Cinco memórias sobre a instrução pública – CONDORCET (ES)
CONDORCET, Marques de. Cinco memórias sobre a instrução pública. São Paulo: Editora da Unesp, 2008. Resenha de: PIOZZI, Patrizia. Ensino laico e democracia na época das Luzes: as “memórias” de Condorcet para a instrução pública. Educação & Sociedade, Campinas, v.30 no.108 Out. 2009.
Lançado pela Editora da UNESP, com belo texto de apresentação da tradutora, a filósofa Maria das Graças de Souza, chegou às livrarias, em meados de 2008, Cinco memórias sobre a instrução pública, de Condorcet, um clássico do pensamento das Luzes, disponibilizando ao leitor brasileiro um dos projetos pioneiros para a implantação de sistemas nacionais de educação. Referência obrigatória no debate travado pelos iluministas e pelos revolucionários franceses sobre o papel do conhecimento na construção de uma convivência humana mais justa e feliz, “as memórias” circularam pela primeira vez, em Paris, em 1791, em quatro números do jornal Biblioteca do Homem Público, em meio às lutas e confrontos que dilaceravam as várias tendências atuantes na Assembléia Nacional Constituinte. Alguns anos mais tarde, poucos meses antes de sua misteriosa morte na prisão, no período jacobino, ao examinar os caminhos e descaminhos que marcam a história dos “progressos dos espíritos humanos” (Condorcet, 1993), o filósofo pressentia o advento próximo da época de ouro da humanidade, em que a razão e a justiça irradiariam de luz todos os cantos da terra. Os sinais dos novos tempos evidenciavam-se nas descobertas e novas concepções florescidas no âmbito das ciências naturais e da investigação filosófica ao longo dos séculos XVII e XVIII, cujo impacto contribuía sobremaneira para as transformações econômicas e políticas em curso no mundo ocidental.
Dando origem a uma auspiciosa simbiose, as perspectivas de maior prosperidade para todos, abertas pela mecanização do trabalho e pela universalização do comércio, se aliavam ao grande avanço das ideias de igualdade e liberdade, seja no debate intelectual, seja no movimento histórico concreto, inaugurando a “era das revoluções”. Neste contexto amplo, a longa luta das Luzes em prol da liberdade política e da justiça social vivia uma conjuntura extraordinariamente propícia na França revolucionária, onde, pela primeira vez na história da humanidade, a revolta das massas populares contra a miséria e a opressão se fundia ao ideário emancipatório dos “philosophes”. No entanto, o exame atento dos fatos recentes e do passado mais longínquo indicava ao filósofo que nem o progresso das ciências e artes, nem o estabelecimento da democracia política impediriam o surgimento de novas formas de domínio e desigualdade, se os povos não fossem esclarecidos em torno das leis e regras que governam o “cosmos” das coisas e dos homens, aprendendo a aplicá-las, corrigi-las, inová-las de forma inteligente e criativa. Apenas uma pedagogia empenhada em “ilustrar” todos os seres humanos, independentemente de seu país e religião, poderia assegurar a vitória universal e o exercício efetivo dos direitos políticos e sociais conquistados pelas revoluções e fixados nas leis.
Prioridade máxima no programa de reforma social e política das Luzes, a batalha pela popularização do conhecimento, desdobrando-se entre a intervenção direta no campo da cultura e a elaboração de projetos para a renovação educacional, produzia um amplo leque, e embate, de propostas entre os que se posicionavam a favor de uma instrução universal, porém não única, reservando aos filhos do povo um percurso escolar mais curto, fácil e de caráter “instrumental”, e aqueles que advogavam a legitimidade, e necessidade, de um ensino igual para todos. Na esteira dos projetos mais arrojados e libertários dos enciclopedistas, as “memórias” de Condorcet expõem seu ideal de uma instrução pública radicalmente laica, unificada, aberta a todos, explicitando os princípios e fundamentos filosóficos que iriam nortear, um ano mais tarde, o plano de reforma das instituições educacionais francesas, por ele redigido e apresentado à Convenção em nome da comissão encarregada de sua elaboração (Condorcet, 2000).
A publicação desta obra no Brasil é de grande relevância, não só por se tratar de um marco clássico na história do pensamento pedagógico moderno, mas, também, por sua candente atualidade em nosso país, em uma conjuntura em que as questões da qualidade, conteúdo e natureza laica do ensino público ocupam grande espaço nos debates da área, empenhados em definir os alcances e limites efetivos do direito universal à educação garantido na letra da lei.
Em contraste com toda forma dual de instrução, em que os trabalhadores pobres, privados do tempo necessário ao cultivo da mente, ficam aprisionados a um ensino operativo, mero treinamento para executar tarefas, enquanto os caminhos das ciências e artes são destinados àqueles agraciados pela riqueza ou por um talento extraordinário, seu projeto situa-se na perspectiva da formação intelectual, orientada pelo pressuposto de que todos os homens são seres dotados de sensibilidade e aptidão para formar raciocínios complexos e ideias morais. A progressão escolar, cujo sentido e objetivos gerais são apresentados na Primeira Memória, consta de três níveis. A educação comum, correspondente à nossa escola básica, objeto da Segunda e Terceira Memórias, destinase a transmitir as verdades já descobertas para sua aplicação inteligente e criativa na vida social e política; o Quarto Memorial, dedicado à educação profissional, correlato de nosso ensino superior e técnico, trata dos conteúdos específicos, extraídos do universo científico e artístico, adequados a uma “prática ilustrada” das profissões; enfim, o Quinto Memorial discorre sobre o estudo “acadêmico”, aprofundado, nas várias áreas do conhecimento, preparando os alunos para empreender a viagem por sendas inexploradas, na perspectiva de novas descobertas.
Muito além da garantia formal do acesso e permanência sem custos, o caráter democrático da progressão escolar aí imaginada consiste no fato de que, independentemente da diferente complexidade dos métodos e conteúdos, o ensino dirige-se, em todos os seus níveis, a estimular as dimensões analítica, crítica e inventiva da mente humana. Adotando por diretriz a certeza do vínculo essencial entre teoria e prática e tendo em sua base um letramento que privilegia a análise rigorosa de fatos e “verdades”, conduzida por uma argumentação clara, simples e enxuta, a pedagogia proposta pretende propiciar a “autonomia”, entendida como capacidade de julgar e corrigir as leis, regras e fatos que tecem as relações dos homens com a natureza e entre si. Para a consecução desses objetivos, centra-se, desde a fase mais elementar, no ensino das ciências físicas e morais, consideradas mais úteis e adequadas à intervenção prática no mundo. No entanto, não subestima, em momento algum, a importância da fruição artística e literária para o refinamento do gosto e o alimento dos espíritos: o teatro popular figura no texto ao lado das conferências dominicais para adultos, festas cívicas e outras modalidades culturais, instrumentos essenciais para combater o embotamento da sensibilidade e do intelecto resultante das atividades manuais e mecânicas, predominantes na vida dos trabalhadores pobres.
O empenho permanente em potenciar os atributos racionais e sensitivos comuns a todos os membros da cidade humana desvenda ao leitor o amplo sentido emancipatório do ensino radicalmente laico aí proposto: não se trata apenas de proibir o ensino religioso, nas instituições educacionais financiadas pelo Estado, por seu caráter excludente, potencial viveiro de intolerância e fanatismo, mas de fortalecer as mais altas faculdades humanas, dirigindo-as ao questionamento de todas as certezas estabelecidas, inclusive as científicas e filosóficas, zelando para que não se tornem doutrinas, novos objetos de culto. A adesão cega e imediata a mitos, preceitos e “conceitos”, responsável por estagnar o incessante movimento expansivo dos corações e mentes dos homens, encontra seu terreno mais fértil na ignorância e obtusidade permanentemente repostas pela exclusão do universo da cultura e do conhecimento a que são condenados os que vivem prisioneiros do “reino da necessidade”. Nesta ótica, a defesa do ensino laico está essencialmente vinculada à garantia da independência intelectual dos professores, seja da religião dominante, seja da doutrina política dos governantes. A liberdade de ensino, não apenas nas salas de aula, mas, também, nas escolhas do corpo docente, na forma de sua remuneração, na seleção dos livros didáticos, é imprescindível para garantir aos alunos a conquista da “faculdade” de julgar e agir autonomamente.
Um fio condutor une aqueles que, no nível básico, aprendem a aplicar as verdades já descobertas nos trabalhos e negócios cotidianos e no exercício da cidadania, aos que chegam a se apropriar dos conteúdos específicos necessários à atuação mais esclarecida nas profissões e, enfim, àqueles que iniciam a viagem ao mundo desconhecido das descobertas futuras: todos aprendem a analisar, criticar e inventar, contribuindo, de forma diferente, ao avanço das ciências e das artes e ao crescimento do bem estar coletivo.
A relevância e atualidade deste texto para a área da educação consistem em explicitar uma proposta de instrução pública que, na estrutura, nos conteúdos e métodos, tende a superar os limites da meritocracia liberal, projetando-se como uma crítica radical, e utópica, da sociedade competitiva e mercantil então nascente. Sem omitir a importância da implementação de políticas públicas de estímulo ao esforço e aos talentos, exigindo do Estado a sustentação dos estudos para os pobres promissores, o eixo do projeto encontra-se muito mais na mobilização da cultura e do conhecimento, com a finalidade de contrarrestar os efeitos degradantes da divisão entre trabalho manual e intelectual, pela qual se cria um abismo intransponível entre os homens presos às engrenagens do mecanismo produtivo e os que flutuam livremente nos “espaços celestes” da investigação científica e filosófica e das belas artes. Na construção de uma escola que atingiria todas as regiões do país, acolhendo homens e mulheres, ricos e pobres, crianças e adultos que se dispusessem a procurá-la, a recusa de todo tipo de treinamento se une à luta pela divulgação de um conhecimento laico e “esclarecedor”, atribuindo à instrução pública o papel de combater a redução da riqueza, multiplicidade e potência das faculdades humanas a instrumentos automáticos de perpétua reprodução do mesmo, subordinados aos desígnios dos poderosos.
Nos dias de hoje, a hipertrofia do espírito mercantil e competitivo, aliada ao recrudescimento da intolerância étnica e religiosa, predominante no panorama mundial nas últimas décadas, começa a ser solapada por novas ideias e lutas emancipatórias, encontrando expressão, inclusive em instâncias governamentais e parlamentares, na intensificação do debate em torno de políticas públicas voltadas a ampliar os direitos sociais e as liberdades civis. No campo da educação, evidencia-se, recentemente, no Brasil, o crescimento de movimentos intelectuais e políticos, resistindo aos ataques ao ensino humanista, independente e laico, vindos de fora ou do próprio interior das instituições estatais.
A leitura desta obra magnífica, que traz ao leitor um exemplo lúcido e vibrante dos sonhos reformadores florescidos no palco da mais importante luta revolucionária da modernidade, pode indicar caminhos e alimentar esperanças para aqueles que, na perspectiva de uma escola pública democrática, estão em busca de alternativas às mesquinhas orientações produtivistas e individualistas dominantes, responsáveis por reproduzir, sob nova roupagem, a heteronomia do pensar e do sentir, sempre imbricada às formas mais obscurantistas e perversas de insensibilidade social.
Referências
CONDORCET, Marquês de. Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993. [ Links ]
CONDORCET, Marquês de. Rapport sur l’instruction publique. In: BACZKO, B. (Org.). Une éducation pour la democratie. Genebra: Librairie Droz, 2000. p. 181-258. (Trad. port. Instrução pública e organização do ensino. Porto: Livraria Educação Nacional, 1943). [ Links ]
Patrizia Piozzi – Doutora em Filosofia e professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: piozzi@unicamp.br