Cidades e Culturas Urbanas / Projeto História / 2017

Cidades e culturas urbanas em memórias, linguagens e perspectivas de presente

A proposta temática sobre cidades e culturas urbanas, apresentada pela Revista Projeto História, surgiu do nosso interesse e da avaliação sobre a importância dos estudos que buscam dar visibilidade aos modos culturais de viver, considerados na multiplicidade de práticas, valores e sentimentos que caracterizam as diversas experiências sociais, lutas e resistências dos sujeitos históricos.

Ao priorizar o tema Cidades, volta-se o presente dossiê para a discussão sobre os processos de constituição das culturas urbanas. Trata-se de promover o debate sobre viveres e fazeres dos trabalhadores e grupos populares, sua vida material e simbólica, seus territórios de memória, seus projetos, dissidências, práticas, tradições e relações com o meio ambiente, além de articulações com outros grupos sociais. Isto implicou em não perder de vista os desafios teóricos e metodológicos propostos por diferentes registros (em suportes materiais diversificados) que se apresentam à pesquisa histórica na atualidade, como expressões de experiências de sujeitos sociais nas cidades, surpreendidos em sua diversidade profissional, étnica, etária e de gênero no confronto entre culturas e modos de viver e trabalhar.

Assim, também as pesquisas aqui apresentadas refletem sobre a cidade como uma categoria da prática social, como elemento constitutivo dos processos históricos e da construção de seus moradores, tendo explorado as várias articulações entre a concretude mais visível das cidades e sua dimensão imaginária, quer a reflexão se centre mais em uma ou em outra dimensão.

Das análises históricas desses artigos, observamos a noção de território como espaço vivido e inventado por sujeitos sociais, em processos por meio dos quais heranças e tradições rurais se reinventam na cidade, tornando-se dimensões importantes de sua constituição. Do mesmo modo, hábitos, costumes, tradições engendrados na cidade penetram as vivências rurais. Logo, processos de territorialização e desterritorialização (movimentos migratórios, lutas por posse de terra, lutas por habitação, trabalho) inscrevem a luta de classes na espacialidade. Nessa perspectiva, a noção de território, ao questionar a ideia de cidade e de campo como meros cenários de práticas e experiências, possibilita-nos a percepção de que as temáticas do urbano e do rural se entrelaçam com as do trabalho.

Nessa linha, Agenor Sarraf Pacheco, no atual número da Projeto História, apresenta artigo em que “acompanha o fazer-se do urbano e do rural em contínuas simbioses”, problematizando questões acerca dos viveres sociais pelo tema da cultura e suas festas na Amazônia marajoara de 1930 a 2000. Leonara Lacerda Delfino analisa experiências e articulação de fazeres sociais urbanos em “rituais de separação e de incorporação no além-túmulo” na Irmandade do Rosário de São João del-Rei, de 1782 a 1828. Rodrigo Otávio dos Santos apresenta análise dos quadrinhos de Chiclete com Banana, por perspectivas da formação política da juventude urbana brasileira de 1985 a 1990, destacados amplos diálogos sociais naquelas páginas. O autor Magno Santos aborda a “escrita da história das espacialidades e da cultura urbana da Cidade de Alagoas no oitocentos”, destacados os caminhos interpretativos sobre manifestações religiosas da época em relatos de viajantes e cronistas vinculados ao Instituto Arqueológico e Geográfico alagoano. A pesquisa de Verônica Sales Pereira apresentada neste volume traça paralelos temáticos entre a produção social da memória, movimentos migratórios em São Paulo e a questão da forte especulação imobiliária no bairro da Mooca, São Paulo, no início do século XXI. José Otávio Aguiar revaloriza em seu artigo dimensões de resistências de grupos sociais por reformas urbanas na cidade de Campina Grande, e possibilidades interpretativas no campo da história ambiental. Fechando o atual dossiê temático, Henry Marcelo Martins Silva problematiza “modernidade e exclusão na belle époque sertaneja”, e o papel de elites dirigentes no processo de formação do meio social urbano na cidade de São José do Rio Preto durante a chamada “primeira república” brasileira.

Na seção artigos livres, traz a revista importantes reflexões. Marcos Silva problematiza temas e amplas interfaces da literatura de Jorge Amado com a formação de um mundo histórico de paz social e econômica, e esperança política, na passagem dos anos 50 para a década seguinte do século XX. A partir da análise de difícil momento de desvalorização integral de conquistas de direitos das sociedades socialistas, em face das graves violências do totalitarismo estalinista, amplamente divulgadas naquelas décadas, o autor pensa problemas em torno do controle autobiográfico de Jorge Amado sobre sua própria obra, bem como a relevância do trabalho do escritor baiano para o ensino de história. Laura Antunes Maciel, a partir de documentação produzida pela “Comissão Rondon”, ressalta a presença de outros sujeitos e suas memórias, histórias não expurgadas de contradições, forjadas em meio ao ocultamento de experiências sociais de excluídos da sociedade. A autora pensa a produção da memória em torno do controle de projetos de formação de patrimônio, observadas perspectivas de disputas entre concepções de nação e de estado como lugares sociais recobertos pela ideologia do planejamento. Nessa mesma seção, Nelson Tomelin Jr. e Maria do Rosário da Cunha Peixoto apresentam experiências de resistência de trabalhadores e trabalhadoras na Amazônia brasileira a partir de processos trabalhistas travados na Junta de Conciliação e Julgamento da cidade Itacoatiara durante a ditadura, e no seu período posterior. Tomados tais processos como fontes, os autores problematizam as experiências de homens, mulheres, inclusive crianças, em difíceis disputas trabalhistas vivenciadas naquele momento social de acirrada luta de classes.

Na seção notícias de pesquisa, o atual número traz a contribuição de significativos relatos. Marilu Santos Cardoso nos fala de investigação no campo da criação musical nos anos de 1960 a 1990, e as implicações acerca da produção do esquecimento e da minimização da importância de artistas na sociedade autoritária brasileira daquele período. Matheus da Silva analisa resistências urbanas de trabalhadores na ditadura civil-militar em motins de 1983 contra a fome e o desemprego na cidade de São Paulo. Também nessa seção, Vanessa Miranda apresenta a trajetória de criação da AMISM – Associação de Mulheres Indígenas Sateré-Mawé, em Manaus, no período de 1995 a 2014. A autora, ao revalorizar a organização social de indígenas no estado do Amazonas, suas reivindicações por saúde e amplos direitos, como a participação política, evidencia perspectivas históricas da construção da democracia naquela cidade.

Destacamos ainda a colaboração de Giuseppe Roncalli Ponce Leon de Oliveira e Marinalva Vilar de Lima em resenha do livro “Ditaduras do cinema: Brasil, 1964 / 1985-1965 / 2006”, coletânea de textos organizada por Marcos Silva.

Finalmente, apontamos aqui o esforço de dar publicidade para relevantes trabalhos de pesquisa que enfatizam o espaço urbano como constitutivo de práticas sociais, tradições e hábitos conflitantes. Tais trabalhos desenvolvem reflexões sobre o exercício da escrita e da leitura, a respeito da produção musical e iconográfica, festas e rituais, comemorações e memórias, assim como outras formas de expressão e comunicação, dimensões importantes da construção das cidades e seus modos de vida.

O presente número reúne trabalhos que assumem as perspectivas de presente como campo de reflexão historiográfica e prática profissional. Afirmam esses pesquisadores a cultura como campo de construção de hegemonias e de projetos alternativos, articulando, em suas temáticas, modos de viver e trabalhar em diferentes espaços urbanos e temporalidades.

Maria do Rosário da Cunha Peixoto

Nelson Tomelin Junior.


PEIXOTO, MARIA do Rosário da Cunha; TOMELIN JUNIOR, Nelson. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.58, 2017. Acessar publicação original [DR]

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