HEGEL, G. W F. Ciência da Lógica. Tradução de CHRISTIAN G. Ibrer e Frederico Orsini. Petrópolis; Vozes; Brgança Paulista: Editora universitária São Francisco, 2018. (A doutrina do conceito, V. 3). Resenha de: WOHLFART, João Alberto. VERITAS, Porto Alagre, v. 64, n. 3, jul.-set. 2019.
Veio a lume o livro III da Ciência da Lógica, A Doutrina do Conceito. Temos agora em nossa Língua Portuguesa e em nossas mãos a tradução completa da Ciência da Lógica, em um significativo passo para o estudo e o aprofundamento da filosofia hegeliana no Brasil. Isto significa dizer que agora podemos ler em nosso português uma das mais complexas obras filosóficas da história e da literatura universal. A tradução completa da obra é um convite à realização de seminários e congressos, à leitura direta do texto em cursos de Graduação e Pós-Graduação em Filosofia, especialmente é um convite para que os maiores conhecedores de Hegel no Brasil aprofundem os seus conhecimentos. Indiretamente, a leitura do texto hegeliano é um desafio para todo o universo acadêmico, pois se trata de um conhecimento fundamental para todas as áreas.
A tradução foi realizada por Christian G. Iber e Federico Orsini, coordenada por Agemir Bavaresco, com as colaboradoras Marloren L. Miranda e Michela
Bordignon e revisada por Francisco Jozivan Guedes de Lima. Os três volumes traduzidos, respectivamente intitulados A Doutrina do Ser, A Doutrina da Essência e A Doutrina do Conceito, integram a coleção Pensamento Humano, da Editora Vozes e da Editora Universitária São Francisco. Vai um cordial agradecimento aos tradutores e equipe tradutora pelo fantástico trabalho desenvolvido e pela contribuição ímpar à racionalidade filosófica.
A Doutrina do Conceito é o terceiro livro da Ciência da Lógica, dialeticamente significa uma síntese entre os dois volumes anteriores e aparece como centro de articulação de todo o sistema filosófico hegeliano. Ela é resultado da dura crítica hegeliana à filosofia de Kant e Espinosa, levada a cabo no final da Doutrina da Essência, especialmente na seção onde Hegel formula a relação absoluta estruturada em relação de substancialidade, relação de causalidade e interação. Como Hegel, na Doutrina da Essência, empreendeu um processo de demolição da metafísica tradicional, do transcendental kantiano e da substância spinozista, dessa crítica resulta a Doutrina do Conceito recentemente traduzida, editada e que ora resenhamos. Para compreender de forma adequada esse livro, a passagem da Necessidade para a Liberdade é a problemática básica empreendida por Hegel e sistematicamente exposta como conceito. Hegel, depois de um radical empreendimento crítico a que submeteu a filosofia clássica e a filosofia de seu tempo, formula a noção de contradição absoluta como dinamismo e como verdade de toda a realidade.
A partir do coração da Doutrina do Conceito, a referência básica para a compreensão da filosofia hegeliana é a lógica da contradição, que perpassa o pensamento, a realidade e articula o movimento.
A Doutrina do Conceito segue uma estrutura dialética tripartite, em subjetividade, objetividade e ideia. A parte sobre a subjetividade é estruturada em conceito, juízo e silogismo; a parte sobre a objetividade é estruturada em mecanismo, quimismo e teleologia; e a parte sobre a ideia é estruturada em vida, ideia de conhecimento e ideia absoluta. O conceito hegeliano não pode ser confundido com a denominação usual de conceito, segundo a qual o pensamento abstrai os objetos materiais e a realidade empírica em forma de conceito, como uma abstração do real, mas o conceito significa a força do movimento contraditório do pensamento em autodesenvolvimento e autodeterminação. De forma análoga, o conceito caracteriza a própria inteligibilidade do real em seu processo de contradição e autodesenvolvimento, portanto, não uma racionalidade conceitual aplicada às coisas, mas caracteriza a realidade mais íntima e o dinamismo mais profundo de tudo. Em relação à Essência, na qual as coisas são insuficientes nelas mesmas, razão pela qual são dispostas num sistema universal de relações, no Conceito cada determinação é a totalidade do conceito, razão pela qual a relação e a contradição constituem a estrutura de tudo.
Hegel expõe o centro de seu pensamento filosófico logo no começo da Doutrina do Conceito, precisamente enquanto conceito subjetivo, articulado nas categorias de universalidade, particularidade e singularidade. Trata-se de uma espécie de racionalidade dialética na qual as três categorias são dialeticamente integradas na exposição da genuína lógica da contradição, segundo a qual uma nega a outra, e na recíproca negação, conjuntamente se afirmam como sistema. Para Hegel, “o universal, ao contrário, mesmo quando se põe em uma determinação, permanece nela o que é. Ele é a alma do concreto, ao qual é imanente, sem impedimentos e igual a si mesmo na multiplicidade e diversidade dele” (2018, p. 68). Hegel não considera a universalidade como se fosse uma inteligibilidade transcendental oposta ao empírico e à diversidade, como na tradição kantiana, mas o universal é inseparável de sua negação e diferenciação na particularidade e na diversidade.
A universalidade não caracteriza um puro conceito separado, mas a autodeterminação na imanência da particularidade, em um processo de autoparticularização como um momento constitutivo seu. No interior da particularidade, o conceito se dá a si mesmo como um infinito processo de negação e de superação desta na negação da negação, quando se afirma positivamente enquanto conceito. O momento da particularidade, por sua vez, não é uma determinidade exteriormente acrescentada ao universal para preencher a sua indeterminação, mas caracteriza uma determinação intrínseca da própria universalidade. Para Hegel, “o particular é o próprio universal, mas ele é a sua diferença ou a relação com um outro, é o seu aparecer para fora; porém, não está presente nenhum outro do qual o particular seria diferente senão o próprio universal” (2018, p. 72). A particularidade não é o outro da universalidade, na forma de uma exterioridade vazia e posteriormente acrescentada, mas é o próprio universal na sua determinidade, na sua diferença imanente e na lógica de autodesenvolvimento e autocontradição. Dessa forma, a particularidade expõe a universalidade na sua determinidade, nas condições próprias da determinação e no momento preciso desse processo.
Na exposição hegeliana, a singularidade aparece como a síntese entre a universalidade e a particularidade, na forma do retorno da universalidade a si mesma por meio da determinidade do conceito universal. Para Hegel, “A singularidade, como resultou, já está posta pela particularidade; esta é a universalidade determinada, portanto, a determinidade que se relaciona consigo, o determinado determinado” (2018, p. 85). O retorno à universalidade por meio da particularidade não caracteriza o simples retorno à universalidade vazia do começo, mas um autodesenvolvimento dialético mais elevado na universalidade concreta da singularidade. Hegel caracteriza este momento como determinado, na dupla potencialidade da determinação, na segunda determinação positiva na qual a universalidade e inteligibilidade são devolvidas à determinação. É o determinado que se relaciona consigo mesmo na autorreflexividade. A singularidade pode ser interpretada numa dupla acepção, primeiramente na singularidade de Hegel e de Marx como síntese condensada entre a universalidade do gênero e a particularidade da espécie humana expressas na concretude da singularidade, na condição de sujeitos conscientes de si mesmos. O momento da singularidade também pode ser interpretado como universalidade e totalidade concreta, como síntese entre a universalidade do gênero humano e a particularidade do indivíduo na totalidade concreta da sociedade humana. Em um exemplo tipicamente hegeliano, a singularidade é a síntese entre a universalidade da Ciência da Lógica e a particularidade da Filosofia da Natureza na universalidade concreta da Filosofia do Espírito, contendo a totalização do movimento da lógica do sistema filosófico. Do ponto de vista estritamente lógico, a universalidade é a substancialidade intrínseca da multiplicidade da particularidade, na qual a singularidade expressa o sistema relacional no qual a universalidade e a particularidade são reciprocamente imanentes um no outro.
A teoria do juízo expõe as múltiplas formas de entrelaçamento entre o sujeito e o predicado, na perspectiva da identificação entre os mesmos.
Para Hegel, “Mas, enquanto agora o sujeito é o autossubsistente, assim aquela identidade tem a relação de que o predicado não tem um subsistir autossubsistente para si, mas, ao contrário, tem seu subsistir apenas no sujeito; ele lhe inere” (2018, p. 97). A mútua compenetração entre o sujeito e o predicado tem um desdobramento complexo e multifacetário, nas inúmeras formas de singularização e de universalização que esta lógica compreende. Numa primeira aproximação, o predicado é uma universalidade que inere, como uma substancialidade imanente, na estrutura do sujeito. Por outro lado, o sujeito caracteriza uma base real de aplicação de uma multiplicidade de predicados. A teoria hegeliana do juízo supõe uma multiplicidade de predicados e uma multiplicidade de sujeitos, todos eles implicados na mediação da cópula. Nessa implicação, a universalidade do predicado é ilimitada e a singularidade do sujeito é restrita e empiricamente determinada. Na medida em que a singularidade é uma das determinações do predicado, o sujeito singular é subsumido pelo predicado que o envolve em si mesmo. Na contramão deste movimento de inerência do predicado no sujeito, o sujeito é um sistema de predicados e de determinações concretas, transformando-se numa universalidade concreta. O predicado, por sua vez, se transforma em singularidade porque figura como uma das atribuições possíveis, enquanto preserva a sua universalidade em razão de sua inerência em múltiplos sujeitos. Dessa forma, sujeito e predicado invertem as suas atribuições fundamentais e as preservam, na medida em que o predicado não se restringe a nenhum sujeito, e o sujeito é uma síntese de uma multiplicidade de predicados, tornando-se concreto.
Assim, adentramos no terreno do silogismo. A compreensão dos silogismos é fundamental para a exposição do sistema filosófico hegeliano, pois além da formulação realizada por Hegel no coração de sua Ciência da Lógica, o faz em todas as esferas filosóficas e articula silogisticamente todo o seu sistema. Para Hegel, “Mas na razão os conceitos determinados estão postos na sua totalidade e unidade. O silogismo não é, portanto, apenas racional, mas todo o racional é um silogismo” (2018, p. 135). Hegel expõe a sua filosofia em silogismos com a finalidade de integrar a unidade e a diversidade, a totalidade e a unidade, para superar toda a forma de dualismos filosóficos e formas indiferenciadas de racionalidade. Na formulação hegeliana dos silogismos, a totalidade é o ponto de equilíbrio entre a unidade e a diversidade, pois a estrutura complexa se universaliza num sistema de relações, como uma unidade na diversidade, como substancialidade imanente ao diverso, e como diversidade na unidade, como diversidade interrelacionada na formação da universalidade concreta. Para Hegel, o silogismo não é apenas racional enquanto forma de pensamento possível, mas todo o racional é um silogismo porque a racionalidade é a integração e a mediação de múltiplos círculos de racionalidade e de realidade.
No formato de organização silogística exposta por Hegel em toda a sua obra, não há mais uma universalidade vazia contrastada à particularidade empírica, mas o silogismo é a expressão da universalidade preenchida de conteúdo, enquanto totalidade racionalmente articulada. De agora em diante, tudo passa a se transformar num sistema de mediações, no qual uma determinação ou círculo medeia na medida em que é mediado, e é mediado na medida em que medeia. As trilogias hegelianas verificáveis em toda a sua obra, tais como ser, essência e conceito; universal, particular e singular; Lógica, Natureza e Espírito; espírito subjetivo, espírito objetivo e Espírito absoluto, todas estas estruturas de racionalidade são expostas em silogismos nos mais variados formatos de mediação.
Na Doutrina do Conceito, a passagem da subjetividade para a objetividade é um momento estruturante. Na mediação da universalidade, alcançada pelo silogismo da necessidade e a consequente interiorização das determinações concretas de singularidade e de particularidade como constitutivas, o conceito é suprassumido em objetividade. Nesta dialética, a objetividade não é um momento exterior à subjetividade e a ela acrescentada, mas caracteriza o autodesenvolvimento da subjetividade em objetividade. Nessa exposição, Hegel retoma a prova ontológica, de Santo Anselmo, para afirmar que o conhecimento de Deus e a realidade de Deus não são momentos separados, como na tese kantiana da impossibilidade do conhecimento de Deus pela razão teórica, mas o conhecimento de Deus por parte do sujeito constitui momento do próprio Deus. Para Hegel, “Mas precisamente, enquanto é o objeto absoluto, Deus não se contrapõe à subjetividade como uma potência hostil e tenebrosa, mas a contém, antes, em si mesmo como momento essencial” (HEGEL, 1995, §194, Zusatz). Na passagem para a objetividade, Deus não é um objeto exterior à razão teórica e impossível de ser por ela conhecida, não é um objeto tenebroso contraposto à subjetividade finita e contingente, mas é determinado como objeto absoluto. Hegel já superou a oposição entre Deus e homem, entre absoluto e relativo, mas a subjetividade humana através da qual Deus pode ser conhecido é determinada como momento do autoconhecimento de Deus. Nessa formulação, todas as antinomias e relações assimétricas entre termos já foram superadas, porque Deus, na sua absoluticidade e totalidade, penetra tudo, perpassa tudo, interliga tudo, especialmente penetra no pensamento humano, na condição de Deus em tudo. Por outro lado, tudo se desenvolve e se relaciona em Deus como determinabilidade universal de tudo, no círculo segundo o qual tudo está em Deus. Nesta exposição, Hegel conjuga ontologia e epistemologia, na medida em que a objetividade da natureza e do mundo são racionalmente conhecidos, e o conhecimento é constitutivo da própria objetividade.
O ponto de chegada da Ciência da Lógica é a unidade dialética entre subjetividade e objetividade, alcançada na ideia. Esta esfera lógica é como um oceano no qual desembocam todas as estruturas categoriais e de racionalidade da Ciência da Lógica, estruturada por Hegel em ideia de vida, ideia de conhecimento e ideia absoluta. “O objeto, o mundo objetivo e subjetivo em geral, não devem meramente ser congruentes com a ideia, mas eles mesmos são a congruência do conceito e da realidade” (HEGEL, 2018, p. 239).
A unidade do conceito e da objetividade significa que o conceito não é mais restrito à sua formalidade meramente teórica, assim como a objetividade não é mais a exterioridade fenomênica imediata. A unidade entre o conceito, primeiro capítulo da Doutrina do Conceito, e a objetividade, segundo capítulo da Doutrina do Conceito, na Ideia significa que a objetividade corresponde ao seu conceito a ele intrínseco, e o conceito se determina na objetividade.
Dessa forma, no universo da Filosofia do real, o Estado corresponde ao seu conceito quando os cidadãos são efetivamente livres e as suas relações ético-políticas são estruturantes da vida ética e social. Uma igreja corresponde ao seu conceito quando ela é capaz de congregar os seus fiéis no amor e difundir no mundo a lógica do amor como realidade mesma de Deus.
Assim, no capítulo final sobre a Ideia, a confluência sintética entre conceito e objetividade caracteriza a imanência do conceito na realidade, a sua inteligibilidade, e marca o autodesenvolvimento da realidade no desdobramento metódico, enquanto estrutura do conteúdo. Sob o ponto de vista estrito do pensamento filosófico, o capítulo final da Ideia caracteriza o sistema da racionalidade filosófica em seu autodesenvolvimento metódico, na expressão da significação filosófica no conteúdo das estruturas macrossistemáticas da filosofia, como por exemplo, o desenvolvimento da totalidade da História da Filosofia o dos sistemas do Idealismo alemão.
A vida não é apenas o processo interno do autossentimento de si mesmo, mas é traduzida no processo vital de posição da objetividade externa da universalidade real no processo de gênero. Na exposição hegeliana, o gênero consiste na superação da restrição imposta pela exterioridade objetiva ao sujeito, pela autoposição dele mesmo no processo de gênero, no qual o relacionamento com a exterioridade caracteriza uma relação fundamental consigo mesmo. “Este universal é o terceiro estágio, a verdade da vida, na medida em que essa ainda está encerrada no interior da sua esfera. Este grau é o processo que se relaciona consigo do indivíduo, onde a exterioridade é o seu momento imanente” (HEGEL, 2018, p. 258). No processo de gênero, o sistema de objetividade não é mais estranho ao indivíduo, mas o seu próprio processo de universalização transforma a objetividade em determinação imanente sua; por outra, a subjetividade do indivíduo é a próVERITAS pria inteligibilidade da objetividade. Dentro da multiplicidade de indivíduos autossubsistentes, o gênero integra no sentimento de si mesmo do indivíduo o sentimento recíproco em relação a todos os outros, significa dizer que a coletividade é constitutiva do sentimento de si. A reflexão do gênero dentro de si mesmo produz a universalidade genérica em que todos os indivíduos são entrelaçados em relações que formam todo o sistema, como uma força intrínseca que se desdobra a todos os seres vivos. “A reflexão do gênero dentro de si é, segundo esse lado, aquilo através do qual o gênero obtém efetividade, na medida em que o momento da unidade negativa e da individualidade é posto nele – a propagação das gerações vivas” (HEGEL, 2018, p. 259). A reflexão do gênero em sua interioridade produz a efetividade no desdobramento das gerações, na negatividade preservadora da unidade fundamental e incrementa o desenvolvimento qualitativo no qual uma geração se atualiza em relação à outra. A questão de gênero formulada por Hegel na parte da Lógica compreende dois movimentos sistemáticos integrados, na unidade intrageracional da atual geração, em seu sistema de vida, e na projeção intergeracional impulsionadora do desenvolvimento e a atualização do movimento genético.
A ideia de conhecimento acontece no duplo movimento integrador das formas do analítico e do sintético. O conhecimento analítico se restringe ao imediatamente conhecido, sem a consideração de suas determinações e de seus desdobramentos. Integra apenas a forma do conhecimento, sem a consideração do seu conteúdo. Quando se considera, por exemplo, o conhecimento matemático, o momento analítico se restringe simplesmente aos números matemáticos e às suas operações, sem a aplicação à realidade quantificada a partir dessas fórmulas. Trata-se apenas do conceito de racionalidade, sem a consideração de suas estruturas reais e concretas. Na consideração da racionalidade filosófica, o conhecimento analítico se restringe às formas lógicas mais elementares, não entrando em consideração o desdobramento histórico dessa racionalidade e as mediações históricas efetivas. Esse momento integra apenas a genética originária da racionalidade, o seu momento mais indeterminado e vazio, sem a consideração de seus mais variados desdobramentos. Para Hegel, “A partir da natureza a ideia do conhecer resultou que a atividade do conceito subjetivo, por um lado, tem de ser vista somente como desenvolvimento daquilo que já está no objeto” (2018, p. 275). Por esta via, o conhecimento analítico considera o objeto em sua imediaticidade, em sua pura objetividade, como um dado apriorístico, sem a mediação da subjetividade. “O conhecer sintético visa ao compreender daquilo que é, quer dizer, visa apreender a multiplicidade de determinações em sua unidade” (HEGEL, 2018, p. 281).
Enquanto o conhecimento analítico separa as determinações como um atomismo epistemológico, o conhecimento sintético apreende a realidade na riqueza sintética das suas determinações dialeticamente integradas como uma totalidade concreta. O conhecimento sintético não aborda apenas a estrutura concreta e o sistema de interconectividade do real apreendido pela subjetividade, mas o processo de desdobramento das determinações, no desenvolvimento intersistemático em estruturas cada vez mais complexas e concretas. Trata-se de um processo de determinação do que estava indeterminado no momento analítico, numa progressiva evolução do círculo dialético do conhecimento em sempre mais extensa concretude e objetividade, e em sempre mais intensiva subjetividade e interioridade.
A Ciência da Lógica conclui com o capítulo intitulado “A ideia absoluta”. Em um dos mais difíceis textos da filosofia hegeliana, para ele desemboca toda a estrutura dialética da Ciência da Lógica em sua evolução dialética, como também abre para as outras esferas do sistema filosófico na Filosofia da Natureza e na Filosofia do Espírito. Na formulação hegeliana, a ideia absoluta não é apenas uma esfera lógica, mas uma esfera interdisciplinar e interesférica que interliga os círculos da Lógica, da Natureza e do Espírito.
Na ideia absoluta, Hegel aborda a questão do método, não como uma forma externa aplicada ao conteúdo, mas como autodeterminação racional do próprio conteúdo, no movimento da atividade absoluta. Para Hegel, “O método é, por isso, a alma e a substância e qualquer coisa é compreendida e sabida na sua verdade somente enquanto está perfeitamente submetida ao método; ele é o método próprio de cada Coisa mesma” (2018, p. 315). A ideia absoluta é estruturada por Hegel como unidade entre ideia teórica e ideia prática, entre conceito e objetividade, entre ideia de conhecimento e ideia de vida no movimento racional do próprio conteúdo. No método, o conceito é a alma impulsionadora do movimento e o conteúdo é a estrutura de objetividade, na síntese do automovimento do próprio conteúdo.
Como alma do conteúdo, a universalidade do método se determina na objetividade do conteúdo enquanto sistema de totalidade sistemática, em círculos de universalidade que são formas de autodeterminação da ideia absoluta. A Lógica, a Natureza e o Espírito caracterizam círculos diferenciados de autoparticularização da ideia que se determina em objetividade e em oposição à objetividade. Em cada círculo de autodeterminação, a ideia se universaliza, retorna a si mesma e se abre para outra esfera de efetivação, estabelecendo um sistema de totalidade em movimento, no qual ela própria é a força articuladora desta estrutura e mediadora universal.
O método caracteriza um processo de autodesenvolvimento imanente e de contínua ampliação das estruturas de objetividade, sustentado com o retorno à subjetividade enquanto reflexividade do método.
Resenhamos alguns pontos que consideramos estruturantes na Doutrina do Conceito hegeliana. Porém, ela não se restringe ao sistema e à filosofia hegeliana, mas ela é estendível aos nossos tempos. Na atualidade, partir dessa parte da filosofia hegeliana permite atribuir a ela outras funções e estendê-la para o complexo campo da realidade atual.
Hegel nos legou a ideia de contradição como estrutura fundamental do pensamento e da realidade, e a apresenta como um processo em construção em círculos de negação, de contradição e de novos níveis de afirmação. Depois de Hegel, a Doutrina do Conceito ainda é a melhor referência filosófica que temos para compreender a realidade dinâmica, complexa e contraditória. O processo de particularização e de singularização exposto no começo indicam essa lógica. A teoria do silogismo, na forma de sistemas de mediação, é um recurso lógico e epistemológico que nos abre à totalidade do mundo e seus processos.
Agora temos em mãos a tradução completa da Ciência da Lógica, de Hegel, em português. É uma das principais e mais difíceis obras da literatura universal. É uma obra que precisa ser estudada sempre, em razão de seu conteúdo e de sua significação inesgotáveis. Mesmo que ela seja estudada durante uma vida inteira, jamais alguém seria capaz de apreender toda a sua estrutura de racionalidade. Como Hegel escreveu uma Filosofia da História universal, a História universal vai manifestando o seu significado, e, coextensivamente, a Ciência da Lógica ajuda a compreender o significado profundo da História universal. Mesmo com uma vasta bibliografia já acumulada em estudos e comentários, na condição de literatura secundária, ainda estamos longe de conhecê-la satisfatoriamente.
A complexidade da obra desafia qualquer leitura, estudo e grau de conhecimento que se tenha dela, especialmente porque ela vai explicitando novos sentidos e possibilidades de interpretação. Na Doutrina do Conceito, de modo particular, aprendemos de Hegel a não aplicação de uma racionalidade a um conteúdo determinado, a não separação entre universalidade e particularidade, mas um desenvolvimento dialético que parte de dentro e se universaliza progressivamente. Essa noção de racionalidade, estendida ao campo do real, significa que o mundo não é consequência de uma força superior e exterior, mas especialmente a História universal se desdobra a partir de uma racionalidade que carrega dentro, e a própria História aprofunda essa racionalidade.
João Alberto Wohlfart- Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor no Instituto Superior de Filosofia Berthier (IFIBE), Passo Fundo, RS, Brasil. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-4126-3961. E-mail: joao.wohlfart@fabemarau.pro.br Ciência da lógica | João Alberto Wohlfart João Alberto Wohlfart1 Instituto Superior de Filosofia Berthier, Passo Fundo, RS, Brasil. Endereço Postal: Instituto Superior de Filosofia Berthier R. Sen. Pinheiro, 350 – Vila Rodrigues, Passo Fundo – RS, CEP 99070-220
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