Cidades vacinadas. Ensaios urbanos e ambientais para um Brasil pós-pandemia | Leila Marques

Breve identificação da obra, organizadoras e autores

Trata-se de uma coletânea de cinquenta textos – ou ensaios, como descrito no título – de sessenta e sete autores, majoritariamente arquitetos e urbanistas – quarenta, mais precisamente – além de vinte e sete profissionais de outras áreas da ciência que relacionam-se com o urbanismo tais como Engenharia, Direito, Turismo, Biologia, Administração, Comunicação, Relações Internacionais, Antropologia, História, Geografia, Paisagismo, Economia, Artes e outras especializações, reunidos em doi capítulos principais, um capítulo extra, com três textos lúdicos sobre a temática, e um apêndice com uma entrevista auto descritiva com um professor e vereador da cidade do Rio de Janeiro, além da minibiografia de todos os participantes da obra.

O livro possui 296 páginas, com figuras coloridas em alguns textos, com textos de apresentação da organizadora principal, textos dos apoiadores e prefácio assinado pela organizadora e colaboradoras que também assinam alguns artigos do livro.

A organizadora Leila Marques é Arquiteta e Urbanista, Servidora Pública Federal – Cefet/RJ, Doutoranda em Desenvolvimento Local e Conselheira do CAU/RJ e do Instituto Niemeyer. Junto com ela estão as colaboradoras nessa organização, ambas arquitetas e urbanistas, Simone Feigelson, professora da Unirio, também conselheira do CAU/RJ e do Instituto. Denise Vogel, professora, Diretora Executiva da Urbanística e Diretora de Políticas e Projetos Urbanos do Instituto Niemeyer, de acordo com a biografia dos autores no apêndice final.

Na contracapa, Paulo Niemeyer, presidente do Instituto Niemeyer de Políticas Públicas, Científicas e Culturais – Inpuc, esclarece que a expressão utilizada no título da obra, Cidades vacinadas, é ao mesmo tempo temática e provocação aos autores e leitores para se pensar em “caminhos para serem seguidos no momento em que essa pandemia for debelada”.

O Inpuc  esclarece, em texto prefacial, que é ciente da necessidade de avançar com  a apresentação de propostas, análises críticas ou formulações de novos questionamentos sobre  a pandemia,  e que resolveu apoiar a iniciativa de elaboração dessa publicação, porque vai ao encontro da missão para a qual o Instituto foi primordialmente criado em 2010 pelo seu Fundador, Oscar Niemeyer – “a busca por uma sociedade mais justa e solidária” – reconhecendo que a sobrevivência de uma entidade, seja ela pública ou privada, só se justifica, no contexto de qualquer sociedade, mediante a consciência de sua responsabilidade social.

Estrutura da obra

De acordo com a leitura, todos os textos foram escritos no primeiro trimestre de 2021, quando as cidades do Brasil estavam iniciando o processo de vacinação contra a primeira pandemia planetária do século 21, e, de acordo com a apresentação da organizadora, decidiu-se ser este o momento oportuno de se debruçar sobre o tema, aproveitando a experiência passada, diagnóstico realizado em livro anteriormente organizado por ela e lançando agora um olhar renovador sobre o futuro.

O trio de organizadora e colaboradoras teve competência e determinação ao convidar, elaborar, organizar e distribuir a obra num espaço tão curto de tempo e com tanta variedade de conteúdo.

Como dito anteriormente, o livro está organizado em quatro capítulos. O título já sugere uma divisão quando informa conter ensaios “urbanos” e “ambientais” para o pós-pandemia. Assim, no primeiro capítulo, as reflexões se caracterizam mais pelo caráter urbano, com críticas sobre arquitetura, administração pú­blica e o próprio urbanismo das cidades brasileiras, tendo em vista os problemas causados ou ampliados com pandemia. Estão reunidos ensaios com conceitos projetuais, e teorias que poderão ser desenvolvidos para aplicação nas cidades, além de trazer novos questionamentos e caminhos a serem trilhados, num esforço conjunto de res­significação do papel do habitar as cidades e dos caminhos da nossa civilização.

No segundo capítulo, os ensaios e reflexões abordam aspectos da relação entre cidade e o meio ambiente, a vida do homem moderno e seu comportamento social. As cidades se caracterizam pelo território construído, mas como e o que fazer com as áreas naturais que precisam ser preservadas, além de seus mananciais aquíferos e atmosfera onde se respira são questões fundamentais para a vida do homem. O ponto de convergência desses textos é a qualidade da vida do homem enquanto parte da natureza, que dela depende e precisa encontrar um equilíbrio sustentável. A questão do direito ambiental, da economia e do turismo são pontos focados também nesse capítulo. Algumas questões estão presas a legislações ineficientes ou mal aplicadas; outras apontam a dependência de um novo paradigma comportamental que o homem precisa adotar, ratificado diante da pandemia mundial.

A terceira parte, como explicado no próprio livro, realiza-se um encontro lúdico entre a arte e a ciência, cuja parceria é muito mais presente no dia a dia, do que nos damos conta.  A tecnologia da TV e internet foram, sem dúvidas, exemplos de que a vida sem a arte teria sido muito mais difícil de suportar diante da ordem do isolamento social. Arte e tecnologia alimentam-se da criatividade e os autores convidados deram seu recado em verso e em prosa.

Na última parte, no apêndice, as organizadoras buscaram a palavra do professor, parlamentar-vereador mais bem votado da cidade do Rio de Janeiro em 2020, ano de chegada da pandemia no Brasil, com perguntas que cobram de uma certa forma a ação de políticas públicas para que as cidades não sejam mais pegas de forma tão desprevenidas e tão vulneráveis no futuro. As perguntas têm também objetivo de demonstrar a compreensão política da situação da crise atual é fundamental para a ação de um povo culturalmente bem alimentado e capaz de fazer escolhas menos erráticas nas eleições. As respostas da entrevista foram redigidas pelo próprio entrevistado e refletem literalmente suas opiniões pessoais.

Análise crítica de conteúdo

Como livro de coletâneas, há muita variedade de assuntos relacionados à pandemia e seus efeitos nas cidades, o que, por um lado, torna a leitura apropriada para leitores especialistas ou generalistas, mas, por outro lado, não há uma conclusão conjunta, ou uma proposta central para aplicação imediata nas cidades pós-pandemia; as propostas são todas apenas indicativas.

O ponto central que a maioria dos autores abordam, de uma forma histórica, geográfica, política, social ou urbanística é a constatação do abandono de regiões “sombreadas” nas nossas cidades e regiões metropolitanas brasileiras.

Essas regiões, que se acostumou chamar de periferias, podem significar a periferia geográfica de fato, longe dos centros urbanos, onde as “coisas” de uma cidade acontecem, onde os serviços públicos, a infraestrutura e o comércio de boa qualidade em geral são presentes em contraponto a esses bairros, localidades mais afastadas. Ou podem estar no “centro nervoso” das cidades ao lado ou atrás de um prédio de classe média-alta, em encostas de morro, em regiões pantanosas, em beiras de rio, ou seja, em áreas precarizadas de favelas, que são locais da cidade que a população pobre, desassistida, sem oportunidades de aquisição de uma habitação pela forma legal, adquire ou autoconstrói seus imóveis.

O resultado dessas construções sem projeto, sem planejamento urbano para área, sem oferta de transporte de qualidade e em quantidade suficiente para os moradores mais afastados de seus trabalhos, em ocasiões de estado exceção, como está sendo a pandemia pela qual o Brasil ainda está vivenciando, é o agravamento da crise, com o contágio proliferado em aglomerações em transportes, em ruas e residências muitas vezes sem ventilações adequadas, com esgotos sendo jogados em rios a céu aberto, com dificuldade para obtenção de água potável, para sobrevivência alimentar e para manter a higiene tão necessária e tão preconizada.

Nesse cenário são citadas as legislações já existentes que, se cumpridas, poderiam ter minimizado o sofrimento da população em várias situações de risco; citam-se também ações da sociedade civil organizada e as entidades que lutam por políticas públicas que diminuam o desequilíbrio social escandaloso de nossas cidades e algumas soluções tecnológicas em andamento.

A cidade é citada de diversas formas, como a Presidente do CAU BR, Nádia Somekh e a Angélica Alvim apontam que “pressão por moradia significa pressão por cidade […]. Essa é uma questão crucial a que se defrontará o urbanismo brasileiro nos próximos anos”. Como no texto delas, há uma ênfase dada por vários autores sobre a necessidade de o Brasil resolver com urgência a questão do déficit habitacional para famílias da dita “faixa 1” de renda, como chamadas durante o Programa Minha Casa Minha Vida, que são aquelas famílias que não tem nenhuma renda formal, fixa, capaz de assumir qualquer tipo de financiamento, por mais subsidiado que seja.

O livro apresenta grande valor na historiografia urbana da cidade do Rio de Janeiro, elucidando os princípios que nortearam a metropolização da cidade de onde são moradores a maioria dos autores, apresentando fatos que se repetem desde o Brasil colônia, apontando, em alguns casos, ações que precisam ser implementadas para mitigar as excessivas vulnerabilidades.

A Arquitetura das casas para o pós-pandemia diante da realidade do home-office do ensino à distância e das outras atividades são discutidas em contraponto a legislações que cada vez mais permitem que o homem se “aperte” mais, para viver numa habitação tipo quarto de hotel (de pouquíssimas estrelas). E fica a discussão se essa solução virtual será tão saudável para os usuários quanto para o sistema de transportes urbanos que, de acordo com o Diretor Regional da ANTP, William de Aquino: “O transporte coletivo ainda perderá muito espaço e demanda gerados pelos novos desafios. Mudanças de hábitos irão ocorrer sim, com reflexos na localização e projetos das residências, das ruas, no uso do transporte ativo que muitos não tinham experimentado antes ou valorizado…”

Nos ensaios ambientais, mais uma vez são colocadas as legislações existentes que deveriam proteger encostas, água, ar, franjas de montanhas e mata nativa, mas que, por ganância, incompetência ou falta de gestão pública apropriada, acabam sendo mais agredidas que as próprias construções irregulares dos cidadãos periféricos.  De acordo com o Biólogo Mario Moscatelli, em seu texto: “Como se diz, a Natureza não se protege, se vinga”, reportando-se às eventuais enchentes e outras catástrofes naturais consequentes de ações danosas do homem à natureza.

O livro mostra algumas alternativas para ampliação do turismo em jardins ou praças que se encontram abandonados, desvalorizados e que, com pequenas intervenções ou apenas com serviço de conservação/ manutenção periódica pode atrair público, como ocorre em diversos países do mundo. Não são apresentados quaisquer projetos urbanísticos mais detalhados, já que a coletânea abre apenas espaço indicativo para estudos complementares. E, nesse mesmo raciocínio de reforma para utilização e preservação dessas áreas públicas, seguem reflexões para projetos de habitação social, com o uso de prédios públicos e privados abandonados, o que poderia resolver problemas de subutilização de edificações, de déficit de habitação popular, de segurança em bairros centrais que não têm movimento fora do horário comercial, além da possibilidade preservação de prédios com valor arquitetônico ou histórico.

Há consciência social presente no tocante à economia, sabendo-se distinguir com propriedade que essa dicotomia saúde e economia não pode ser determinante nas políticas emergenciais que precisam acontecer para mitigar os efeitos danosos de uma pandemia dessa magnitude. Na fala do Secretário de Cultura de Saquarema, Manoel Vieira, “no campo da cultura, o prejuízo é ainda maior que no turismo. A manutenção das restrições de circulação de pessoas e funcionamento de estabelecimentos, por si só, já dificulta a realização de espetáculos”. E como não seria possível ser diferente, há muita crítica ao atual governo (e a anteriores também), nas 3 esferas, no tocante ao relaxamento na organização, segurança, fiscalização e abastecimento de serviços de nossas cidades.

No mais, como o livro é bastante diversificado, para abordar todos os pontos, seria necessária uma resenha de cada artigo o que se consubstanciaria em novo livro, mas nunca faria jus ao seu real conteúdo e variedade de ideias.

Considerações finais

A escolha criteriosa de um time de autores e autoras de “primeira linha”, dentro de suas áreas de atuação, como se constata na biografia do apêndice, é, sem dúvida, um dos motivos da qualidade superior da obra que atinge a esperada e necessária pluralidade cultural e diversidade de conteúdo. As opiniões dos autores, por vezes se sobrepõem, dando a impressão de que vamos ler algo muito semelhante ao texto anterior, mas, em determinado instante, o foco da ideia central do autor se materializa em novos olhares e mais conceitos são obtidos com sutileza e propriedade.

A obra se destina a um público eclético que aprecie a leitura estilo livre, por vezes crítica, por vezes acadêmica, por vezes cronista, sobre a temática das cidades, do urbanismo, do meio ambiente, das políticas públicas, da ecologia, com toques de economia, arquitetura, antropologia, sociologia e outras humanidades.

Plural, propositivo, crítico responsável, conceitual são as principais características da obra que possui material mais do que necessário e suficiente para roteirizar o documentário homônimo que as Organizadoras já anunciaram que estão produzindo com apoio do Instituto Niemeyer e que terá tudo para ser um sucesso.


Resenhistas

André Luis Azevedo Guedes – Doutor em Engenharia Civil, com pós-doutorado em Administração de Empresas pela Universidade Federal Fluminense (UFF PPGAd). É diretor regional da Rede Brasileira de Cidades Inteligentes e Humanas (RBCIH) para o Estado do Rio de Janeiro.

Leila Marques da Silva – Arquiteta e urbanista (UFF, 1985), graduada em Licenciatura em Construção Civil (Faculdade Bethencourt da Silva, 1987), especialização em Gestão Pública (FIJ), mestre em Desenvolvimento Sustentável e doutoranda em Desenvolvimento Local (ambas pela UNISUAM). Servidora Pública Federal desde 1985, chefe da Seção de Projetos do CEFET/RJ. Conselheira estadual do CAU RJ (2018-2023), conselheira do Instituto Niemeyer de Políticas Urbanas, Científicas e Culturais. Autora e organizadora do livro Coronavírus e as Cidades no Brasil: reflexões durante a pandemia (Outras Letras, 2020).


Referências desta Resenha

MARQUES, Leila (Org.). Cidades vacinadas. Ensaios urbanos e ambientais para um Brasil pós-pandemia. Rio de Janeiro: Rio Books, 2021. Resenha de: GUEDES, André Luis Azevedo; MARQUES, Leila. Cidades vacinadas contra o quê? Resenha Online. São Paulo, n. 236, ago. 2021. Acessar publicação original [DR]

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