Civilização: etnocentrismo, evolucionismo e conceitos em História / Boletim do Tempo Presente / 2015
O conceito de civilização, desde o momento de seu surgimento com os filósofos iluministas defensores da ideia de progresso, estabeleceu-se na historiografia ocidental como uma das mais arraigadas noções, apesar de suas claras alusões etnocêntricas. Mas cada vez se torna mais claro, à luz das críticas e percepções atuais, o quanto a ideia de civilização expõe o ‘outro’, identificando-o inevitavelmente como ‘bárbaro’, ‘selvagem’, ‘inculto’, e por isso, pelo menos desde a segunda metade do século XX, essas palavras e as concepções nelas envolvidas têm sofrido um verdadeiro bombardeamento teórico, originário de frentes tais como a Sociologia, a Linguística e a Antropologia. No entanto, apesar disso, muitos ainda são os historiadores que continuam a cultivar os princípios evolucionistas envolvidos na definição de civilização. Princípios sempre associados, de forma mais ou menos implícita, a noções de progresso, evolução social, ‘altas culturas’ (que por sua vez alude à existência de ‘baixas culturas’); tudo isso remetendo a uma crença na existência dos civilizados e dos ‘outros’, aqueles considerados carentes de cultura, de Estado, de história.
Entretanto, nem todos aceitam essa situação de forma acrítica, e muitos são os historiadores e cientistas sociais que atualmente tentam fugir dos tradicionais etnocentrismos através de um investimento na historicização de conceitos. Ou seja, na consideração de que as palavras têm história e que, na medida em que colocamos cada uma em seu devido contexto de produção, podemos começar a entender melhor seus significados e desconstruir aquelas noções que os naturalizam. Dessa forma, civilização e progresso perdem seu status de fenômenos inevitáveis nas sociedades humanas, da mesma forma que uma sociedade estatal deixa de ser entendida como naturalmente ‘melhor’ que uma tribal. Assim, partindo dessas premissas, elaboramos o presente dossiê, procurando reler o conceito de civilização a partir de diferentes temas, sempre almejando, em última instância, derrubar evolucionismos e etnocentrismos arraigados.
Nosso primeiro artigo faz isso se debruçando sobre o conceito de civilização no Direito Internacional. Nele, Laura Bono e Daniela Rebullida, ambas da Universidad Nacional de la Plata, visitam fontes do Direito Internacional para questionar os significados que o mesmo atribui à expressão ‘nações civilizadas’: uma fórmula basilar nas relações internacionais, visto que todo o conjunto de princípios gerais do Direito Internacional apenas é aplicável a esse conjunto de países, excluindo de sua proteção e jurisdição quaisquer territórios considerados ‘incivilizados’. Dando prosseguimento, mergulhamos na observação de atores sociais classicamente associados aos ‘selvagens’, os índios. E é procurando desconstruir essa associação que Edson Silva, da Universidade Federal de Pernambuco, retraça a trajetória das ideias de evolução e progresso no Ocidente, desde o século XIX, analisando como as mesmas influenciaram a construção de uma certa imagem de ‘índio’, ainda hegemônica entre o senso comum e o Estado brasileiro, e influente mesmo sobre cientistas sociais de renome, como Darcy Ribeiro. Mas, indo além, ele dialoga com as aquelas perspectivas históricas e antropológicas, iniciadas na transição do século XX para o XXI, que não se preocupam em definir o lugar do índio na civilização, mas sim em desconstruir essa oposição entre ‘civilizados’ e incivilizados. Enfatizando assim a percepção de que é inútil discutir quem é e quem não é civilizado, pois a própria palavra é excludente e sempre vai pressupor a definição de alguém ‘inferior’.
Realmente, os diversos povos nativos americanos, sempre generalizados baixo o conceito de índio, forneceram alguns dos elementos fundamentais para a definição clássica de selvagens. Razão pela qual se torna tão importante entendermos tanto suas sociedades, quanto a construção dos discursos históricos oitocentistas e novecentistas sobre elas. Com isso em mente é que Karl Arenz e Frederik Matos, da Universidade Federal do Pará, voltam seu olhar para o século XVII, para inquirir sobre as ações de uma das mais influentes instituições da colonização da América portuguesa, a Companhia de Jesus, analisando especificamente as práticas jesuítas que objetivavam ‘tirar os índios da selva’, ou seja, práticas consideradas civilizatórias pela historiografia. Mas os autores não querem simplesmente fazer uma narrativa da história jesuíta, e sim pesar suas práticas em conjunção com a própria historiografia, a verdadeira responsável por analisá-las enquanto civilizatórias. Isso porque, segundo os autores, o conceito de civilização não foi usado pelos jesuítas no século XVII, e se suas ações colonizadoras são entendidas hoje como civilizatórias isso ocorre porque elas assim foram definidas pela própria historiografia. Por outro lado, eles não esquecem que outras noções, que nos séculos posteriores iriam integrar os discursos civilizatórios, já perpassavam os discursos e ações das missões jesuíticas amazônicas, instituições de fronteira que se contrapunham aos ‘sertões’ habitados por índios, vistos como espaços caóticos de gente ‘bárbara’. E é ainda pensando o mundo colonial que Suely Almeida, da Universidade Federal Rural de Pernambuco, discute os problemas conceituais em torno das mestiçagens coloniais. Em seu texto, a autora critica o discurso clássico segundo o qual africanos e indígenas estiveram passivos nas ações colonizadoras. Um discurso que apresenta negros e índios apenas como vítimas, e como tal sem força ou atitude no processo histórico. Ao mesmo tempo, a autora discute também as possibilidades que os estudos das mestiçagens oferecem a uma história crítica, entendendo essas mestiçagens como fenômenos construtores das sociedades da Idade Moderna, sempre considerando as diferentes negociações e estratégias promovidas pelos distintos atores sociais, inclusive escravos e forros durante os séculos XVII e XVIII. Uma abordagem que tem o mérito de retirar dos europeus a autoria absoluta da colonização.
Assim, entre Direito Internacional, história indígena, colonização e mestiçagens, procuramos despertar algumas inquietações mais do que necessárias para os estudos dos processos históricos ocidentais. Inquietações muito influenciadas pelo pensamento crítico de historiadores e antropólogos como Serge Gruzinski, John Manuel Monteiro, e do desabrido e controverso Pierre Clastres.
Esse antropólogo francês, cuja obra principal foi escrita nas décadas de 1960 e 1970, causou celeuma com suas ideias, baseadas em estudos etnográficos realizados junto a grupos indígenas sul-americanos, nas quais criticava continuamente as noções ocidentais acerca da inevitabilidade do Estado enquanto fenômeno social e histórico. Muito debatidas em seu tempo, essas teses caíram em um ostracismo a partir da década de 1980, principalmente por estarem fundamentadas no que muitos consideravam ser a visão idealista e romântica de seu autor.[2] Mas com a virada para o século XXI, as conjunturas políticas internacionais começaram a mudar, fazendo com que o até então inatacável modelo de Estado começasse a esmorecer, e despertando um renovado interesse de antropólogos e cientistas sociais na obra de Clastres, justamente por aquelas mesmas ideias que antes o fizeram parecer romântico e idealista. Um idealismo encarnado principalmente na defesa de que o Estado não representava, ao contrário do que muitos gostariam de pensar, a etapa mais evoluída da humanidade, e nem mesmo era inevitável. Uma defesa que hoje entra em sintonia com a preocupação cada vez maior com os destinos do Estado enquanto modelo liberal, e com a possível existência de modelos alternativos ao Estado, modelos de ‘contra-Estado’,[3] nas sociedades ocidentais.
Por outro lado, se as teses de Clastres falam muito acerca de nossas sociedades contemporâneas, elas também criticam de forma veemente a postura hegemônica nas Ciências Sociais acerca das sociedades indígenas, sempre descritas como sociedades ‘da falta’: sociedades sem escrita, sem Estado e sem história.[4] Foi contra isso que ele escreveu toda sua obra – cuja pedra basilar é a coletânea A Sociedade contra o Estado, cuja primeira edição data de 1974 – descrevendo, por exemplo, as ferramentas usadas pelos tupinambás, nos séculos que precederam à conquista europeia, para evitar o surgimento do Estado; ou como muitas culturas consideradas ‘de subsistência’, e que são sempre associadas à pobreza e escassez, de fato produziam mais do que o necessário para viver, e aproveitavam muito tempo livre.[5] Dessa forma, ao mesmo tempo que suas descrições etnográficas e análises teóricas procuram descortinar estruturas e fenômenos sociais em diferentes sociedades indígenas, elas vão deixando dolorosamente claros os preconceitos existentes nas Ciências Sociais modernas, para as quais, a despeito de todas as reiteradas afirmações de objetividade, o modelo da sociedade estatal industrial e pós-industrial de origem europeia é o máximo alcançado pela humanidade, e deve servir de base para todas as outras, a serem julgadas a partir do quão parecidas ou não elas são a esse modelo.
Mas apesar do interesse renovado na obra de Clastres, assim como outras posturas críticas defendidas por autores como Serge Gruzinski e John Manuel Monteiro, as noções civilizatórias continuam fortes e hegemônicas hoje, presentes em discursos historiográficos, antropológicos e muito constantes na mídia e no ensino de História.
Assim é que ainda convivemos com discursos sobre a descoberta da América por Colombo, e do Brasil por Cabral; ainda consideramos que os ‘índios’ desapareceram da história; que os escravos foram apenas vítimas passivas da colonização; e ainda usamos a história europeia como parâmetro para a história mundial. E assim vão se reproduzindo os mesmos discursos etnocêntrico, pois como já dizia Marc Ferro as imagens que temos de outros povos dependem muito da história que nos é contada quando crianças.[6] Então, enquanto continuarmos ensinando sobre sobre culturas ‘mais desenvolvidas’, estaremos relegando às outras, ditas ‘menos desenvolvidas’, aos status perpétuo de bárbaros, de atrasados, de ignorantes.
Em tudo isso, o entendimento do processo de colonização das Américas assume um lugar central, podendo contribuir para a desconstrução desses discursos etnocêntricos. Pois se, de um lado estão as teses tradicionais que afirmam que as sociedades indígenas foram facilmente conquistadas pela superioridade cultural europeia traduzida em armamentos, de outro estão aqueles estudos mais recentes, como os de Mathew Restall, que trazem à tona velhos documentos que mostram que os responsáveis pela derrocada de impérios indígenas no México pré-colonial foram outros estados indígenas, e não os espanhóis. [7] Por sua vez, contra aquela visão de vitimização para a qual africanos, afro-americanos e descendentes nas Américas foram sempre subservientes vítimas trágicas de processos e agentes históricos europeus, a ponto de terem sido libertados por esses últimos, estão os trabalhos de autores como Eduardo França Paiva e João José Reis, que mostram o quanto esses personagens interagiam com as estruturas coloniais e escravistas, o quando negociavam e reagiam, estabelecendo seus próprios processos históricos.[8]
Hoje vivemos uma situação paradoxal, no que diz respeito a nossas interpretações da história do Ocidente, especialmente das américas: por um lado, temos um crescente número de cientistas sociais que olham para o passado e veem mais do que descobertas europeias, índios desaparecidos e escravos submissos. Por outro, continuamos a ensinar sobre a ‘descoberta’ do Brasil, a abolição da escravidão pela Princesa Isabel, a conquista do México por Cortez, sobre as ‘altas culturas’ e as sociedades ‘mais desenvolvidas’ – em geral europeias ou muito similares às europeias – sempre tentando ignorar os outros. Mas o que realmente aprendemos ao tentar estudar tupinambás, aymarás, cherokees e bantos a partir de conceitos construídos para a análise do império romano? E quanto da nossa própria identidade nacional podemos estabelecer, ou compreender, enquanto toda nossa história é medida a partir da Europa ocidental? A verdade é que, por mais que queiramos, os padrões e medidas clássicos da Civilização não nos abarcam – se é que de fato abarcam alguém. E assim, enquanto insistirmos neles, teremos que admitir o fato de que somos, de fato, todos selvagens.
Notas
- SZTUTMAN, Renato. Introdução: Pensar com Pierre Clastres ou da atualidade do contra-Estado. Revista de Antropologia, V. 54, N. 2 (2011), USP. pp. 557-576.
- Em artigo publicado em dossiê acerca da obra de Clastres, por exemplo, Márcio Goldman afirma que “não há nenhuma razão para imaginar que os mecanismos “contra-Estado” descobertos por Pierre Clastres nas sociedades indígenas ameríndias tenham sua existência limitada a esse “tipo” de sociedade”, o que ilustra bem as preocupações dos novos comentaristas com a obra de Clastres. GOLDMAN, Marcio Pierre Clastres ou uma Antropologia contra o Estado.Revista de Antropologia, V. 54, N. 2 (2011), USP. pp. 578-599.
- Cf. CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado – Pesquisas de Antropologia Política. São Paulo, Cosac & Naify, 2003. P. 208.
- Idem, p. 211.
- FERRO, Marc. A Manipulação da História no Ensino e nos Meios de Comunicação. São Paulo: IBRASA. 1983.
- RESTALL Matthew. Sete mitos da Conquista Espanhola. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
- PAIVA. Eduardo França. Escravidão e Universo Cultural na Colônia. Minas Gerais, 1716-1789.Belo Horizonte, Ed. UFMG. 2001; REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociaçãoe conflito – a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras. 1999.
Kalina Vanderlei Silva – Professora da Universidade de Pernambuco.