Como se constrói um santo. A canonização de Tomás de Aquino | Igor Salomão Teixeira
O professor e pesquisador Igor Teixeira, do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, apresenta agora, em livro, uma versão do seu trabalho que resultou na tese defendida na própria UFRGS para a obtenção do título de Doutor. Entretanto, não se trata da tese propriamente dita, como o próprio autor ressalta em sua introdução. Trata-se de uma versão revisada, rediscutida, com uma linguagem que, se em alguns pontos lembra um texto acadêmico – já que não deixa de sê-lo! – tem como grande destaque, pela nossa concepção, a função de ter transformado o texto em uma narrativa que pode ser muito bem lida tanto por acadêmicos quanto por não acadêmicos. A narrativa é ágil, de fácil compreensão e com uma argumentação que se concatena entre todas as propostas defendidas ao longo dos estudos do autor.
O período em questão é de interesse forte pelo público: é o momento em que temos o papado de Avignon, o momento em que se passa tanto o pano de fundo de Os reis malditos, de Maurice Druon, e O nome da rosa, de Umberto Eco, sucessos comerciais. A proposta do livro é compreender o porquê da canonização de um personagem importante, muito conhecido e pouco discutido, principalmente na historiografia brasileira: Tomás de Aquino. A canonização ocorreu no dia 18 de julho de 1323 e foi realizada por João XXII (papa entre 1316-1334). Utilizando-se de um grande conjunto de documentação, que contém tanto as atas dos frades dominicanos, as bulas de João XXII, os processos inquisitoriais da canonização quanto a primeira hagiografia feita sobre Tomás de Aquino, escrita pelo também frade dominicano Guilherme de Tocco, Teixeira explora o assunto em um livro que prende a atenção do leitor.
Tentando responder a um conjunto de questões que vão desde as razões da canonização justamente de Tomás de Aquino, um teólogo, por um papa que era jurista de formação, até qual grupo tinha interesse que Aquino se transformasse em santo, o pesquisador utiliza-se da Antropologia Escolástica. Segundo o autor, esta concepção é uma forma de olhar para o período em questão, tentando compreender a partir dos debates entre teólogos e juristas, as teses que foram criadas para explicar o mundo no qual viviam1. Dessa forma, ele começa afirmando que havia três grupos interessados na canonização do teólogo Aquino: os dominicanos, ordem a qual pertencia, sua família nobre de Nápoles e o próprio João XXII.
Mas, para compreender essa canonização, o autor trabalha com a ideia de uma construção da santidade de Tomás de Aquino. Ela se deu pelo encadeamento de vários elementos que intentavam dar um sentido para a crença dos fieis em um quadro de virtudes que apenas os santos possuem. Dessa forma, em uma análise retroativa, buscando as reações sobre a doença, sua própria previsão de morte, o odor exalado de seu túmulo desde a sua morte até a canonização, foi-se construída a santidade de Tomás2. Nessa exposição aparece um ponto importante: Teixeira conceitua esse período de construção da santidade de Tomás de Aquino como “tempo de santidade”, conceito este que rege suas pesquisas posteriores à escrita da tese. Essa categoria científica pode, segundo o autor, ajudar na compreensão de construções de santidades que extrapolam o período medieval, podendo ser utilizada nos mais variados processos de santificação existentes.
No primeiro capítulo, tenta compreender como se deu a construção da memória sobre Tomás de Aquino. Estudando os processos inquisitoriais, o autor tenta explorar a forma como os seus milagres foram utilizados para a construção dessa santidade. O mais salutar é o indício exposto nos inquéritos sobre o odor de santidade que exalava do túmulo de Tomás assim que este foi aberto. Essa documentação, como propõe o livro, foi utilizada tanto por João XXII como prova para a canonização 3 quanto por Guilherme de Tocco, que a transformou em um texto hagiográfico, chamado de Ystoria sancti Thome de Aquino, a qual também se utiliza de vários relatos de dominicanos além do fato de que Tocco havia conhecido Tomás de Aquino, o que legitimava, segundo as concepções da época, seu texto.
A próxima questão colocada por Igor Teixeira é se Tomás de Aquino pode ser considerado um santo dominicano. Tenta responder a essa questão no capítulo dois. Esse capítulo analisa a santidade enquanto objeto historiográfico, tentando discutir os motivos da transformação de um agente social em um objeto de culto por parte da comunidade cristã 4. Assim, Igor Teixeira se debruça nas discussões acerca das escritas das hagiografias em geral para compreender como esse estilo narrativo tem o intuito de trazer “exemplos” para a construção da santidade, no caso específico do tema do livro resenhado o texto de Guilherme de Tocco sobre Tomás de Aquino. Problematizando a construção da santidade de Tomás, nota-se que os discursos apontam para as virtudes do teólogo: humildade, pureza de corpo e mente, prudente, inteligente, entre outras, que estão presentes nos relatos da hagiografia de Guilherme de Tocco e que postulam a relação do frade com a Ordem dos Dominicanos.
Mas, mesmo com tantos argumentos sobre as virtudes e a importância da obra de Tomás de Aquino para a teologia cristã, Teixeira salienta que nem todos os dominicanos eram favoráveis às ideias de Tomás de Aquino, o que pode ser observado pela falta de relações encontradas nas atas dos capítulos gerais da ordem e nas obras de Aquino. Ainda assim, durante o processo de canonização, o autor aponta para o fato de que os frades dominicanos foram favoráveis à realização da santidade. Portanto, a partir dessas premissas, o autor salienta que não foram os dominicanos os maiores interessados na canonização em questão. Mas, tanto os depoimentos dos inquéritos quanto a legitimidade destes na hagiografia de Tocco, podemos encontrar a construção de uma “fama” para a santidade de Aquino feita a partir da ordem à qual o teólogo pertencia5.
Mas a questão mais importante para o autor se dá no tempo de santidade curto de Tomás de Aquino, 49 anos. Por que foi tão rápido? Para o autor, a resposta não está na “eficácia da santidade”, mas nas questões dos âmbitos social e político do período6. Como Aquino não era uma unanimidade – como, por exemplo, discordâncias dentro de sua própria ordem, como já dissemos – “qualquer tentativa para construir a santidade de Tomás de Aquino deveria passar por um processo de reabilitação de sua reputação, ou, mais apropriadamente, sua fama” 7. Assim, a imagem de Tomás teve de ser reconstruída, devido às discordâncias, para que ele fosse canonizado.
Sua família entra com importância neste ponto no processo, porque graças aos depoimentos, pode-se aferir sobre uma ideia de “fama pública” que tinha o teólogo. A sociedade napolitana ajuda, portanto, na legitimação da santidade de Aquino no processo da Igreja. Entretanto, segundo Igor Teixeira, isso também não pode ser compreendido como um demonstrativo de que os mais interessados no processo eram os familiares de Tomás.
A partir disso, entra a defesa da tese do autor propriamente dita: a canonização foi um interesse de João XXII, que estava totalmente no meio de uma convulsão contextual de legitimidade de seu próprio papado. João era o segundo papa de Avignon, que foi eleito em 1316 em um conclave complicado, ocorrido dentro de um mosteiro dominicano, depois da morte de Clemente V.
Desde o início, reformulou várias coisas dentro da Instituição. Aumentou os impostos; envolveu-se na disputa entre Frederico de Habsburgo, da Áustria, e Luis Witelbasch, da Baviera, não reconhecendo Luis quando este ganhou a disputa; além da querela com os franciscanos que defendiam veementemente a pobreza de Cristo, sendo o responsável pela excomunhão de Marcílio de Pádua, em 1327 devido a essas questões.
Assim, segundo o autor,
a canonização podia ser um agradecimento da Santa Sé à Ordem dos Irmãos Pregadores pelo conclave de 1316; o reconhecimento das ideias do Mestre em Teologia – algumas delas condenadas em 1277 em Paris – e a defesa de uma pobreza não radical, como a defendida pelos franciscanos8.
É nesse último ponto que reside a tese do livro. Esse é um momento em que os teólogos como Tomás de Aquino ganham mais espaço em Avignon do que os juristas – isso talvez explique os motivos de Raimundo de Peñafort, jurista, também dominicano, não ter sido canonizado por João XXII, como já dissemos jurista de formação – porque as ideias de Tomás eram fundamentais para a legitimidade do pontificado de João XXII. A canonização é rápida porque Tomás de Aquino seria um santo cujas ideias não criticavam a vida religiosa tal qual aceitava o papado do momento e porque não condenada o domínio dos bens materiais, como exposto na obra máxima de Tomás de Aquino, a Suma Teológica. Assim, o pensamento de Aquino ajudava João XXII tanto nas suas concepções teológicas quanto na luta contra a defesa franciscana de uma pobreza da instituição. Era uma canonização feita a partir de interesses do papa, portanto teológica, como denominou Teixeira. Por isso a tese versa sobre a canonização do teólogo ser de maior interesse do papa João XXII.
O livro que resenhamos traz alguns problemas de revisão da sua escrita, como por exemplo o excerto em latim na página 96 que não possui tradução, sendo que os demais trechos da documentação latina aparecem traduzidos entre outros exemplos de palavras com letras trocadas. O que não se constitui em problema na compreensão geral da obra, mas que dá uma certa quebra na leitura, principalmente para um público não especializado.
Recomendamos fortemente a leitura justamente por um objetivo da obra exposto em sua introdução: transformar um texto acadêmico em um texto de leitura fácil, agradável, não apenas para acadêmicos especializados em história medieval. Nesse ponto, o livro torna-se uma obra de importância, ainda mais neste momento em que os historiadores criticam outros profissionais que se propõem a escrever livros de história. Igor Teixeira consegue prender a atenção do leitor, sem perder a densidade acadêmica de um texto sério, resultado de pesquisas que foram feitas ao longo de quatro anos de estudo. Oxalá mais historiadores transformassem suas pesquisas em textos tão agradáveis para sua leitura. Essa é, para nós, a grande vitória do texto que resenhamos.
Notas
1 TEIXEIRA, Igor Salomão. Como se constrói um santo. A canonização de Tomás de Aquino. Curitiba: Editora Prismas, 2014, 220 p. p. 33.
2 Ibid., p. 26-27.
3 Ibid., p. 53.
4 TEIXEIRA, 2014, p. 106.
5 Ibid., p. 105.
6 Ibid., p. 148.
7 TEIXEIRA, 2014, p. 157.
8 Ibid., p. 176.
Resenhista
Rafael José Bassi – Universidade Estadual de Campinas.
Referências desta Resenha
TEIXEIRA, Igor Salomão. Como se constrói um santo. A canonização de Tomás de Aquino. Curitiba: Editora Prismas, 2014. Resenha de: BASSI, Rafael José. Signum- Revista da ABREM, v. 15, n. 1, p.145-149, 2014. Acessar publicação original [DR]