de acordo com o autor, uma verdadeira “oligarquia concelhia” 5. Assim, a distribuição do Poder em Portugal, pela “hipertrofia” das competências municipais, tem – nas palavras do autor – uma característica “a-regional” e “anti-regional”. Tal distribuição espacial do poder seria mantida pelos interesses de uma elite local forte e engajada num posicionamento político voltado a conservá-la dessa forma, negociando diretamente com o centro e sem tolerar qualquer espécie de intermediário regional. Ele conclui então que o principal corolário econômico dessa característica é o isolamento, ou “enquadramento”, de cada concelho em si mesmo: as câmaras municipais, atuando sobre a regulação do mercado e preservando, cada uma, seus próprios interesses, impediram a formação de mercados regionais integrados e, consequentemente, a integração econômica do reino.
Seguindo a proposta do primeiro artigo, no segundo, intitulado “Os nobres da governança das terras”6 Joaquim Romero Magalhães vai examinar mais a fundo o surgimento desse grupo social que se forma a partir da ocupação dos cargos municipais e do exercício da vereança. Ele entende que essa “nobreza” finca suas raízes nos “cidadãos” dos concelhos medievais, grupo que, com as tentativas de uniformização postuladas desde as Ordenações Afonsinas e das reformas nos forais, tende a se perpetuar na ocupação desses espaços ao mesmo tempo em que vão se fechando enquanto oligarquias locais. O interesse da monarquia em fortalecer e, ao mesmo tempo, perpetuar esses “nobres” no governo dos povos é demonstrado no conjunto de leis que tinham o objetivo de controlar a “qualidade” das pessoas que poderiam governar os concelhos. Assim, aquilo que poderia parecer uma demonstração da fraqueza dos poderes centrais em relação à força dos poderes locais é, na verdade, uma estratégia política da Coroa visando garantir as bases de sustentação de seu poder fora de Lisboa.
Partindo de uma comparação entre a metade ocidental e a metade oriental do império português o terceiro artigo, “Algumas notas sobre o poder municipal no Império Português do oriente durante o século XVI” 7, foca-se sobre as especificidades das Câmaras Municipais do Estado da Índia. Para ele, o que caracteriza a ocupação portuguesa no Oriente é seu caráter marcadamente militar. Por conta disso, suas câmaras embrenharam-se nos assuntos militares com uma frequência muito maior. Era um Estado muito mais difícil de ser administrado, não só por sua dispersão e pela tremenda distância que o separa do reino, mas, pela quantidade e pelo poderio dos inimigos, com quem se tinha de lidar frequentemente. Assim, a autonomia das Câmaras poderia ser bem menor onde houvesse uma autoridade militar de destaque, como um Governador. Entretanto, Romero Magalhães destaca o incrível poder de resistência e de denunciação que essas instituições tinham diante de poderes que, teoricamente, deveriam supervisionar os delas, como os Ouvidores e até os Capitães das Fortalezas.
Em “Uma estrutura do império português – o município: o caso de Macau”8, quarto artigo da coletânea, é feito um estudo do maior exemplo que a força da organização municipal possuía no mundo português. Por ser a localidade mais distante de Lisboa, o caso de Macau apresenta-se, ao mesmo tempo, paradigmático e singular no contexto do império. Paradigmático porque confirma a organização municipal não só como “mais um modelo”, mas “o” principal modelo de organização da vida em coletividade: Macau surge como tantos outros municípios, fundado de forma quase automática, pela comunidade mercantil ali estabelecida, de acordo com as formas de administração que se conheciam no reino. Singular, porque sua Câmara acumulou poderes e capacidade de autogoverno como nenhuma outra no império: chama a atenção seu papel diplomático reconhecido e respeitado pelos poderes centrais e pelos Imperadores da China; além disso, é dessa câmara que provinha a nomeação do corpo eclesiástico e militar. É, portanto, a câmara que mais potencializou as capacidades de negociação e de representação nela investidas.
O quinto artigo “Elementos da História Municipal comparada: os impérios português e espanhol no Atlântico” é formado pela junção e rearranjo de três trabalhos apresentados em congressos pelo autor, portanto inédito, até então9. Através de uma comparação entre os modelos de organização municipal aplicados no império português e no espanhol, ele traça semelhanças e diferenças. Em ambos os casos, as fases de conquista foram logo seguidas pela fundação de Câmaras Municipais e Cabildos, algo que encara como uma predisposição natural de se organizar a vida em comunidade com base nos modelos trazidos da península ibérica. Da mesma forma que no reino, se formaram comunidades políticas no ultramar, dirigidas por elites locais, cuja lealdade a seus respectivos soberanos assentava a manutenção dos impérios. Quanto às diferenças, ele dá enfoque à especificidade na composição desses dois órgãos: nas Câmaras, os oficiais eram escolhidos anualmente por um complexo sistema que envolvia indicação, eleição e sorteio, de dois juízes ordinários e, no máximo, três vereadores; já nos Cabildos, por outro lado, poderia haver até doze regidores (oficial equivalente ao vereador português) que, a partir de 1545, poderia ser um cargo adquirido por meio de compra ou sistema de herança – que no mundo português só seria cabível a alguns poucos, como os de tabelião e escrivão.
Em “Reflexões sobre a estrutura municipal portuguesa e a sociedade colonial brasileira” 10, tenta demonstrar que o modelo de distribuição dos poderes no reino de Portugal, isto é, numa estrutura horizontal de caráter “antiregional” e “a-regional”, é aplicável às suas possessões na América. Argumentando que mesmo havendo poderes nomeados para terem uma jurisdição e uma abrangência regional (como os Governadores, Ouvidores e CapitãesMores) as Câmaras Municipais foram responsáveis por dar estabilidade social aos grupos políticos locais que, através delas, detinham capacidade elevada para contestar esses poderes e, na maioria das vezes, saírem vitoriosas nos conflitos de jurisdição. Numa conclusão cheia de provocações ele defende a existência de uma vasta rede oligárquica que, amparada nos privilégios que o acesso ao poder municipal lhe garante, perpetua sua estabilidade e coesão: a força dessas oligarquias municipais é o que explica, em sua opinião, a unidade política de um território tão vasto como o Estado do Brasil.
“Os municípios e a justiça na colonização portuguesa do Brasil – na primeira metade do século XVIII”, sétimo artigo, é fruto de uma conferência que o autor proferiu no Recife, no III Encontro Internacional de História Colonial, sendo esta sua primeira publicação. Nele, Romero Magalhães atentou que, acompanhando o movimento de expansão das fronteiras na América Portuguesa, na virada do século XVII para o XVIII, sucede a criação de algumas vilas nos territórios recém-conquistados. Justificando-se essas fundações na necessidade de melhor administrar a justiça, criava-se outro problema: a cada nova vila que se funda, se amputa automaticamente o termo de outra, com ele, fontes de renda e de jurisdição para uma dada Câmara; além disso, já que ter uma quantidade razoável de habitantes era critério necessário para se elevar uma povoação à categoria de Vila, não se poderia fundá-las em qualquer localidade, pois estes se encontrariam territorialmente dispersos. Constituem essas as condições para a ocorrência de uma das maiores especificidades da administração da justiça no Brasil: a nomeação de “juízes ordinários”, homens iletrados e sem ligações com Câmaras Municipais, que exerciam jurisdição por vastos territórios, cuja população estava dispersa e separada por grandes distâncias de qualquer freguesia ou vila.
O oitavo, e derradeiro artigo, “Documentos sobre ‘Juízes Ordinários’ nos territórios brasileiros no século XVIII”, até então inédito, aprofunda a discussão proposta no artigo anterior. Tratando de casos na Bahia, Piauí, Goiás e Minas Gerais, ele identificou um procedimento comum na nomeação desses “juízes ordinários”. Primeiramente, é feita uma representação demonstrando a necessidade de a justiça ser administrada numa região remota e, em seguida, alguma autoridade de competências centrais, seja um Ouvidor ou um Governador, procede à criação desse cargo, justificando-a sempre como uma medida emergencial e provisória, sujeita a confirmação do Conselho Ultramarino. Romero Magalhães encara a criação desses cargos, nomeados arbitrariamente por autoridades régias, como uma necessidade advinda da expansão das estruturas de governo para áreas antes não colonizadas o que prenuncia a formação de uma vila e, com ela, de uma Câmara.
O conjunto da obra oferece uma visão do mundo português através de sua forma de organização administrativa mais elementar: o município. Sendo a monarquia portuguesa construída, no reino, com base nas alianças entre uma autoridade central e múltiplas autoridades locais não é difícil fazer abranger essa dinâmica para a formação do espaço político dos ultramares. A maior parte dos territórios não contava com a presença de oficiais régios, mas grande parte deles contava com a organização municipal, ou um representante da justiça (mesmo que ordinária e iletrada). Mesmo assim, as autoridades régias raramente saíam dos locais de sua residência, e mesmo quando o faziam, nem sempre tinham condições de jurisdicionar em todas as povoações debaixo de sua alçada: ao longo de um ano, o ouvidor de Pernambuco, por exemplo, no último quartel do século XVII, não tinha a menor condição de percorrer todas as povoações da Capitania, ao ponto de aparecer em algumas delas, como Alagoas do Sul, uma vez a cada dois anos11.
Assim, temos o vislumbre de uma monarquia interligada pela “malha” ou “rede concelhia”. Esta rede garantia a possibilidade de negociação de interesses centrais e locais aonde quer que sua abrangência alcançasse. Para o rei, sua existência materializava um verdadeiro campo de comunicação e de conexão. Para as elites locais, significava um portal de acesso ao monarca e, portanto, um canal de legitimação de sua distinção social. Se o Reino de Portugal e suas conquistas formavam efetivamente uma monarquia pluricontinental12, suas bases se assentam na força dos municípios: em situações de guerras, forneciam condições para a defesa das praças; na frequente escassez de recursos do Erário, eles arrecadavam os donativos; aonde a justiça régia não chegava, lá estavam a jurisdicionar. Entretanto, não basta entender esta rede como uma mera cadeia de transmissão de ordens, pois receber ordens de um poder central não significa, necessariamente, cumprir com elas. Como defende Joaquim Romero Magalhães, as Câmaras estavam sempre dispostas a negociar e esquivar-se das vontades de El Rei.
Notas
1. Agradeço a CAPES pelo financiamento da pesquisa.
2. Note-se, por exemplo, a repercussão que as coletâneas organizadas por professores da Universidade Federal Fluminense e da Universidade de São Paulo tem alcançado sobre as monografias de conclusão de curso, dissertações de Mestrado e Teses de Doutorado. Cf.: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima & BICALHO, Maria Fernanda B. (Orgs.). O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003; FERLINI, Vera Lúcia & BICALHO, Maria Fernanda (Orgs.). Modos de Governar: ideias e práticas políticas no Império português – séculos XVI a XIX. São Paulo: Alameda, 2005; SOUZA, Laura de Mello e; FURTADO, Júnia Ferreira; BICALHO, Maria Fernanda (Orgs.). O Governo dos Povos. São Paulo: Alameda, 2009; FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). Na trama das redes: política e negócios no mundo português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
3. Optou-se por preservar a grafia lusitana do termo “concelho”, já que mantém a distinção entre os órgãos locais (concelhos) e aqueles que compunham a Coroa Portuguesa (Conselhos).
4. Publicado com o mesmo título, pela primeira vez, no periódico: Notas econômicas. Coimbra: FEUC, nº 4, 1994.
5. Nuno Gonçalo fez uma ressalva em relação ao uso da expressão “Oligarquias” para referir-se aos grupos que ocupavam os cargos nas centenas de câmaras portuguesas, já que tende a enquadrar uma vasta pluralidade de composições sociais num grupo homogêneo. Além disso, ele argumenta que “o termo oligarquias municipais’ tende a conferir uma identidade social a uma categoria institucional (a dos vereadores camarários) cuja existência como grupo social carece de demonstração” (MONTEIRO, 2006, p.45). Essa serve de “ponto de partida” para que ele comprove a tendência a um desinteresse das elites locais dos pequenos municípios em ocupar os espaços da vereança, pelas poucas oportunidades de acrescentamento social que trariam. MONTEIRO, Nuno. Elites locais e mobilidade social em Portugal no final do Antigo Regime. In: Elites e Poder: entre o antigo regime e o liberalismo. 2ª Edição revista. Lisboa: ICS. Imprensa de Ciências Sociais, 2006. pp. 37 a 82.
6. Publicado pela primeira vez em: Optima Pars, Elites Ibero-Americanas do Antigo Regime. MONTEIRO, Nuno Gonçalo; CARDIM, Pedro e CUNHA, Mafalda Soares da (Orgs.). Lisboa: ICS. Imprensa de Ciências Sociais, 2005.
7. Publicado sob o título “Algumas notas sobre o poder municipal no império português durante o século XVI” na Revista Crítica de Ciências Sociais. Coimbra: CES nº 25-26, 1998.
8. Originalmente intitulado “Uma estrutura do mundo português: o município”, publicado no Ciclo de Conferencias Portugal e o Oriente. Lisboa: Fundação Oriente Quetzal, 1994.
9. Do mesmo autor: “Os primórdios de uma vida ‘segura e confortável’ no Brasil”. In: O poder local em tempo de globalização, uma história e um futuro. Coimbra: Imprensa da Universidade – CEFA, 2005; “Respeito e lealdade: poder real e municípios nas colônias hispânicas durante os séculos XVI e XVII”. In: História do Municipalismo – Poder Local e poder central no mundo ibérico. Funchal: CEHA, 2006; “A rede concelhia nos domínios portugueses”. In: Poder Local, cidadania e globalização. Actas do Congresso Comemorativo dos 500 anos de elevação de Ribeira Grande a Vila (1507-2007). Ribeira Grande: Câmara Municipal, 2008.
10. Do mesmo autor, com o mesmo título, foi publicado na Revista de História Económica e Social. Lisboa: Sá da Costa nº 16, 1985.
11. Algumas correições dos Ouvidores de Pernambuco ficaram registradas no Segundo Livro de Vereações da Câmara de Santa Maria Madalena da Lagoa do Sul: Arquivo do IHGAL 00006-01-02-01 2º Livro de Vereações da Câmara de Alagoas do Sul.
12. Como tem sugerido, dentre outros, os trabalhos de João Fragoso e Maria de Fátima Gouvêa, Cf. FRAGOSO e GOUVÊA, 2010, Op. Cit.
Resenhista
Arthur Almeida Santos de Carvalho Curvelo – Graduado em História Bacharelado na Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Atualmente é mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: arthurcurvelo90@hotmail.com
Referências desta Resenha
MAGALHÃES, Joaquim Romero. Concelhos e organização municipal na Época Moderna. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011. Resenha de: CURVELO, Arthur Almeida Santos de Carvalho. Uma visão municipal do mundo português1. Revista Ultramares. Maceió, n.2, v.1, p. 179- 184, ago./dez. 2012. Acessar publicação original [DR]