Comemorações 2022: memória, historiografia e novas perspectivas /Revista Maracanan/2022
Caros Leitores,
Neste ano de 2022 que ora termina, registraram-se os aniversários de vários acontecimentos históricos, abrangendo o Bicentenário da Independência do Brasil, os centenários da Semana de Arte Moderna, do movimento tenentista, da fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), entre outras datas relevantes, como a entrada do Brasil na Grande Guerra, a crise dos mísseis em Cuba, o atentado nas Olimpíadas de Munique, o impeachment do presidente Fernando Collor, o massacre do Carandiru, o atual Código Civil Brasileiro, o evento Rio+20, para mencionarmos apenas alguns.
Com isto em mente, Equipe Editorial da Revista Maracanan, propôs para esta 31ª. Edição o dossiê temático “Comemorações 2022: memória, historiografia e novas perspectivas“, cujo objetivo consiste justamente no que anuncia o título, pois comemorar significa, em princípio, “lembrar juntos, em comunidade”, o que pode desdobrar-se em diferentes direções, de “celebrar com alegria” a “lembrar com pesar”. De permeio aos incontáveis caminhos da memória e do esquecimento, este par inseparável; às quase infinitas possibilidades das experiências históricas, felizes e dolorosas; aos diferentes graus de educação e consciência histórica em uma sociedade, a historiografia vai construindo e renovando seus temas, problemas e abordagens – para lembrarmos a famosa formulação do movimento de Annales.
As comemorações, tal qual entendidas cotidianamente, dentro e fora da Academia, dizem respeito às ocasiões especiais e à atmosfera festiva (intelectual e cívica) proporcionadas pelos centenários, bicentenários, sesquicentenários, etc. Na esfera pública, tanto quanto na academia, tais ocorrências costumam propiciar a “invenção de tradições” grupais e/ou nacionais. Evidentemente, nada disso é isento de intenções e apropriações políticas dos mais diversos espectros, às quais precisamos estar atentos tanto por dever de ofício, quanto por exercício de cidadania, sobretudo nos tempos atuais marcados pelo crescimento dos movimentos neofascistas, em todo o mundo mas sobretudo no Brasil – conforme demonstrado por pesquisas recentes. Somando-se a crise econômica e humanitária em dimensão global, forma-se um quadro em que se gera todo tipo de deturpação, dos negacionismos históricos e científicos às construções historiográficas baseadas em revisionismos interesseiros que disputam o público com versões mentirosas da História, passando por perseguições a historiadores e preconceitos (não) fundados em diferenças de região, classe, raça, gênero, sexualidade… Em contraponto, geram-se também oportunidades e motivações não apenas para (re)descobrir eventos, mas para debatê-los com rigor, questioná-los, revisá-los criteriosamente e – o mais possível – ampliá-los e enriquecê-los em nosso imaginário e nosso campo de saberes.
Assim, mais do que simples efemérides, as comemorações tratam de narrar e analisar de forma crítica, como cabe aos protocolos da historiografia. Para historiadores e demais pesquisadores das ciências humanas, celebrar significa sobretudo repensar e discutir os significados, as controvérsias, as distintas escolhas temáticas e teórico-metodológicas, bem como as posturas ético-políticas vinculadas às pesquisas e à construção de conhecimento. Com tal intuito, a Revista Maracanan lançou uma chamada aberta para este Dossiê temático e convidou historiadores e demais profissionais das Humanidades para partilharem, nesta Edição 31, suas reflexões, memórias ou pesquisas em co-memoração a sujeitos e acontecimentos históricos aniversariantes no ano de 2022.
Na abertura desta edição, celebrando a memória de um intelectual, educador e ativista incansável na missão de “colocar as ideias no chão do mundo”, nossa Seção Especial homenageia o centenário de nascimento de Darcy Ribeiro. Em “Para Além do Moinho de Gastar Gentes”, José Ronaldo Alves da Cunha, presidente da Fundação Darcy Ribeiro, nos brinda com um pequeno relato memorialístico, em tom pessoal e gentil como convém a um velho amigo. A este se acresce a sempre instigante ilustração do artista/cartunista Antônio Máximo. Para além do fato de que Darcy muito contribuiu para a melhoria das condições de educação e trabalho na UERJ, uma homenagem à sua figura questionadora parece o ponto de partida apropriado, em uma Edição dedicada às inquietações e problematizações que o gesto de celebrar e relembrar desperta.
Em continuidade, apresentamos a entrevista que Beatriz de Moraes Vieira e Cairo Barbosa realizaram com o professor Flávio Wolf de Aguiar, ex-docente de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/ USP), crítico literário e fundador do Centro Ángel Rama. Em uma conversa sobre o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, discutem-se os significados e importância do modernismo na cultura brasileira, sua diferença em relação ao restante da América Latina e seu papel na trajetória de nosso pensamento social.
O Dossiê propriamente dito inicia-se com dois textos que versam sobre o escritor Afonso Henriques de Lima Barreto, nos 100 anos de sua despedida deste mundo. Em “A cidade de Lima Barreto e o centenário de sua morte: algumas linhas autobiográficas”, Renata Moraes Figueiredo parte dos obituários e das reações à sua morte em 1922 para repassar a obra do autor, destacando as lentes com as quais ele a viu e produziu: as de um homem negro, morador do Rio de Janeiro, dividido entre a pompa cultural da capital e a marginalidade dos subúrbios, e observador atento de ambos os espaços. Por sua vez, Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo, em “Lima Barreto – Nação e Raça em pontos de cor”, investiga a fundo os processos de escrita e criação de que se valia Lima Barreto, em crônica e textos ficcionais, em seu esforço não apenas de denunciar ou desabafar, mas para pôr-se como interlocutor ativo nos debates intelectuais de seu tempo e problematizar as tensões e paradoxos da jovem República, num contexto marcado pelos debates em torno da identidade nacional e racial brasileira.
Em sequência, o Dossiê traz vários artigos que tratam da questão das comemorações do centenário de Independência. Fato marcante, considerado por muitos historiadores como o marco fundador da moderna nação brasileira, a separação do Brasil em relação a Portugal tem sido tema recorrente em estudos e pesquisas, porém ainda não se encontra esgotado, pois traz à tona opiniões diversas, demonstrando que acontecimentos e personagens, especialmente aqueles que foram esquecidos pela história até os dias de hoje, necessitam de um estudo mais preciso; visões cristalizadas na historiografia precisam de novos olhares; discursos políticos favoráveis ou resistentes ao movimento de Independência ou debates na imprensa devem ser reanalisados. Ademais, novas narrativas – que permitam ultrapassar as fronteiras de uma história cujo fulcro encontra-se na ideia de nação – devem ser apropriadas, pois apontam para a necessidade de conhecer e analisar comparativamente os processos de separação da América Inglesa e da América Hispânica com relação à América Portuguesa. Por fim, questões que tratam das diversas partes que constituíam o território naquela época devem ser compreendidas, para um conhecimento mais denso desse período de constituição de um país chamado Brasil, destacando-se seus diversos projetos de nação. Portanto, há muito ainda para se repensar e discutir, e os artigos que aqui se reúnem aportam sua contribuição a esse vasto trabalho.
Neste sentido, dois artigos abordam mais diretamente a questão da comemoração. No mesmo 1922 da morte de Lima Barreto, mas com os olhos voltados para o Ipiranga, elites políticas no Brasil e em Portugal mobilizaram o primeiro centenário do 7 de setembro para celebrar projetos de nação que tinham ou se esforçavam por ter. O aniversário do passado servia para celebrar um presente que (se esperava), viveria bastante. É do que trata Daiane Lopes Elias em “Centenária Exposição: Os cem anos da Exposição Internacional do Centenário da Independência do Brasil (1922-1923)”, ao resgatar o grande evento realizado na esplanada do Castelo, espaço antes ocupado pelo Morro arrasado no mesmo ano. Erguendo luxuosos pavilhões sobre as ruínas do velho Morro, a elite política da Primeira República buscou apresentar ao mundo seu projeto de Rio de Janeiro como “vitrine moderna” de um “país do progresso”, enquanto relembrava seu primeiro século como Nação. Já Jorge Luis dos Santos Alves destaca como as comemorações podem dar vazão a posições antagônicas e interpretações distintas quanto aos fatos comemorados: em “Entre Brasil e Portugal: visões do Centenário da Independência”, analisa as comemorações de 1922 da perspectiva das relações luso-brasileiras, mostrando como, em contexto de crise política e tensão social, o resgate do 7 de setembro como data simbólica expôs os diferentes significados que a Independência (e, a partir dela, a herança colonial portuguesa) apresentava para diferentes grupos.
Acerca da memória e dos simbolismos da Independência como gestos marcantes da História brasileira também discorre Fábio Rodrigues de Almeida, cujo artigo “O tema da Independência do Brasil nos enredos das Escolas de Samba do Rio de Janeiro” analisa diferentes narrativas e representações presentes no carnaval carioca, identificando particularidades, continuidades e rupturas na apropriação por diferentes agremiações em diferentes momentos. Propondo uma discussão relativa ao conceito de História Pública a partir da documentação dos enredos carnavalescos, o autor investiga outra dimensão que o evento histórico da Independência assume no âmbito das “memórias socialmente compartilhadas”.
De outro ângulo olham para o 7 de setembro os dois últimos artigos do Dossiê. Como já mencionado, as comemorações de acontecimentos históricos são momentos ricos para rediscutir o desenrolar dos fatos e enriquecer o conhecimento com novas perspectivas, novos pontos de vista, documentos, protagonistas e questões-problemas. É o que faz Magno Francisco de Jesus Santos em ““Vontade de ser útil à minha Pátria, a fazer tinta de escrever”: Antônio Muniz de Souza, os sertões e a Breve notícia da Revolução do Brasil (1820-1822)”, ao partir da obra e trajetória do viajante que explorou os sertões brasileiros, em pleno momento da Independência e da invenção da nação e atento aos enfrentamentos que se passavam nas Capitanias do Norte, para vislumbrar a leitura sobre processo de Independência desde a atuação de sujeitos que se encontravam nos sertões do antigo norte do Brasil. E é o que faz Anderson Leonardo de Azevedo que, em “A representatividade feminina da Independência do Brasil no acervo da Biblioteca Histórica do Itamaraty no Rio de Janeiro”, esforça-se por resgatar a importância da participação das mulheres no processo que assegurou a emancipação política, ao investigar um total de dez obras de um importante acervo que aborda a atuação de mulheres de diferentes status e condições sociais, da Imperatriz Leopoldina e Maria Quitéria às “senhoras baianas e paulistas”. Ao resgatar as análises de um observador que muitos considerariam marginal – mas que considera o protagonismo de negros, indígenas e sertanejos, e nos lembra que a Independência não terminou no 7 de setembro, mas se estendeu, violentamente, até a Bahia e às batalha do “2 de julho, dia eternamente memorável” – , e ao chamar nossa atenção ao protagonismo feminino e à falta de destaque deste protagonismo em nossas obras, os autores conferem relevo a outro aspecto pelo qual as celebrações e o lembrar em conjunto são importantes para o trabalho do historiador: lembrar e fazer lembrar consiste também em apontar as áreas apagadas no desenho que fazemos daquilo que se lembra, e por conseguinte, em enriquecer o quadro com o maior número possível de perspectivas, sujeitos, contradições.
Em nossa seção de Artigos Livres, Miranice Moreira da Silva investiga, no texto intitulado “A carnavalização das ruas: micareta de Feira de Santana nos espaços públicos”, os projetos de cidade e sociabilidades urbanas expressos nos festejos entre as décadas de 1940 e 1960, para analisá-los como construção social conectada com o seu tempo histórico, composta por pessoas de diferentes lugares sociais, que disputam e negociam os espaços na memória social e na luta pelo direito à cidade. E Rachel Gomes de Lima, em “Transmissões e transformações de uma propriedade: o caso da sesmaria do Engenho Novo, sua arrematação e sucessão (RJ: sécs. XVIII-XIX)”, busca identificar as práticas e redes de sociabilidade que organizavam os mecanismos de transmissão e sucessão adotados pela elite colonial na cultura portuguesa do Antigo Regime.
Fechando a Edição, na seção Notas de Pesquisa, Joel Marcos Brasil de Sousa Batista, Francisco de Assis de Sousa Nascimento & João Victor da Costa Rios analisam a bibliografia em torno do sentido de cidadania e do significado de “ser brasileiro” no contexto de elaboração da Constituição de 1824, em “Quem são os brasileiros? A conceituação do “ser” brasileiro na formação do Império do Brasil (1808-1831)”; e Sarah Dume, em “A arte ao serviço do rei: o papel da Arquitetura como parte da defesa e manutenção do reino português no século XVI”, trata da arte de construir como processo histórico ao investigar os significados políticos, sociais e culturais que marcaram lógica da arquitetura militar e de defesa durante o auge do expansionismo português.
Por fim, estamos celebrando também a nova avaliação da Revista como estrato A2, segundo o Qualis Periódicos CAPES 2017-2022.
Esperamos que os leitores da Revista Maracanan apreciem nossa 31ª. Edição e desejamos a todos um excelente 2023!
Organizadores
Beatriz de Moraes Vieira – Professora Associada do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em História Social e Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal Fluminense. Realizou estágio pós-doutoral na Cornell University. Atual coordenadora-geral do Programa de Pós-graduação em História – UERJ (biênio 2022-2023). Membro do núcleo de pesquisa Comunidade de Estudos em Teoria da História e Historiografia da UERJ (COMUM-UERJ). E-mail: bea.vieira.trabalho@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-5722-9880 http://lattes.cnpq.br/3413434339597114
Filipe Stampa Pantoja – Editor-Auxiliar como bolsista PROATEC da Revista Maracanan. Graduando em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: filipestampa@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-2546-5635 http://lattes.cnpq.br/2693021658435554
Referências desta apresentação
VIEIRA, Beatriz de Moraes; PANTOJA, Filipe Stampa. Apresentação. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n. 31, p. 07-12, set./dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]