Circulação do conhecimento na ciência moderna | Temporalidades | 2014
O Departamento de História da UFMG tem assumido um papel de destaque entre as pós-graduações de história no Brasil. A avaliação da Capes concede-lhe, desde 2010, o grau de excelência internacional distinguindo-a com a nota 6. Essa premiação, que recai especialmente sobre a qualidade do trabalho desenvolvido pelos seus professores, foi acompanhada pela competência de seus pós-graduandos. Em 2009, foi fundada por esses estudantes a revista Temporalidades, um periódico voltado para as pesquisas do corpo discente. Hoje, cinco anos passados, a continuidade e seriedade da revista já lhe garante a qualificação Qualis B3 e chega agora à sua 13ª edição. Diferentemente do quadro de professores que é razoavelmente fixo, os alunos encontram-se em um fluxo permanente, o que torna ainda mais notável a continuidade que diferentes grupos de pós-graduandos estabeleceram no gerenciamento da revista. A cada ano, os responsáveis pela edição da Temporalidades são renovados e o trabalho desenvolvido cresce sem perder qualidade. Essa constância de edições e coerência qualitativa tornam o processo de produção da revista um ingrediente fundamental na institucionalização do trabalho de seu corpo discente. Tal esforço, de professores e alunos, ratifica o mérito alcançado pela história da UFMG no cenário nacional.
Mais notável ainda, é a iniciativa da Temporalidades, agora repetida em seu dossiê, de focar as pesquisas sobre a área científica, desenvolvidas por historiadores. É uma agradável experiência acompanhar o investimento da história da UFMG nessa temática. Especialmente por ainda verificarmos, em inúmeros outros departamentos de história, uma rejeição a candidaturas de teses e dissertações que tratem desse objeto, a ciência, sob o olhar da história. Ainda mais inusitado na UFMG é o fato de ser o único departamento de história, no Brasil, que dá explícita e enfaticamente cobertura para a área de estudos históricos da ciência, ao constituir em sua pós-graduação a linha de pesquisa “Ciência e Cultura na História”. Até o momento, estimo que já foram defendidas cerca de 40 dissertações e 12 teses nessa linha de pesquisa. É um marco na formação de historiadores da ciência no Brasil. E com a Temporalidades, o corpo discente faz sua parte, e o faz bem, contribuindo para a consolidação desse pólo de investigação em história das ciências.
Com esse novo número e seu dossiê, “Circulação do conhecimento na ciência moderna”, a Temporalidades contribui bastante para quebrar a resistência, ainda forte em alguns historiadores, de acatarem que a ciência seja um objeto histórico. Afinal, por uma longa tradição, a história das ciências foi constituída à margem da história, desenvolvida em geral por cientistas e filósofos. Costumo dizer que a história das ciências tornou-se uma empresa de historiadores ausentes. Estamos agora em um momento de conquista de territórios abandonados pela história em outras eras historiográficas. A coragem intelectual e abertura conceitual de todos os alunos da pós-graduação da UFMG – recordemos que a Temporalidades representa todas as linhas de pesquisa da pós-graduação, não sendo uma iniciativa exclusiva da linha de história das ciências – revela uma alteração no perfil dos novos historiadores profissionais. Encontramos nessa nova geração uma sabedoria historiográfica e um rigor teórico dignos de aplauso. Parece-me, com iniciativas desse quilate, que o futuro seja mais promissor para as pesquisas, realizadas por historiadores tout court, sobre o objeto ciência.
Infelizmente, ainda hoje, sobrevivem na disciplina história antigos mitos cientificistas que impedem a incorporação de vastas áreas de pesquisa – são regiões tratadas como terras devolutas – ao território de pesquisa do historiador profissional. Talvez o mais abandonado e mistificado desses campos seja o das ciências naturais. Ainda há quem pense que o trabalho científico seja totalmente distinto dos demais trabalhos humanos. Associam ciência a valores absolutos como o de verdade e de objetividade, como se tais valores fossem decorrência de um método garantidor de suas certezas, o método científico a-histórico. Retiram a ciência de sua história. Nada mais falso e anacrônico do que a compreensão de que algum trabalho humano escape aos conflitos e jogos societários que caracterizam qualquer atividade, humana, desenvolvida em sociedade. Não há exceção.
A nobre e venerável verdade científica é produzida pelos mesmos artifícios mentais, psíquicos e sociológicos quanto os mais chãos saberes sociais. Há jogos de interesse em cada laboratório de teste científico, há luta por prestígio em cada grupo de pesquisa, há subjetividade em cada conclusão, dita, “objetiva”. Afinal, a consagrada ciência neutra e pura ainda permanece maculada pelas contaminações das disputas sociais. O que se pode garantir, sim, é que os valores mais característicos e exclusivos da tal ciência “pura, neutra e objetiva” são atribuições alcançadas graças exatamente ao trabalho coletivo realizado em sociedade, por ser validado socialmente. É justamente essa condição histórica da ciência que lhe fornece as qualidades mais admiradas em seus produtos, sejam teorias ou artefatos técnicos. Não há espaço para algum discurso metafísico que se desfaça da origem histórica de qualquer atividade humana e construa uma ontologia para alguma delas, como já se fez com a Ciência, grafada com maiúscula.
Na academia, hoje, não dá para desconhecer as contribuições de Febvre, Koyré, Kuhn, Fleck, Bloor e Latour. A nova geração de historiadores já se encontra bem habituada com tal renovação do olhar histórico. E essa pós-graduação da UFMG é um caso exemplar de uma postura insubmissa ante o conservadorismo historiográfico e que desenha painéis sérios e inovadores para publicação em Temporalidades.
Para este número, a Temporalidades nos oferece um dossiê com 5 artigos selecionados rigorosamente abarcando a temática dos estudos históricos do conhecimento científico. São bem variados e nos oferecem um cenário representativo dos trabalhos realizados nas diversas pós-graduações em história que vicejam no Brasil, focando esse objeto, os saberes científicos.
No primeiro artigo, Jamily Marciano Fonseca aborda a produção intelectual em Fortaleza, durante a década de 1880. Discute como as teorias cientificistas e evolucionistas europeias influenciaram as reflexões dos letrados da época: sobre a sociedade, sua população e sobre a natureza. Fica patente como o cientificismo e outras correntes teóricas evolucionistas contribuíram para construir a identidade do Ceará.
No segundo, João Pedro Dolinski persegue os caminhos da introdução da medicina moderna na sociedade portuguesa do século XVIII, esclarecendo as especificidades desse processo. Três fenômenos distintos pavimentaram os novos caminhos seguidos pela medicina nesse momento: o nascimento da clínica e do método anatomoclínico, o desenvolvimento do cepticismo terapêutico e o advento da fisiologia como disciplina autônoma. O artigo focaliza como a recepção das novas ideias científicas deveu-se, em parte, à influência dos estrangeiros e estrangeirados, em Portugal, pois havia alguma relutância da comunidade científica lusitana em aderir à modernização dos saberes médicos.
No terceiro, Gabriel da Costa Ávila apresenta-nos a Oficina Literária do Arco do Cego, instituição que, entre 1799 e 1801, publicou quase uma centena de obras voltadas para a difusão de conhecimentos de História Natural capazes de serem aplicados ao desenvolvimento agrícola de Portugal e do Brasil. Sua hipótese é de que essa produção tornou-se bastante influente entre os agentes do alto escalão do Estado português, como também entre os naturalistas. Gabriel examina o papel ocupado pela referida Oficina Literária nas articulações entre História Natural e administração colonial. Para tanto, ele emprega instrumentos teóricos apoiados nas noções de rede, interesses e translações.
No quarto artigo, Fabiana de Santana Andrade examina as atividades do letrado baiano Luis Mendes empenhado na fundação de uma academia de letras na Bahia em 1810. As ideias de Luis Mendes foram consideradas “perigosas” o suficiente para que os censores portugueses estivessem atentos às suas publicações. Suas intenções, de origem racionalista, abraçavam orientações para a sociedade e para a ciência que conflitavam com o pensamento predominante.
Finalmente, no último artigo, Ana Paula dos Santos Lima avança pelo terreno da história ambiental ao tratar da política de conservação das matas na Comarca de Ilhéus (1797 – 1808). Nessa região, havia um monopólio das madeiras de construção instituído pela Coroa Portuguesa que se chocava com o ideário liberal, bastante em voga na Europa, possuindo alguns reflexos no Brasil. Nesse artigo, Fabiana examina a atividade do Juiz Conservador das matas de Ilhéus, Baltasar da Silva Lisboa, que mediou as disputas entre os interesses do Estado, dos particulares e dos próprios moradores das redondezas, pelas madeiras de construção.
Esse conjunto de artigos serve de demonstração do esforço dos estudantes da pós-graduação em história da UFMG ao trilharem o caminho de suas profissionalizações e que contribuem, ao lado de seus professores, para manter o padrão de excelência já alcançado pela instituição. Convido a todos para uma boa leitura.
Carlos Alvarez Maia – Historiador e Professor adjunto de Teoria da História Universidade Estadual do Rio de Janeiro. E-mail: alvarez@iis.com.br
MAIA, Carlos Alvarez. Apresentação. Temporalidades. Belo Horizonte, v.6, n.2, maio | ago. 2014. Acessar publicação original [DR]