Colônia e nativismo: a história como “biografia da nação” | Rogério Forastiere da Silva

Uma essência nacional que esteja presente qualquer que seja a situação histórica do Brasil, no passado, no presente e no futuro: essa é a base do pensamento nacionalista construído a partir de cima, usuário da história e de seu ensino para fazer-se presente na memória coletiva. Isso fica claro – exemplo banal, mas com o mérito de ser contemporâneo – na propaganda da Rede Globo para as comemorações dos 500 anos do descobrimento, que não são chamadas dessa maneira. Diversamente, o locutor não se cansa de repetir todos os dias: faltam tantos dias para os 500 anos do Brasil. Não do descobrimento ou do que lhe equivalha. Sem outras palavras, a história que aí se ensina pondera que o Brasil é um ente trazido definitivamente à luz por Cabral e que, a partir daí, existe de forma cada vez mais completa e complexa, alcançando-nos no presente.

Esse olhar sobre a história nacional toma o seu objeto central, a nação, como um corpo, como um sujeito no tempo: existe potencialmente no passado como um embrião, nasce com a chegada dos portugueses à costa, emancipa-se com a Independência e alcança a maturidade num passado bem recente. Segundo Forastieri da Silva, a partir de Antonio Gramsci, essa é a perspectiva que lê a história como biografia da nação, como se a mesma fosse uma vontade ou um desígnio homogêneo, e por isso silencia todos os eventos em que essa unidade é posta à prova. Silencia ou integra, modificando o seu sentido e integrando-o a uma marcha em que tudo conduz, inexoravelmente, para o que há hoje.

O livro de Rogério Forastieri da Silva resulta de sua dissertação de mestrado defendida na FFLCH/USP e pertence à eclética coleção Estudos Históricos, iniciativa da Hucitec, dirigida por Fernando Novais e István Jancsó. Preliminarmente, devem-se destacar os anexos, em que a palavra nativismo é esquadrinhada em várias e significativas ocorrências, com a transcrição dos textos e as indicações bibliográficas, com a sistematização de seus diferentes contextos.

O nativismo é a grande questão historiográfica que o autor toma com o propósito de desconstruir a aparente consistência de termos e de estereótipos que, pela repetição, dão-se ao leitor como evidências. A associação entre nativismo, colônia e nação, presente na historiografia e em seus reflexos didáticos, leva Forastieri da Silva a abordar o conceito de colônia e, também, a descortinar a ambigüidade e o conteúdo polêmico; porque tornar o Brasil de hoje inscrito no passado colonial implica apresentar situações em que o presente aparece no passado por meio das manifestações de tipo nativista.

O autor discute a colônia para além de sua conotação aparentemente consensual, de período anterior à emancipação política, mencionando autores que trazem múltiplas compreensões do tema. Trata-se de um painel que retrata as várias intervenções historiográficas em torno da colônia, desde as idéias acerca do conceito de modo de produção, às visões sobre o mercantilismo e os condicionamentos culturais relativos ao período. Como o próprio autor afirma, constitui-se aí mais um painel de negações, do que não é a colônia, do que propriamente o estabelecimento de um referencial teórico consolidado sobre ela; o que resta, e que o autor estabelece como afirmação, é a colônia como situação concreta, mais que uma artificialidade derivada do jargão de historiador, definida no espaço-tempo pelo capital mercantil. Enfim, há aqui um posicionamento a favor de uma perspectiva conjuntural, estratégia para recuperar a historicidade do termo, que se perde quando a colônia passa a ser um momento da história nacional, consagrada a partir do século XIX, no qual as ações estariam dirigidas no sentido de construir a nação.

Procedendo da mesma maneira com o nativismo, Forastieri da Silva faz uma amostra de textos significativos em que o termo aparece e ganha múltiplos sentidos. De saída, fica patente a limitação do uso de nativismo: esses “movimentos precursores da nação” excluem, mais ou menos discretamente, os movimentos protagonizados por índios e por negros. Em cada um dos sentidos levantados, o autor explora as inconsistências, como no sentido de luta contra os estrangeiros. Nos movimentos aos quais essa definição se refere, as narrativas com ela comprometidas nunca consideram o português como estrangeiro, e sempre se dão em defesa do domínio português contra terceiros. Ora, se ser brasileiro, em consequência, era ser português, fica em crise a narrativa que lê nesses movimentos um germe da nação brasileira.

O autor demonstra que as inconsistências sobre o nativismo não são propriedade de uma pretensa simplificação dos materiais didáticos: antes, esses bebem, na historiografia, os anacronismos que essa perspectiva carrega. Caio Prado Júnior, em Formação do Brasil Contemporâneo, é convocado a advertir e a respaldar a crítica desse anacronismo:

O historiador, ao ocupar-se dela [a colônia], enfrenta o risco de tratar o assunto anacronicamente, isto é, conhecedor que é da fase posterior em que ocorre o seu desenlace, em que ela se define, projetar essa fase no passado. O que não raro tem sido feito. Como o processo que ora nos ocupa vai dar na separação da colônia de sua metrópole, na independência, são as manifestações neste sentido que se procuram.

Sem deter-se apenas no Brasil, Forastieri da Silva avalia que o mesmo papel é atribuído aos movimentos nativistas nos países da América Hispânica, com o complicador de que, nesse caso, determinados movimentos são o passado de dois ou mais países e aí definitivamente, a nação não poderia estar inscrita na colônia. Podemos inferir, portanto, que esse tratamento da história nos países de passado colonial é uma constante, que visa a colocar o final da cena (a independência, o presente) imanente no passado, convertendo a nação em um desígnio, em um ser, não um devir, tal como apraz à história e ao nacionalismo construído por cima, geralmente a partir do Estado, que no caso brasileiro não surge da nação, mas de uma cuidadosa costura de apoios e compromissos entre as elites locais e de outras regiões do globo.

Em suma, como desmontar esse edifício? O autor é uma voz somada às que indicam que a crítica à história nacional/nacionalista é feita pela reconstrução de suas motivações e pela recuperação de sua historicidade.


Resenhista

Luis Fernando Cerri – Professor da UEPG. Doutorando pela FE-Unicamp. Membro do Grupo Memória – Pesquisa em Ensino de História (Unicamp).


Referências desta Resenha

SILVA, Rogério Forastieri da. Colônia e nativismo: a história como “biografia da nação”. São Paulo: Hucitec, 1997. Resenha de: CERRI, Luis Fernando. Por quê e desde quando somos brasileiros? Diálogos. Maringá, v.3, n.1, 363-365, 1999. Acessar publicação original [DR]

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