Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro | Camillia Cowling

A edição brasileira do livro “Concebendo a Liberdade: mulheres de cor, gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro” da historiadora inglesa Camillia Cowling, professora de história da América Latina da Universidade de Warwick, foi lançada em 2018 pela editora da Universidade Estadual de Campinas, São Paulo. O livro é uma tradução do original intitulado Conceiving Freedom: Women of Color, Gender, and the Abolition of Slavery in Havana and Rio de Janeiro, lançado em 2013 pela University of North Carolina Press e, desde 2010, partes da obra já vinham sendo divulgadas em publicações internacionais pela autora.

Cowling trouxe para o centro desta narrativa as histórias de vida (ou pelo menos parte das histórias) de duas mulheres libertas: Ramona Oliva e Josepha Gonçalves de Moraes. Elas transcorrem por toda a obra, desde a introdução, quando a autora nos transporta para os respectivos dias em que estas mulheres, a primeira em Havana, a segunda no Rio de Janeiro, entraram com pedido de custódia de seus filhos nas instâncias judiciais máximas de cada uma destas cidades: Ramona no Gobierno General em Havana em busca de libertar seus quatro filhos María Fabiana, Agustina, Luis e María de las Nieves, e Josepha no tribunal local de primeira instância e depois no Tribunal de Relação no Rio de Janeiro, um tribunal de apelação, em busca de liberta sua filha Maria. Ramona teve que enfrentar “um dia escaldante do verão caribenho de 1883” e Josepha, diferentemente da cubana, “provavelmente sentiu arrepios de frio […] enquanto caminhava pelas ruas da cidade [do Rio de Janeiro]”, em agosto de 1884, quando é inverno na cidade. (COWLING, 2018, p. 23)

Passamos pelas suas possíveis experiências de vidas que envolveram tráfico, a sobrevivência no cativeiro, a maternidade, morar ou pelo menos conhecer o funcionamento destas cidades com longa tradição de escravidão urbana, o alcance da liberdade para si próprias e a busca desta condição para seus filhos e a restituição de suas unidades familiares e melhor futuro para os frutos de seus ventres. Até o desfecho de suas trajetórias no que diz respeito ao alcance da liberdade para seus descendentes, que a autora já antevê, afirmando não ter havido um “final feliz”. Apesar de distantes geograficamente, praticamente 6.500 quilômetros entre as duas cidades, com os climas como testemunhas, havia mais coisas que unia estas “mulheres de cor” do que as separava. Assim como havia mais coisas que unia as próprias cidades de Havana e Rio de Janeiro do que as separava.

O contexto no qual adentramos no livro é o de fins do século XIX, especialmente pelo fato de Ramona e Josepha terem acessado a justiça, a primeira em 1883 e a segunda em 1884, manejando as legislações emancipacionistas que foram promulgadas em seus respectivos países. Cowling se debruça sobre as décadas de 1870 a 1880 para analisar os entrelaçamentos entre “duas sociedades com tradição ibérica”, expressão que caracteriza a forma como a autora maneja sua análise comparativa entre as duas cidades, pelo fato de ambas serem ibéricas, como são compreendidas Havana e Rio de Janeiro, quando comumente estudos comparativos elegem uma sociedade ibérica e uma não ibérica, assim como duas “cidades portuárias do Atlântico”, expressão utilizada para pensar no grande fluxo de pessoas, especialmente aquelas oriundas da diáspora africana, que caracterizaram culturalmente cada uma destas cidades e elas entre si.

Os laços envolvem duas economias de plantation: a primeira de açúcar, a segunda de café, duas cidades de tradição da escravidão urbana, considerando que a população escrava constituía metade ou mais da metade dos seus habitantes, assim como tradição de liberdade, devido as práticas de manumissões comuns nestas sociedades, menos pela benevolência e vontade senhorial e mais pela negociação e conquista dos indivíduos escravizados, principalmente das mulheres, e duas cidades em que os desdobramentos da legislação emancipadora relacionadas ao “ventre livre” abriram outros caminhos para que “mulheres de cor” – expressão eleita pela autora para se referir as mulheres que viveram a experiência da escravidão – interagissem com a justiça.

Em relação ao uso da expressão “mulheres de cor” talvez houvesse mais possibilidades para a autora se ela trouxesse os significados e sentidos dos vocábulos de classificações de cor, com base no léxico da mestiçagem e da escravidão, que foram atribuídos as protagonistas, mas também a tantas outras mulheres apresentadas ao longo da obra, pois o fato de Ramona ter sido classificada como “morena” e Josepha como “parda”, diz mais sobre as possibilidades de mobilidade e sobrevivência de pessoas recém-saídas do cativeiro do que uso daquela expressão genérica.

O contexto das décadas finais do século XIX também é o contexto do fim gradual da escravidão, com a promulgação de duas leis emancipadoras que impactam a vida de Ramona e Josepha: a Lei Moret em Cuba (julho de1870) e a Lei Rio Branco ou 28 de setembro no Brasil (1871), ambas versando sobre a liberdade a partir do ventre, além da Lei do Patronato em Cuba (1880), que previa que as crianças nascidas de ventre livre deveriam ter garantida a “educação primária”. Manejando estas legislações em benefício de suas causas, estas mulheres são analisadas por Cowling a partir do conceito de “agência escrava” – termo que ela toma emprestado da historiografia brasileira sobre a escravidão, numa perspectiva revisionista – quando o que a autora busca compreender não são os sucessos ou as vitórias destas duas “mulheres de cor” e de tantas outras, mas os caminhos percorridos por elas, que dizem respeito a: como foram feitas as suas ações e os espaços alcançados para que pudessem acontecer, assim como as redes de sociabilidades construídas e as quais recorreram em suas ações, e quais foram as suas motivações que as fizeram se movimentar e movimentar toda uma sociedade e seus sujeitos, envolvidos direta ou indiretamente no desejo e vontade manifesta destas mulheres libertas que buscaram a liberdade para si próprias e para seus filhos.

O conjunto documental que a autora analisa são as ações judiciais de liberdade movidas por escravos e libertos em busca de liberdade para si próprios ou parentes, neste contexto do fim gradual da escravidão. E apesar das diferenças existentes entre Cuba e Brasil no que diz respeito as formas de acesso, aos sujeitos e cargos envolvidos e as instâncias acessadas, elas existem nos dois países. A preocupação de Cowling, neste sentido, não é analisar quantitativamente esta documentação, haja vista o desconhecimento em relação aos processos impetrados originalmente. Então ela recorre a uma análise qualitativa, a partir do que tais fontes podem representar, especialmente no que diz respeito ao sentido desta liberdade e ao estudo de gênero.

Quando a autora caracteriza estas duas sociedades com uma de “tradição de liberdade”, ela faz referência a prática da manumissão e as altas taxas de alforria identificadas, especialmente envolvendo mulheres e crianças, quando as mulheres eram elas próprias autoras de ações em favor de parentes, especialmente de filhos, e elas eram alvo destas ações, quando parentes acessavam a justiça para libertar mães, tias, avós. A autora, portanto, ao eleger as mulheres faz isso pela próprio teor das fontes, que apresentam mais mulheres envolvidas nesta busca de liberdade com base na legalidade jurídica da época, assim como por ser este o palco de atuação delas neste sentido, quando a busca da liberdade por meio da “resistência” mais escancarada, é palco dos homens: “Concentrar-se nas arenas sociais e legais em transformação nas quais as mulheres tanto se destacaram é interessante, pois muito do que sabemos sobre a tentativa das populações escravizadas de obter a liberdade ou de alterar as condições da escravidão – crimes, revoltas, fugas e quilombos – destaca prioritariamente a atuação dos escravos homens” (COWLING, 2018, p. 25).

A autora trabalha com um conjunto documental que em Havana é bastante volumoso, foram 710 ações levantadas, entre os anos de 1870 e 1886, que estão armazenadas no fundo Miscelánea de Expedientes do Arquivo Nacional de Havana, e destas 452 envolviam mulheres (64%). Em relação ao Rio de Janeiro, Cowling acessa uma documentação que já havia sido manejada por outras historiadoras brasileiras, como Keila Grinberg, 2 e diferente de Havana, um volume muito menor: 30 ações, entre os anos de 1871 e 1888, das quais 27 (90%) envolviam mulheres. Tal conjunto documental faz parte do Tribunal de Relação do Rio de Janeiro, tribunal de apelação que recebia ações que não foram resolvidas nos tribunais de primeira instância, o que significa que tais documentos são por si só mais volumosos, com muitas páginas a serem lidas e analisadas, devido aos longos anos em que estas ações se desenrolavam, diferentemente de Cuba, onde a característica destes processos era o fato deles serem resolvidos rapidamente e resultando em poucas páginas.

Ao fazer esta referência e comparação entre as experiências cubana e brasileira, no entanto, a autora toma a cidade Rio de Janeiro como o Brasil e afirma não ter ocorrido processos julgados de maneira breve e resultando em poucas páginas poucas no país, o que é um erro: “Isto não ocorreu no contexto brasileiro, onde as ações judiciais iniciadas pelos escravos podiam se desenrolar por vários anos e gerar processos com centenas de páginas – especialmente quando o caso era levado aos tribunais de apelação” (COWLIN, 2018, p. 101). Estudos sobre a escravidão de origem africana e a busca da liberdade no contexto amazônico, especialmente em Belém, capital do Pará, já analisaram ações cíveis de liberdade que resultaram em documentos de poucas páginas, pois em questão de dias, os casos foram julgados em juizados locais, inclusive em favor das requerentes libertas e escravizadas.3

E afinal, se não tivemos um “final feliz”, o que aconteceu com Ramona e Josepha? Ambas perderam nos processos em busca da custódia e liberdade de seus filhos em posse de seus ex-senhores. No caso de Josepha, em 1886, o juiz argumentou que ela não poderia cuidar de sua filha Maria porque era “há pouco liberta e amasiada”, relacionando maternidade a noções de honra, sexualidade e proximidade com a escravidão (COWLING, 2018, p. 338). Mas a autora destaca uma série de pequenas conquistas por parte de Josepha e que dizem muito sobre espaços de ação e constituição de redes de sociabilidades nestas sociedades ibéricas, tais como o próprio fato de mover uma ação judicial, a participação de testemunhas favoráveis a causa, uma certa desmoralização do seu ex-senhor, acusado de violência e descumprimento de seu papel em relação a ingênua Maria, usando a própria lei contra ele.

No caso de Ramona, apesar do esforço em viajar até Havana, quando saiu de Matanzas para recorrer ao governador geral sobre seu direito de libertar os filhos e obter a custódia deles, o caso foi devolvido as instâncias locais, a Junta do Patronato em Bolóndron e a Junta do Patronato em Matanzas, e em setembro de 1883, portanto cerca de um mês depois do início da ação, após decisão local, foi encaminhada novamente ao Gobierno General, e a decisão foi em favor de seu ex-senhor Manoel Oliva, quando foi descartada a possibilidade dela não estar cumprindo a Lei do Patronato, que era a principal argumentação de Ramona. Se Ramona não conseguiu libertar os filhos ela fez parte, assim como Josepha, da geração de mulheres que “ajudaram a dar forma ao processo de emancipação e a construir os significados de liberdade nas duas últimas nações nas Américas a abolira a escravidão” (COWLING, 2018, p. 25).

Notas

2 GRINBERG, Keila. Liberata – a lei da ambiguidade: As ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1994.

3 PALHA, Bárbara da Fonseca Palha. Escravidão de origem africana em Belém: um estudo sobre demografia, mestiçagem, trabalho e liberdade (c. 1750 – c. 1850). Belém: Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia/Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/Universidade Federal do Pará, 2019. Tese de Doutorado em História. PALHA, Bárbara da Fonseca. Escravidão Negra em Belém: mercado, trabalho e liberdade (1810-1850). Belém: Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia/Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/ Universidade Federal do Pará, 2011. Dissertação de Mestrado em História.


Resenhista

Bárbara da Fonseca Palha – Doutora em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará. Professora da Secretaria de Educação do Estado do Pará (SEDUC/PA). Membra do Grupo de Estudos e Pesquisas da Escravidão e Abolicionismo na Amazônia (GEPEAM). E-mail: barbara_palha@yahoo.com.br


Referências desta Resenha

COWLING, Camillia. Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2018. Resenha de: PALHA, Bárbara da Fonseca. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Pará. Belém, v. 08, n. 02, p. 280 – 283, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

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