Conceitos elementares da Guerra Fria nos livros didáticos | Leonardo Augusto de Carvalho

Guerra Fria CanvaPro

Intitulada Conceitos elementares da Guerra Fria nos livros didáticos, a obra é resultado de um curso de especialização em Saberes e Práticas na Educação Básica, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CESBEP/UFRJ), em 2018, na qual são condensados questionamentos que emergiram das experiências de Leonardo de Carvalho Augusto, a partir de seu trabalho na educação básica como professor de História e as reflexões alcançadas a partir da pós-graduação. Dessa forma, pode conciliar questões do mundo contemporâneo com indagações próprias ao ensino de História.

Guerra Fria Conceitos elementaresO livro tem como objeto a escrita didática em torno de um tema: a Guerra Fria. Influenciado pela teoria da história alemã atrelada à história dos conceitos de Reinhart Koselleck e da Didática da História de Jörn Rüsen, Carvalho Augusto investigou como os conceitos que dão realidade à Guerra Fria foram mobilizados e em que medida contribuíram para a constituição de um sentido a partir da narrativa dos livros didáticos.

Carvalho observou os conceitos e sua relação com os exercícios, suas implicações na constituição da narrativa da narrativa esperada pelos autores a ser compreendida pelos alunos, revelando o enredo utilizado em sua composição. Escolheu para a sua análise quatro livros didáticos de história, três da terceira série do Ensino Médio, com edições em 2010, 2013 e 2016, e uma coleção do nono ano do Ensino Fundamental. Tais fontes não apenas permitiram acessar padrões na escrita, mas também autorizariam a compreender suas transformações nesse intervalo temporal.

Outro critério que fundamentou a escolha desses materiais foi o fato de terem tido ampla vendagem e de serem elaboradas por historiadores renomados nos círculos acadêmicos. Tais materiais foram analisados à luz da análise de discurso, a partir da constituição de ferramentas de registro e contagem, através dos quais foram produzidas as análises.

Diferente da maioria das pesquisas que tratam dos conteúdos presentes nos livros didáticos a partir de uma “historiografia da falta”, caracterizada por Margarida Dias de Oliveira (2010) pela tentativa de localizar erros ou ausências nos livros didáticos, essa pesquisa oferece (mesmo que de maneira superficial e ainda marcada por alguns vícios decorrentes de tal historiografia) outra forma de tratar os conteúdos presentes nessas produções. Isso ocorre na medida em que busca os sentidos atribuídos ao passado a partir da narrativa histórica e de seus elementos epistemológicos, mesmo que, em algum momento, passe a sensação de que os livros didáticos estão errados na produção de sentido estabelecida a partir da Guerra Fria, deixando de lado a capacidade de refletir a respeito da relação desses constructos e os contextos em que foram produzidos, ignorando a historicidade presente em tais enredos e em seu processo de produção. Deve ser pensada, assim, como uma obra na fronteira entre uma abordagem estruturalmente consolidada e novas formas de produção constituídas mediante o contato com outras leituras teóricas já citadas.

Composta por três capítulos, a obra demonstra, inicialmente, a existência de uma perspectiva consolidada em torno desse evento – segundo a qual a Guerra Fria é demarcada por uma perspectiva triunfalista em torno do capitalismo e desencadeada a partir da falência do bloco socialista, apontando aquele modelo econômico como único possível  – que faz parte do senso comum e é reapropriada na produção de outras linguagens. Essa narrativa, porém, não corrobora as ideias a respeito das tensões que se desenvolviam no bloco tanto capitalista quanto socialista, apresentando, assim, uma perspectiva desencantada e conciliatória que favoreceu a elaboração de uma ideia de vencedor e perdedor. Essa narrativa tende a demonstrar que o conflito entre as duas potências era iminente e que haveria uma tensão materializada em uma série de conflitos bélicos reais, os quais seriam utilizados como forma de manter a atenção dos alunos. Embora este seja um ótimo argumento, o qual é seguido pelo esforço cognitivo do autor em formular uma outra narrativa possível mediante outra estrutura de enredo, a tese carece de mais dados empíricos que possibilitem acompanhar a análise. A ausência desse tipo de recurso empobrece o método empregado e obriga o leitor a acreditar apenas no pacto estabelecido entre locutor e interlocutor.

No segundo capítulo, o autor se propõe a apresentar os elementos teórico-metodológicos que foram mobilizados para o exame de suas fontes. Parte da ideia do campo do Ensino de História como um entrelugar que possibilita observar os saberes ensinados. Para fazê-lo, dialoga com autores como Ana Maria Monteiro (2011) e Fernando Penna (2011). Em seguida, a fim de pensar sobre as narrativas históricas e os aspectos que constituem sentido, aporta-se nas reflexões apresentadas por Mauro Coelho (2017) a respeito do papel do enredo nesse processo, o qual forneceria coerência e sentido à narrativa. É a partir desses referenciais que o autor assinala suas ferramentas de análise.

No último capítulo, o autor constata que os dois conceitos mais utilizados são os de “cronologia” e “bipolaridade”. Para ele, os didáticos não apresentariam a Guerra Fria como uma crise das relações internacionais desenvolvidas antes mesmo da Segunda Guerra Mundial, mas como uma correlação de forças mutuamente excludentes desenvolvidas após seu fim. Esse enredo também excluiria a existência de protagonismos de outros eventos que seriam explicados, unicamente, pela metáfora da climatologia, existindo uma Guerra “fria” e uma “quente”, sendo a segunda decorrente da primeira. O autor ainda sinaliza para a existência de uma tendência que se prende a aspectos formais, como cronologia e definição, os quais corroborariam a constituição de um ensino baseado na memorização, afastando-se de questões ligadas a crises políticas e suas incertezas.

Poluicao de garrafas plasticas

Poluição de Garrafas plásticas | Imagem: chaiyapruek2520 CanvaPro

O autor também identifica transformações que esses conteúdos passaram a sofrer a partir das edições de 2013. A primeira delas estaria no aspecto material, marcado pela adoção de elementos interdisciplinares, inclusão de sugestões de leitura, filmes e textos e uso de elementos remissivos. A segunda mudança estaria na adoção de novos formatos de enredo que ultrapassavam a ideia de climatologia e medo nuclear para voltar-se a aspectos de caráter social e ambiental, incorporando novas formas de abordagens históricas, como a história a contrapelo. O autor conclui que as narrativas compostas a partir das atividades presentes no livro didático se configuram como elementos de negociação entre os saberes constituídos e acumulados pelos professores e as demais narrativas que se distendem no espaço escolar.

A obra em questão se configura como bom exemplo para outras possibilidades de análise em torno dos conteúdos substantivos presentes nos livros didáticos, mesmo que de maneira superficial, indicando formas de observar as narrativas didáticas em termos metodológicos, assim como seu lugar na composição e reprodução de uma cultura histórica em sua relação com o presente. Tal reflexão pode ser expandida para qualquer outra produção cultural que tenha, como centralidade, narrativas de caráter histórico, operando, assim, com as suas dimensões comunicativas e os sentidos que essas narrativas ganham no mundo social a partir de seu direcionamento a um dado público-alvo.

A obra, contudo, requer leitura atenta, uma vez que as conclusões não aparecem como um espaço remissivo dos argumentos do autor. Um exemplo disso é o fato de o autor afirmar que foi possível compreender os critérios que orientam a forma de produção das narrativas históricas nos materiais didáticos que chegam aos alunos, sem retomar, sinteticamente, em que se constituem esses parâmetros, dificultando o fechamento das ideias, na medida em que as deixa a cargo do leitor.

Além disso, apesar de ser uma abordagem seminal, a obra dá poucos passos – porque guarda reflexos – em relação à “historiografia da falta”, apresentando as narrativas didáticas como carentes de outro tipo de enredo. Quando tem a chance de sugerir suas potencialidades, o autor afirma que esse trabalho contribui para sinalizar a necessidade de elaborar pesquisas que visem à análise de imagens e recursos multimídia, deixando de lado a possibilidade de observar as intencionalidades presentes no texto didático, assim como a sua historicidade. Essa derradeira compreensão não apenas permite que se observe o livro como um objeto para a constituição de pesquisas formais, mas também orienta para um nível de reflexão que estamos pouco acostumados a fazer e que perpassa a própria prática de produção dos historiadores: a incapacidade de constituir uma narrativa imparcial.

Numa visão de conjunto, a obra serve para compreendermos como determinada teoria da história alemã e seus conceitos têm sido reapropriados pelas pesquisas que, por sua vez, têm se desenvolvido no contato com outras perspectivas já consolidadas no Brasil. Oferece também um formato de pesquisa que supera a ideia de análise de discurso sem a constituição de dados quantitativos que embasem as inferências produzidas. Por último incita o leitor a observar a dimensão do sentido presente nas narrativas históricas, limitadas no texto as produções didáticas, mas com fácil possibilidade de expansão para outras linguagens. Lamentável, contudo, que as suas conclusões sejam desmotivadoras, na medida em que sinalizam não serem as pesquisas de identificação e catalogação das características narrativas capazes de produzir efeitos na produção historiográfica e didática a respeito desse tema. Cabe aqui mencionar que esses procedimentos são cruciais para a constituição de proposições, pois revelam as características das produções, autorizando observar práticas e usos, permitindo visualizar padrões e tendências. Em outras palavras, permitem o mapeamento das produções, criando os parâmetros para que se justifique a composição de outras narrativas, sejam elas realizadas a partir do trabalho em sala de aula, sejam para a composição de materiais didáticos a serem lançados no mercado. Compreender é o caminho para modificar.

Referências

AUGUSTO, Leonardo de Carvalho. Conceitos elementares da Guerra Fria nos livros didáticos. Rio de Janeiro: Mundo contemporâneo, 2020.

OLIVEIRA, Margarida Dias de. O direito ao passado: uma discussão necessária à formação do profissional de História. Sergipe: EDUFS. 2010.

FREITAS, Itamar.  Fundamentos teórico-metodológicos para o ensino de História (Anos iniciais). São Cristovão: EDUFS, 2010.


Sumário de Conceitos elementares da Guerra Fria nos Livros Didáticos

  • Introdução
  • Capítulo 1 – A história do tempo que o gafanhoto comeu – que sentidos assumem os principais conceitos presentes nas narrativas históricas escolares sobre a Guerra Fria?
  • Recontando um conhecimento pretensamente consolidado
  • Capítulo 2 – Índices, enredos, questões – o papel dos itens de livros didáticos no ensino-aprendizagem da Guerra Fria
  • Capítulo 3 – Construindo rivalidades: a aposta na divisão (n)o mundo pós-Guerra
  • Mudanças na História – volume 3, em pleno ano de manifestações: a edição de 2013
  • A “História Sintética” – a edição de 2016/2017
  • “História.doc”
  • Considerações Finais
  • Notas
  • Anexos
  • Referências bibliográficas

Resenhista

Jandson SoaresJandson Bernardo Soares – Doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Publicou, entre outros trabalhos, A institucionalização do livro didático no Brasil (2021) “História e Espaços do Ensino: historiografia”, “PNLD e a busca por um livro didático ideal, A institucionalização do livro didático no Brasi.” e “Produzindo livros didáticos de História: prescrições e práticas – notas de uma pesquisa em andamento”. ID: 0000-0001-8195-5113. E-mail: jandson_ze@hotmail.com.

 


Para citar esta resenha

AUGUSTO, Leonardo de Carvalho. Conceitos elementares da Guerra Fria nos livros didáticos. Rio de Janeiro: Mundo contemporâneo, 2020. 46p. Resenha de: SOARES, Jandson Bernardo. Por uma análise de sentido nas narrativas históricas. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.5, p.16-20, maio/jun. 2022. Disponível em<https://www.criticahistoriografica.com.br/2717/> Acessar publicação original.

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.