Em seu conhecido Sobre o conceito da história2, Walter Benjamin alertava para os riscos de uma percepção teleológica do tempo histórico — para ele, “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele foi’” (BENJAMIN, 1987, p. 224). Nesse sentido, o afastamento do tempo presente carrega consigo, em geral, a dificuldade progressiva de exercitar a alteridade — quanto mais nos distanciamos daquilo que nos é familiar, maior é o movimento necessário para amenizar o estranhamento. Pensar a Idade Média, assim, exige um deslocamento por vezes impossível, dado que um imaginário escolar, impreciso e tortuoso, já há tempos coloniza nossas tentativas de aproximação ao Medievo.
A partir disso, num esforço de arejar a relação do contemporâneo com o medieval, o historiador francês Patrick Boucheron3, no ensaio-conferência Como se revoltar?4, publicado em 2016 na França e lançado em 2018 no Brasil, caminha no sentido de romper com esse imaginário — se não falso, ao menos incompleto — da dinâmica social medieval. À quase-abstração necessária para se pensar a Idade Média, Boucheron opõe a universalidade da experiência da juventude, a qual é indissociável, ele diz, da experiência da revolta.
Partindo, então, da metáfora célebre da “Idade Média como infância do mundo em que vivemos”, o ensaio persegue uma nova percepção do período, que transcenda “os castelos e as igrejas — sempre essa dupla aristocracia da guerra e da prece” (BOUCHERON, 2018, p. 16). Para o autor, que cita Marc Bloch para sublinhar “a história como a ciência da mudança” (id., ibid.), “não há como duvidar: na Idade Média, infância e revolta andam juntas” (id., p. 14). Boucheron retorna, então, ao imaginário contemporâneo do período medieval, observando como “durante muito tempo, os historiadores imaginaram a sociedade medieval como uma sociedade amedrontada, dominada pelo temor do castigo divino e da violência senhorial, um mundo de crianças crédulas e dóceis” (id., ibid.), e lança, assim, o primeiro questionamento da conferência: haveria possibilidade de libertação em um sistema que parece tão opressivo e cruel?
O truque de Boucheron é, claro, desmontar a imagem de crueldade do sistema, que, segundo o próprio autor, se perpetua por meio dos livros didáticos, que, ainda que escritos com “seriedade” e “honestidade”, são, ao fim, imprecisos:
O modelo senhorial e feudal talvez esteja hoje um pouco desatualizado, mas tudo bem, globalmente ele ainda é verdadeiro. Daí a ensinar aos jovens apenas histórias de dízimo, de corveia, de mãomorta, de banalidades, de talha senhorial e de servidão (…), ora, isso sim é um pouco triste e fora de uso. Será que aceitaríamos reduzir a descrição de nossa sociedade a um mero código fiscal? (BOUCHERON, 2018, p. 17)
Volta-se, aqui, a Sobre o conceito da história de Benjamin, de modo a resgatar a figura do cronista. Para o autor alemão, “o cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu poder ser considerado perdido para a história” (BENJAMIN, 1987, p. 223). Boucheron, na contramão de trabalhar com preconcepções a respeito do modelo medieval, evoca o espírito do cronista benjaminiano para, a partir da recuperação de casos isolados, redesenhar o imaginário corrente a respeito da Idade Média — “Se ela tem valores a transmitir, são valores de emancipação, e não de resignação” (BOUCHERON, 2018, p. 17).
Assim, retomando a ideia do Medievo como “infância” — ou, como o autor insiste, “adolescência” — do mundo contemporâneo, Boucheron evoca, primeiro, as Cruzadas, cujo caráter revolucionário ele sublinha. O historiador cita uma cruzada de 1212, que ganhou notoriedade como a “cruzada das crianças”5, mas que seria, na realidade, “uma cruzada dos pequenos, dos fracos e dos desarmados”. Assim, ocupando o lugar do cavaleiro, e respondendo à Igreja com independência, ocorreria a subversão de “uma ordem fundada na rígida distinção entre os que rezam, os que combatem e os que trabalham” (id., p. 12) — uma revolta. Do mesmo modo, o autor se volta a 1251, à “cruzada dos ‘pastorinhos’” — que julga obscura —, e, então, a 1321, em uma segunda “cruzada dos pastores”, para apontar que “já não restam dúvidas: trata-se de uma revolta camponesa” (id., p. 13).
Ainda sem abandonar a “juventude” — conceito que permeia integralmente a conferência, ela própria proferida a jovens, no teatro Gilberte Tsaï, em Montreuil —, Boucheron segue sua investigação sobre a genealogia da revolta e propõe um recuo à literatura infanto-juvenil — contos, fábulas, lendas e romances de aventura —, afirmando como, ao contrário do imaginário corrente sobre o período, nos textos “só se fala em liberdade, insolência, impertinência, filhos que se revoltam contra os pais, adolescentes em luta contra a injustiça, camponeses que se livram da sombra ameaçadora do castelo, salteadores que roubam os ricos para dar aos pobres” (id., p. 18).
É, assim, em Walter Scott — romancista escocês do século XIX — que Boucheron encontra a reformulação literária da Idade Média. O inventor de Ivanhoé e reinventor de Robin Hood, para o historiador, chama a atenção por criar personagens solitárias, que se afastaram das multidões, da organização social vigente. Boucheron vê, nesse gesto, outro ato de revolta. O autor, ainda olhando para Robin Hood, dedica páginas a apresentar, com bom humor e senso-crítico, os gestos de revolta ligados à personagem — da língua inglesa em que suas histórias eram escritas (que se chocava com o francês oficial do período) às narrações entusiásticas de banditismo social.
O conferencista passa, então, à caracterização visual dessas duas personagens, apontando, também no vestuário, o rompimento com a organização corrente — Ivanhoé sempre de vermelho, “cor de poder”, da “revolução”; Robin Hood sempre de verde, “cor dos loucos”, da “infidelidade amorosa”. E segue: “Judeus, prostitutas e prisioneiros são ridiculamente vestidos de tecidos listrados, para marcar sua exclusão” (id., p. 23). É justamente a partir das listras que Boucheron passa a outra revolta: a ambiguidade simbólica que se cria, “maliciosamente”. O historiador vê a figura do bufão, do bobo da corte, como instrumento de domesticação da revolta, e parte dela para um paralelo contemporâneo: “Essa questão da instabilidade dos códigos é mais séria do que parece. Talvez ela explique por que é tão difícil se revoltar hoje em dia, quando todos os sinais se tornaram ambíguos”, concluindo na sequência que “é por isso que a revolta hoje consiste primeiro em manipular os símbolos, para então ressignifica-los, apropriar-se de um universo estável e relativamente unívoco de significações” (id., p. 23-24).
A figura de Robin Hood, mais do que ilustrar as afirmações de Boucheron, conduz o historiador em sua busca pela formação da revolta medieval. É nesse sentido que ele observa como as revoltas dos séculos XII, XIII e XIV foram protagonizadas por uma parcela bastante específica da população: “Nosso revoltado típico não é pobre, mas teme a pobreza” (id., p. 29). A menção do historiador ao perfil do “revoltado típico” faz-se relevante em função de um contexto mais amplo, que envolve, justamente, o acesso à informação. Boucheron mostra como o sujeito mais disposto a se revoltar era o “artesão especializado, instruído, inserido em uma rede de solidariedade e de politização”, afirmando ainda que “ele podia ler ou ouvir discursos políticos de reivindicação social, sob a forma de texto, de imagens ou de canções” (id., ibid). É a partir daí, e caminhando até a Revolução Francesa, que o autor busca referências em cronistas do período, sublinhando a maneira como a sociedade é tratada e, por extensão, retratada nos relatos. Nos textos desses cronistas — que incluem Herman Botte, que contabilizou e classificou revoltas no século XVI na Baixa Saxônia, a Crônica do religioso de Saint-Denis, que reúne relatos de 1380 a 1422, que dá protagonismo aos revoltosos enquanto os menospreza, e anotações anônimas, como aquela que conta os percalços de Guy Moreau, com que o historiador encerra a conferência — cabe por fim apontar como Boucheron enfatiza a ocupação da praça pública pelo povo, enquanto unidade, como principal ato de revolta — “É isso a revolta, nada além disso: corpos reunidos formando uma massa que ameaça” (id., p. 33); “Pois, afinal, em que momento as revoltas estouram? (…) quando a indignação é mais forte do que o medo” (id., p. 35).
O ensaio-conferência de Boucheron, quando oficialmente finalizado, dá sequência a uma sabatina dos jovens espectadores. A palestra, como nos diz a apresentação do volume ao explicar seu objetivo, é um “gesto de amizade que atravessa gerações”.
— Entre 1929 e 1932, por encomenda de uma rádio alemã, Walter Benjamin escreveu programas destinados ao público jovem: eram narrativas, conversas, conferências, mais tarde reunidas sob o título de Luzes para crianças.
A diretora do teatro Gilberte Tsaï decidiu retomar o título para designar as “pequenas conferências” que organiza todos os anos, dirigidas tanto aos jovens (a partir de dez anos) como àqueles que os acompanham. O intuito é sempre o mesmo: iluminar e despertar. Ulisses, a noite estrelada, os deuses, as palavras, as imagens, a guerra, Galileu… Os temas não têm limites. Há, porém, uma única regra a ser respeitada: os palestrantes devem realmente falar aos jovens e fazê-lo para além dos caminhos já traçados, num gesto de amizade que atravesse gerações. (BOUCHERON, 2018, orelha do livro)
Por outros caminhos, as perguntas anexadas ao final do texto conduzem a discussão para lados distintos, porém jamais menos interessantes — “Ser pirata também era uma forma de revolta?”, “As mulheres se revoltavam?”, “Certas revoltas também são negativas?”, “Até onde vale se revoltar, e qual é a hora de partir?” são alguns dos questionamentos dirigidos ao historiador.
De notável, além da clareza e síntese de Boucheron, cabe sublinhar a capacidade do autor de, ultrapassando a “simples” reconstituição histórica da revolta e retornando a fontes materiais de modo a dissolver um imaginário contemporâneo, fazer disso metáfora para a atuação do historiador — o trabalho paciente do profissional que “se debruça sobre as palavras do passado, esperando ouvir o barulho efêmero, sutil, frágil e intermitente de um murmúrio antigo” (id., p. 31). É nesse mesmo sentido que, estendendo sua reflexão, Boucheron insiste que “a única voz que deve ser ouvida é a dos arquivos”. Somada a isso, cabe outra citação que chama a atenção: “isso já é conhecido, a história é escrita pelos vencedores”. Ambos os fragmentos ecoam, sem ruídos, o texto de Walter Benjamin. O filósofo alemão, primeiro, afirma que “a história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’”, concluindo com
O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios. O historiador consciente disso renuncia a desfiar entre os dedos os acontecimentos, como as contas de um rosário. Ele capta a configuração, em que sua própria época entrou em contato com uma época anterior, perfeitamente determinada. Com isso, ele funda um conceito do presente como um “agora” no qual se infiltraram estilhaços do messiânico. (BENJAMIN, 1987, p. 232)
O que se nota, nas citações mais antigas, é a proposição de bases para as afirmações de Boucheron. Quando o historiador francês faz referência à necessidade de se ouvir a “voz dos arquivos”, ele busca o rompimento com ideias já cristalizadas, congeladas, a respeito de um certo período histórico. O “agora” que propõe Benjamin recusa, portanto, uma percepção teleológica da história, como o faz o historiador francês.
Mais tarde, Benjamin diz, ao debater o conceito de “empatia”:
A natureza dessa tristeza se tomará mais clara se nos perguntarmos com quem o investigador historicista estabelece uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. (BENJAMIN, 1987, p. 225)
Aqui, o intertexto é ainda mais evidente, e a busca pela dissolução de uma construção unívoca da história serve como força-motriz para ambos os autores — Benjamin é enfático ao colocar que o historiador deve “escovar a história a contrapelo” (BENJAMIN, 1987, p. 225).
Boucheron afinal, ao propor sua genealogia da revolta, enfatiza a desvalorização histórica dos movimentos populares, que em geral foram documentados pela própria força de repressão. Nesse sentido, ele afirma, sobre os arquivos, que
eles não nos dizem nada por si só, cabe a nós fazê-los falar, sendo que para isso é preciso chegar perto, debruçar-se, pôr-se à escuta, mostrar-se atento aos mínimos ruídos. Trabalhar na superfície do texto (…): o trabalho do historiador é preciso e sutil, é a arte de ler lentamente. (BOUCHERON, 2018, p. 31, grifo meu)
Notas
2 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In:_____. Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. Editora Brasiliense: São Paulo, 1987.
3 Patrick Boucheron é historiador especialista em Idade Média e professor do Collège de France.
4 BOUCHERON, Patrick. Como se revoltar?. Tradução de Cecília Ciscato. Editora 34: São Paulo, 2018.
5 Cabe a nota etimológica para restituir o sentido de “puer” ao latim medieval, em que, além de realmente designar “crianças”, podia remeter aos “pobres”, “miúdos” e “humildes”.
Resenhista
Giovani Tridapalli Kurz – Mestrando em Estudos Literários, PPGL/UFPR. E-mail: giovanitk@gmail.com
Referências desta Resenha
BOUCHERON, Patrick. Como se revoltar?. Trad. Cecília Ciscato. São Paulo: Editora 34, 2018. Resenha de: KURZ, Giovani Tridapalli. Uma genealogia da revolta. Outras Fronteiras. Cuiabá, v. 6, n.1, p.105- 110, jan./jul. 2019. Acessar publicação original [DR]
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