Colonialismo, território e territorialidade: a luta pela terra dos Guarani e Kaiowa em Mato Grosso do Sul | Thiago Leandro Cavalcante

Sem deixar de dialogar com outros campos do saber, Thiago Leandro Vieira Cavalcante construiu sua formação acadêmica essencialmente dentro da disciplina de História. Paranaense radicado em Dourados (MS) desde o início de seu mestrado em 2006, seus estudos abarcam as áreas de História e Antropologia, com ênfase em História Indígena e Etnologia Indígena. Atualmente é professor da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e pesquisador da Cátedra UNESCO “Diversidade Cultural” na mesma instituição.

Cavalcante faz parte de um rol de novos pesquisadores que, com o auxílio da perspectiva metodológica da etno-história, têm produzido trabalhos que se somam na composição da historiografia Guarani e Kaiowa2 de Mato Grosso do Sul. O seu engajamento fica visível em seu texto. Contudo, os argumentos que apresenta estão fundamentados em uma vasta documentação e na pesquisa etnográfica, o que permite perceber que engajamento e a pesquisa acadêmica não são excludentes per si. Algo particularmente importante no contexto sul-mato-grossense, estado onde as tensões entre as populações guarani e kaiowa e os grupos ligados ao agronegócio tem se intensificado nos últimos anos.

A obra Colonialismo, território e territorialidade é parte3 da tese de doutorado do autor e versa sobre as transformações históricas pelas quais passaram os Guarani e Kaiowa de Mato Grosso do Sul, mais especificamente daquelas relacionadas à luta pela terra. O livro de Cavalcante está dividido em três capítulos que narram as mudanças, as consequências e os mecanismos de manutenção dos colonizadores não indígenas que avançaram sobre as terras de ocupação tradicional dessas etnias. Numa perspectiva histórica de longa duração o recorte aborda a história guarani e kaiowa do século XVI até os dias atuais.

A tese principal do autor é a de que o Estado brasileiro é um Estado colonialista e que “[…] esse colonialismo é orientado pela ideologia ruralista que tem uma inegável base civilizatória e seu principal objetivo é manter o status quo da organização fundiária brasileira” (p. 335, grifo do autor). Cavalcante desenvolveu sua pesquisa dialogando com as noções de colonialismo interno, proposta pelo sociólogo mexicano Pablo Gonzáles Casanova, e de colonialidade do poder, do sociólogo peruano Aníbal Quijano.

Neste sentido, no primeiro capítulo a ênfase do autor está em demarcar os seus pressupostos e a sua fundamentação teórica. Diante dos assuntos abordados, como território e territorialidade indígena, os referenciais teóricos utilizados por Cavalcante são em grande parte pertencentes às disciplinas da Antropologia e da Geografia. O capítulo busca situar o leitor para as compreensões propostas pelo autor para cada tema a ser tratado.

No capítulo dois, dedicado a uma recuperação histórica da territorialidade guarani e kaiowa ante aos processos de colonização desenvolvidos na região, Cavalcante se propôs a apresentar a relação direta entre a compreensão guarani e kaiowa acerca de seus territórios e a organização social dessas etnias. Além disso, ofereceu um panorama das transformações impostas pelo Estado nacional através de suas políticas indigenistas e de ocupação do atual estado de Mato Grosso do Sul. Destacando como os agentes de colonização promoveram o esbulho das terras indígenas nessa região.

Esse aspecto se evidencia ainda mais nos levantamentos realizados pelo autor, em particular naqueles que dizem respeito ao aumento da população indígena em relação a discrepância das áreas que atualmente essas populações ocupam. Para Cavalcante, há várias áreas demarcadas que são diminutas ou que apresentam um alto índice populacional e, em ambos os casos, isso não atende “[…] ao princípio constitucional de garantir aos índios sua reprodução física e cultural, segundo seus usos costumes e tradições” (p. 114). Base do parágrafo primeiro do Art. 231 da Constituição Federal de 1988 e que, via de regra, é suprimido no discurso contrário às demarcações de terra indígenas.

No terceiro capítulo, a parte mais densa da obra, essa questão ganha mais visibilidade quando o autor passa às discussões mais atuais e que avançam sobre as questões relacionadas à demarcação de terras indígenas em Mato Grosso do Sul. Cavalcante expõe os vários mecanismos e instrumentos utilizados pelos grupos ruralistas4 , dentro os quais se incluem parte da classe política e da imprensa, e do próprio Estado brasileiro para protelar ou mesmo impedir a demarcação de novas terras indígenas. Inclusive com casos de intimidação aos peritos que realizam os estudos para identificação e demarcação dessas áreas (p. 292-296).

Não obstante, a questão que envolveu – envolve – essas disputas têm como pano de fundo o Compromisso de Ajustamento de Conduta (CAC), celebrado pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em 2007. Termo cujo conteúdo determinava prazos para que a FUNAI concluísse as identificações e desse prosseguimento nos processos de demarcações de terras em Mato Grosso do Sul. Compromisso que, ora por questões políticas, ora por questões judiciais, até a presente data não foi cumprido. Situação que em boa parte tem a ver com a judicialização dos estudos para identificação e demarcação das terras indígenas dos Guarani e Kaiowa.

Neste contexto, o autor destaca que mesmo entre os políticos de partidos de “esquerda” a presença do discurso que afronta os direitos constitucionais das populações indígenas está repleta de preconceito e de desconhecimento (p. 241-246). De fato, os fatos narrados por Cavalcante nesse capítulo demonstram a existência de um “Partido da Terra” (CASTILHO, 2012), de um grupo de políticos que compõem as “bancadas” ruralistas, tanto nas esferas estaduais quanto federal e que engendram articulações com vistas a barrar quaisquer tentativas de efetivação dos direitos indígenas. Como exemplo, tem-se o registro de que apenas três políticos sul-mato-grossense (p. 216-223)5 possuírem uma área que representa mais do que 60% do total das áreas inicialmente demarcadas pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) entre os anos de 1915 e 19286 para a acomodação de indígenas.

Entrementes a tudo isso, cabe ressaltar que aspectos administrativos vinculados ao número insuficiente de funcionário da FUNAI, às divergências metodológicas dos antropólogos que trabalham nos Grupos Técnicos (GT’s), dentre outras questões também corroboram para o atraso nos processos demarcatórios e que incidem diretamente na retardação da solução dos conflitos e da efetivação dos direitos dos Guarani e Kaiowa de Mato Grosso do Sul.

Colonialismo, território e territorialidade, pode-se dizer, é um livro-denúncia. Não porque meramente se propôs a isso. Mas porque, ao narrar a trajetória histórica dos Guarani e Kaiowa e suas lutas pelo direito à terra, apresenta registros factuais que demonstram como um sistema ideológico colonialista patrocinado pelos ruralistas e com a aquiescência do Estado brasileiro age para manter sua hegemonia e seu status quo. Fato que além de sustentar a tese do autor aponta para a desigualdade de forças existentes na luta que os Guarani e Kaiowa de Mato Grosso do Sul travam pelo direito as suas terras de ocupação tradicional.

Notas

2 Para fins dessa resenha, adoto a grafia dos nomes indígenas como proposta pelo autor (CAVALCANTE, 2016, p. 23) e que foram definidas na 1ª Reunião Brasileira de Antropologia (1953). Assim, os nomes não recebem flexão e são escritos com inicial maiúscula quando usados como substantivos. Quando são usados como adjetivos os nomes são grafados com iniciais minúsculas.

3 A tese de doutorado do autor possui originalmente quatro capítulos, sendo que para a publicação dessa obra o terceiro capítulo da tese foi suprimido.

4 Cavalcante utiliza o termo ruralista ao se “[…] referir tanto aos proprietários rurais, quanto àqueles que apoiam seus pleitos e ideais” (CAVALCANTE, 2013, p. 212). Prefere esse termo ao de produtor rural por entender que esse último pressupõe a imposição de uma única finalidade legítima para a terra.

5 Os políticos aos quais me refiro e são listados por Cavalcante são: Londres Machado com 8.061 ha (foi deputado estadual por mais de 24 anos), Reinaldo Azambuja com 2.494 ha (atual governador do estado) e Zé Teixeira com 1.283 (deputado estadual pela região da Grande Dourados). Os valores não são exatos visto que há áreas rurais declaradas por esses políticos mas sobre as quais não são informadas as suas dimensões.

6 Conforme Pauletti, três dimensões diferentes compuseram os 19.700 hectares reservados pelo SPI para a acomodação de populações indígenas no atual Mato Grosso do Sul. Elas foram distribuídas em oito reservas da seguinte forma: com 3.600 ha: Benjamin Constant, Francisco Horta e José Bonifácio; com 2.000 ha: Porto Lindo (ou Jacare’y), Taquapery, Ramada (ou Sossoró) e Pirajuí; com 900 ha: Limão Verde (2000, p. 59).

Referências

CASTILHO, Alceu Luís. Partido da Terra: como os políticos conquistaram o território brasileiro. São Paulo: Contexto, 2012.

CAVALCANTE, Thiago Leandro Vieira. Colonialismo, território e territorialidade: a luta pela terra dos Guarani e Kaiowa em Mato Grosso do Sul. Assis, 2013. 470 f. Tese (Doutorado em História). Faculdade de Ciência e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2013.

PAULETTI, Maucir. et. al. Povo Guarani e Kaiová: uma história de luta pela terra no Estado de Mato Grosso do Sul. In: Conselho Indigenista Missionário – MS. (Org.). Conflitos de direitos sobre as terras Guarani e Kaiowá no Estado do Mato Grosso do Sul. São Paulo: Palas Athena, 2000. p. 45-92.


Resenhista

José Augusto Santos Moraes – Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal da Grande Dourados (PPGH/UFGD). E-mail: joseaugusto.teo@gmail.com


Referências desta Resenha

CAVALCANTE, Thiago Leandro Vieira. Colonialismo, território e territorialidade: a luta pela terra dos Guarani e Kaiowa em Mato Grosso do Sul. Jundiaí-SP: Paco Editorial, 2016. Resenha de: MORAES, José Augusto Santos. Fronteira: Revista de História. Dourados, v.18, n.32, p.371-374, jul./dez. 2016. Acessar publicação original [DR]

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