Ciências, Tecnologias, Sociedades / Tempos históricos / 2009
Os dois primeiros termos que conformam a temática do dossiê Ciências, Tecnologias, Sociedades, que corresponde ao volume 13, número 2, da Revista Tempos Históricos, só tão usuais no cenário das sociedades atuais que tendem, ás vezes, a tornarem-se sinônimos da contemporaneidade. De meados do século XIX, quando começa a se esboçar o advento da Revolução Científico-Tecnológica, mais comumente denominada Segunda Revolução Industrial, ao século XXI no qual vivemos ainda em meio as incertezas dos caminhos da chamada Revolução Informacional, ou Terceira Revolução Industrial, o mundo sofreu intensas transformações, comumente creditadas ao avanço das ciências e das tecnologias.
A aplicação das descobertas científicas e das novas tecnologias ensejadas por estas, nos processos produtivos, no combate ás doenças, na produção e conservação de alimentos, na captação, transmissão e distribuição de informações, nas formas e equipamentos de lazer, para ficar em alguns exemplos, parece traçar um caminho inexorável no progresso das sociedades contemporâneas. Porém, se as ciências e as tecnologias contribuem no sentido de melhorar a vida de muitos de nós, não podemos esquecer que elas também servem como instrumento de sustentação de práticas destrutivas, que se servem do conhecimento e do aparato científico-tecnológico- ou dos possíveis usos que se possa fazer dele- para provocar destruição e morte. Bons exemplos disto são as recentes guerras ao terror envolvendo os Estados Unidos da América e nações identificadas por esse contentor e seus aliados, como pertencentes ao eixo do mal. Justificadas pelo uso que se poderia fazer de armas químicas e bacteriológicas, não conseguem esconder interesses expansionistas e a necessidade de domínio estratégico, seja de territórios, seja de matérias-primas fundamentais à sustentação da sociedade de consumo.
Vivemos assim, tempos históricos demarcados pela força social de diferentes ciências e tecnologias, força esta que tanto pode potencializar mudanças positivas, individuais ou coletivas, quanto pode atuar de forma a permanecer conservadora de privilégios, estabilizadora ou mesmo desagregadora. Neste sentido é fundamental a compreensão da historicidade das relações que entrelaçam ciências e tecnologias com as sociedades contemporâneas; os movimentos destas na tentativa de moldá-las e controlá-las para atender interesses diversos e muitas vezes conflitantes; o papel dos sujeitos, das instituições, das práticas, dos procedimentos na constituição dos conhecimentos e sua aplicação. Longe de tomar o partido da ciência e da tecnologia como símbolos do progresso, parte-se do princípio de que estas são produtos da cultura, frutos muitas vezes de disputas e tensões, e como tal são modeladas enquanto teoria e prática.
Tal entendimento parece-nos ser o eixo agregador dos trabalhados aqui apresentados. Deste modo estes, apesar de diferenças em torno de objetos, referências teóricas, metodologias, estilos e ênfases, procuram deslindar e compreender as relações culturais- não desprezando é certo, outras relações como as políticas e econômicas- que marcam emergências, transformações, disputas e impasses, entre produção de conhecimento científico-tecnológico e sociedades em contextos históricos variados.
Quatro artigos formam o dossiê “Ciências, Tecnologias, Sociedades. Foram escritos por autores que, se por um lado espelham o eixo comum da formação nos limites da disciplina histórica, por outro demonstram em seus artigos a diversidade de possibilidades interpretativas que o tema enseja.
O artigo que abre o dossiê “ A ‘Viagem de Aperfeiçoamento Técnico’ de José Bonifácio e Manuel Ferreira da Câmara pelas regiões mineiras da Europa central e setentrional (1790-1800) ”, de Alex Gonçalves Varela, apresenta aos leitores uma reflexão a partir de uma documentação pouco conhecida, ou seja, os manuscritos de José Bonifácio de Andrada e Silva e Manuel Ferreira da Câmara. Personagens conhecidos na História do Brasil, mais comumente por seus perfis de homens públicos e atuação no período da Independência do Brasil, os autores mostram nos manuscritos estudados uma faceta quase desconhecida: a de estudiosos e pesquisadores do mundo natural. Arregimentados pelo governo português, os ilustrados realizaram diversas viagens pela Europa setentrional e central, num período de dez anos, durante o qual visitaram escolas de minas e regiões mineiras e produziram reflexões sobre a administração das minas e diversos minerais até então desconhecidos. O objetivo de Varela é o de recuperar a História do empreendimento, destacando objetivos, locais percorridos, textos produzidos, desdobramentos para a trajetória dos estudiosos e a importância para o projeto reformista ilustrado político-científico do governo mariano que visava modernizar o Império português.
“Ciência médica e poliomielite no Brasil na primeira metade do século XX”, de André Luiz Vieira de Campos, é o segundo artigo a compor o dossiê. Neste, o autor analisa os dilemas de médicos, cientistas e autoridades sanitárias no Brasil, durante toda a primeira metade do século XX, diante da ameaça da poliomielite, doença infecciosa viral atualmente erradicada no Brasil, mas que ainda hoje é considerada endêmica, em alguns países, pela Organização Mundial da Saúde. O modelo explicativo da doença, hegemônico até o início da década de 1950, fundamentava-se nos métodos e procedimentos da bacteriologia e fora elaborado por Simon Flexner, na década de 1910. Tal modelo, segundo Campos, apresentava muitas fragilidades e, no Brasil, modelos diversos -que combinavam variáveis dos sistemas explicativos da contaminação e da configuração- serviam para explicar a doença e responder à ansiedade coletiva, especialmente em momentos epidêmicos. Tal dilema durou até a década de 1950, quando a bacteriologia elaborou um novo modelo e uma vacina eficaz para a doença.
Moema de Rezende Vergara em seu artigo, ”Ciência e território em uma revista literária nos primeiros anos da República”, o terceiro do dossiê temático, analisa como a questão do território- um dos mitos fundadores da nacionalidade brasileira- foi vista por cientistas e literatos, que escreveram na Revista Brasileira, em um período de instabilidade política, como foi o do início da República. Para a autora, os periódicos científico-literários do final do século XIX são fontes fundamentais para compreender a relação entre público e ciência, pois, muito provavelmente, era através destas publicações que os leitores tomavam conhecimento das atividades dos cientistas, bem como as revistas serviam para que a comunidade científica brasileira em formação soubesse das expectativas da sociedade. Neste sentido, defende que o tema do território nacional é privilegiado por permitir analisar como esta dupla determinação se articulou em um momento matricial do pensamento social brasileiro.
O artigo “Passa(n)do em Revista Polytechnica: na trilha das mulas… os (des)caminhos da modernidade paulista”, de Nelson Aprobato Filho fecha o dossiê, com uma reflexão sobre o processo de implantação e imposição para o país de um modelo tecnológico paulista. Buscando compreender e interpretar tal processo o autor utiliza como fontes, principalmente artigos publicados, no início do século XX, pela Revista Politécnica da Escola Politécnica de São Paulo. O Brasil, para os engenheiros que participaram da revista, era visto como um campo vasto, selvagem e lucrativo. Para eles, tudo estava em latência ou atraso aguardando a força da tecnologia para alcançar o progresso. Consequentemente, os ˙únicos capacitados para assumir semelhante empreitada seriam os engenheiros e a “modernidade” paulista. Contudo, inúmeros elementos rurais e coloniais existentes em todo o Brasil, inclusive em São Paulo, muitas vezes mostravam-se mais fortes do que as modernas tecnologias.
Yonissa Marmit Wadi– Doutora em História; Professora do CCHS e do Programa de Pós-Graduação em História da UNIOESTE. Pesquisadora do CNPq.
WADI, Yonissa Marmit. Introdução. Tempos Históricos, Paraná, v.13, n.2, 2009. Acessar publicação original [DR]