Cidade e Habitação na América Latina / Urbana / 2014

Este Dossiê Cidade e Habitação na América Latina está organizado a partir dos trabalhos apresentados (em Conferências e Sessões Temáticas) no III Congresso Internacional de História Urbana ocorrido em Brasília no mês de novembro de 2013 e organizado pelo Grupo de Pesquisa em História do Urbanismo e da Cidade (GPHUC-UnB / CNPq) e pelo Centro Interdisciplinar de Estudos da Cidade do IFCH-UNICAMP. A “origem” do Congresso foi a organização da coletânea “Ciudad y Vivienda en America Latina – 1930 / 1960”, coordenada por Carlos Sambricio (ETSAM / Universidad Politecnica de Madrid), publicada em 2012 pela Editora Lampreave (SAMBRICIO, 2012). A realização do livro envolveu pesquisadores de Universidades do Brasil, Cuba, Argentina, Chile, Venezuela, Colômbia e México, que elaboraram estudos sobre as cidades capitais e sobre habitação social nos seus respectivos países.

O III Congresso Internacional de História Urbana – “Cidade e Habitação na América Latina” centrou-se nas investigações históricas acerca de ações empreendidas pelos Estados Nacionais dos Países Latino-americanos no campo das problemáticas habitacionais de interesse social e de intervenção urbana-planos urbanísticos no contexto da importante urbanização e industrialização vivenciada no continente entre as décadas de 1930 e 1960. Entre os objetivos que orientaram o congresso e, consequentemente, este dossiê, vale mencionar a atualização dos debates sobre resultados de investigações, no campo dos estudos urbanos, da temática proposta para o evento: Cidade e Habitação na América Latina, 1930-1960”; a discussão, a partir de pesquisas em diferentes nacionalidades, acerca das relações entre projetos políticos, política urbana e habitação no período. Além disso, ao aprofundar o debate acadêmico sobre diferenças e aproximações entre as políticas urbanas nos países do continente americano, por meio de uma perspectiva comparada, o evento e este dossiê buscam viabilizar a continuidade e o aprofundamento das interlocuções acerca da história urbana estabelecidas, entre outros espaços, em dois congressos anteriores, organizados em 2004 e 2009.

O livro (Ciudad y Vivienda en America Latina) e o III Congresso Internacional de História Urbana apresentavam ainda uma especificidade importante: os estudos, os pesquisadores envolvidos e a estrutura proposta para realizar o evento privilegiaram investigações históricas feitas nos países da América Latina. Com a publicação do Dossiê pela URBANA, os trabalhos aprovados para o Congresso e os textos das Conferências de pesquisadores brasileiros convidados para o evento em Brasília complementam o escopo dos estudos que foram inicialmente publicados no livro em 2012, ampliando assim o acesso a pesquisas que dialogam com o tema geral, tanto no Brasil como em outros países do continente americano.

Outro aspecto relevante da proposta original do livro e que reverberou no Congresso e no Dossiê agora publicado foi o recorte temporal 1930-1960, em continuidade aos Congressos anteriores, dedicados às décadas iniciais do século XX, além de abranger debates e projetos polêmicos e significativos para a redefinição do lugar político e cultural das Américas nas relações entre as nações no período. O III Congresso buscou promover uma oportunidade de interlocução entre pesquisadores voltados à investigação de processos sociais, políticos, econômicos e culturais de singular relevância para o continente americano, particularmente para os países de colonização espanhola e o Brasil – aspecto ampliado por este Dossiê, que se abre para uma temporalidade mais larga, ampliando as relações para décadas anteriores e posteriores ao recorte 1930-1960.

Cidade e Habitação na América Latina

Ao tomar-se o próprio Brasil como exemplo para se pensar a temática no período, entre as décadas de 1930 e 1960, é possível reconhecer a proeminência do debate proposto pelo livro, norteador das sessões e conferências do III Congresso Internacional de História Urbana. Numerosos estudos têm investigado os desdobramentos de mudanças profundas e polêmicas circunscritas ao logo desses trinta anos entre 1930-1960, que em certa medida transformaram estruturalmente os processos de desenvolvimento do país, sobretudo pela relevância da reestruturação produtiva marcadamente industrial conduzida pelas duas expressivas forças políticas brasileiras, organizadas em torno de dois governos nacionais: o primeiro liderado por Getúlio Vargas (1930-1945), portanto, integralmente inserido entre o contexto de rupturas da ordem política institucional de 1930 e 1937, o segundo representado por Juscelino Kubitschek (1956-1960). Este segundo, já no âmbito da redemocratização instaurada com o final do Estado Novo e elaboração da Constituição de 1946, conhecida como Constituição Municipalista, especialmente pela sua orientação liberal, e que culminou com a inauguração de Brasília. Deve-se ressaltar ainda, considerando-se os intensos e reiterados debates em torno das expressões modernas na arquitetura, a importância que adquiriu nesse período a redefinição do lugar específico da arquitetura e do urbanismo produzidos no continente americano entre as demais expressões, ou seja, a discussão em pauta no período acerca das possibilidades de uma contribuição cultural e política singulares nas Américas. Ao lado do impulso dito “desenvolvimentista”, tal debate de fundo cultural não deixou de intervir fortemente no contexto dos debates políticos no continente, desdobrando-se em repercussões que permanecem na pauta dos estudos sobre o período por seu papel crucial – estudos do campo da História, das Ciências Sociais, da Arquitetura e Urbanismo etc.

Uma aproximação de caráter econômico, nesse caso, permite considerar que o desenvolvimento brasileiro passou por uma mudança estrutural e estruturante da base econômica profundamente agrária vigente ao longo do período imperial e da chamada primeira república (ainda que a mudança não tenha implicado na eliminação completa de formas de organizações então vigentes). Tal abordagem pode ser sintetizada, em termos abrangentes, a partir de duas tendências importantes. Antes da década de 1930 e desde o movimento republicano de 1889 [1] , pode ser caracterizada principalmente por uma “política econômica externa, de tipo liberal” (IANNI, 1971: 28) agroexportadora e baseada na produção do café [2] ; depois de 1930, é possível identificar o delineamento de uma tendência fundamentalmente industrial, mediante orientação conjuntural do planejamento econômico pela implementação de políticas direcionadas em certa medida à substituição da importação de produtos, e estruturalmente pela lógica da dependência (re)estabelecida já no final da década de 1960 em relação ao capitalismo central.

Contudo, se por um lado a industrialização, sobretudo a chamada indústria de base, pode ser considerada orientadora da política nacional de desenvolvimento desde 1930, de certa forma, até como política de Estado e não apenas da política de governo, por outro lado não pode ser analisada desvinculadamente das concepções e princípios macroeconômicos e políticos que fundamentaram os projetos e em especial os projetos de governo até 1960. Os projetos políticos construídos em torno do governo de Getúlio Vargas orientaram suas ações na “defesa de novas soluções para os problemas da sociedade nacional” (IANNI, 1971: 69). Para Octavio Ianni, essas novas soluções devem ser consideradas de tipo nacionalista, caracterizadas pela redefinição das relações do Brasil com o capitalismo mundial, nacionalizando as decisões sobre a política econômica.

Em relação às forças mobilizadas em torno do projeto governamental do presidente Juscelino Kubitschek, na década de 1950, as orientações assumidas no planejamento governamental, estruturadas no Plano de Metas, expuseram princípios distintos ao chamado nacionalismo varguista em relação ao mesmo capitalismo mundial. Segundo Fernando Rezende, ao reforçar a complementaridade dos setores que compunham o parque produtivo brasileiro, o Plano de Metas completa o ciclo de industrialização iniciado na década de 1930, promovendo a diversificação da indústria brasileira. Entretanto, afirma o autor, “ao apoiar essa nova etapa de industrialização no estreitamento das relações do capital privado nacional com o internacional, ele alterou o padrão de dependência externa, revertendo a posição nacionalista da Era Vargas” (REZENDE, 2011: 179).

É também nesse contexto de esforços para o desenvolvimento brasileiro orientado pela ação planejada do Estado –diante de opostos em seus princípios, concepções e ideologias – que o processo de concepção, construção e inauguração de Brasília, como capital do Brasil, teve papel relevante para o país. Vista nesse sentido, a inauguração da nova capital brasileira extrapola inclusive sua inserção nacional e internacional no debate intelectual e profissional no campo específico da arquitetura e urbanismo. Essa realização perpassa o próprio debate sobre o planejamento governamental brasileiro e as decisões relativas ao desenvolvimento nacional, no mesmo momento em que os outros países latino-americanos também o fazem a partir das suas experiências particulares. No caso de Brasília como fator estrutural, sua construção justificava os “investimentos no setor de transportes (rodoviários), pois as ligações do país com Brasília, assim se supunha, provocariam a integração e o desenvolvimento da hinterland” (LAFER, 2003: 35).

Ainda conforme Celso Lafer, do ponto de vista político-econômico, a opção por Brasília e sua inclusão no Plano de Metas foi resultante do conceito de ponto de germinação concebido por equipe criada pelo governo Juscelino para elaboração de programas de desenvolvimento econômico. O conceito estava pautado “no pressuposto de que a oferta de infraestrutura provocaria atividades produtivas” (LAFER, 2003). Por outro lado, o próprio Lafer entende todos os cinco setores do Plano de Metas, mas especialmente alimentação, energia e transportes – estes dois, bases estruturais para a consolidação do processo de industrialização da economia desde 1930 – como associados a outro conceito, o de ponto de estrangulamento, mapeados na existência de áreas de demanda insatisfeita de infraestrutura, consequência do desequilíbrio do desenvolvimento econômico brasileiro (LAFER, 2003).

Enquanto decisão política apoiada na orientação técnica do planejamento governamental, Brasília consubstanciou-se na complementaridade e articulação dos dois conceitos, o de estrangulamento e o de germinação, associando a necessidade de eliminação dessa demanda insatisfeita com a necessidade de oferta de infraestrutura para a expansão da economia e do desenvolvimento nacional. Nessa perspectiva, uma decisão política com duas temporalidades: a primeira relacionada à elaboração do projeto urbanístico – expressa no próprio concurso público vencido por Lucio Costa –, a segunda relacionada à construção da cidade propriamente dita, esta sim fundamental para a consolidação dos dois conceitos e seus objetivos.

Outro aspecto que envolve a decisão política por Brasília, também fundamental nesta segunda temporalidade – a construção da capital – é a consolidação do setor de transportes como base estrutural do desenvolvimento (e elemento de integração) brasileiro desde o século XIX, ainda no âmbito da economia agroexportadora. Na década de 1950, no contexto da implementação desta decisão política, esse setor já orientava a industrialização brasileira nucleada em São Paulo, particularmente pela indústria automobilística, matriz da lógica rodoviarista do desenvolvimento intramunicipal, interregional e nacional (COUTINHO, 2003: 37-57).

Por outro lado, ao considerar-se também outras leituras políticas possíveis para o período, atentas também às dimensões simbólicas não menos importantes nos debates acerca do desenvolvimento e dos projetos em pauta ao longo das décadas de 1930 a 1960, é possível ainda compreender essas transformações – efetivadas ou desejadas – como participantes ativas da construção de novos modos de compreensão do país e do continente. Brasília poderia ser vista, assim, não apenas como partícipe de um plano de desenvolvimento e um “plano de metas”, mas de um plano não material e projetivo, com funções simbólicas e mesmo identitárias importantes e de forte repercussão.

É possível perceber a redefinição do papel histórico da cidade para o país, não apenas no momento de decisão política definitiva sobre a nova capital, mas também ao longo dessas décadas, por exemplo, no segundo governo Getúlio Vargas, com a criação em 1953 da Comissão de Localização da Nova Capital. Acompanhando a pergunta de Laurent Vidal, que permite uma indagação também simbólica e profundamente política desse projeto, que função poderia ter uma cidade antes (e além) de sua existência física? Ou ainda: “A que corresponde essa imperiosa necessidade social de projetar ou fundar, mesmo no papel ou em palavras, as cidades?” (VIDAL, 2009: 11).

A consideração dessa dimensão simbólica, não apenas para o caso de Brasília ou do Brasil, mas do Continente todo e também a Europa pode abrir espaço ainda para o entendimento de mobilizações tradicionalmente compreendidas como críticas, como as vanguardas, em suas ligações mais ou menos explícitas com projetos políticos direcionados à modernização, afastados da crítica às instituições. No lugar dos posicionamentos de vanguarda clássicos, de negatividade e questionamento, abre-se possibilidades de investigação a respeito de vanguardas que propuseram a construção de uma nova ordem, de uma tradição ou “linguagem comum” (pensando o campo da arquitetura e mesmo do urbanismo no continente americano).3

Ao mesmo tempo, o debate em torno de aspectos arquitetônicos e urbanísticos na Europa naquele momento não estava, todavia, unicamente centrado nas proposições e orientações teóricas de Le Corbusier, como se fossem os únicos encaminhamentos possíveis ou desejáveis. Entre 1918 e 1934, a arquitetura vigente na Europa experimentava uma dupla preocupação ao propor um novo modelo de habitação social e ao questionar a estrutura urbana herdada do passado. O tema da habitação social provocou o debate sobre os programas de necessidades (definindo-se o conceito de existensminimum), assim como, desde a intenção de diminuir custos, abandonar os sistemas construtivos tradicionais e assumindo os critérios tayloristas para propor primeiro a estandardização e logo depois a industrialização da habitação.

Estabelecer um novo modelo urbano pressupôs refletir sobre as características do bloco edificado, analisando como sua agregação configurava a cidade moderna, o que levou a teorizar tanto sobre os espaços livres, políticas de transportes, novos equipamentos, critérios de intervenção nas áreas históricas das cidades, características dos planos municipais e planos regionais. O singular dos debates ocorridos no período entre 1918 e 1934 é que eles conseguiram persuadir os distintos governos (Alemanha de Weimar, Holanda, Áustria, França, URSS, Inglaterra, Itália e Espanha) sobre a necessidade de assumir aquelas questões como questões de Estado: uma pesquisa sobre as políticas habitacionais desses países e sobre os planos urbanísticos verificará não somente como as bases dos mesmos respondiam àquele debate, mas também como os técnicos que elaboraram os projetos o fizeram a partir de premissas formuladas por uma mais que vigente vanguarda arquitetônica.

É possível notar hoje certo consenso entre as opiniões de historiadores da arquitetura e urbanismo nesse sentido: de que os temas identificados não foram monolíticos, portanto, uma opção desinformada pretender generalizar as preocupações apresentadas pelos profissionais como se fossem todas concernentes ao “movimento moderno”. Não houve um racionalismo, mas vários, de sentido e características bem distintas, e os partidários dessas diferentes linhas de atuação enfrentaram-se no campo das ideias, o que resulta errôneo às pesquisas identificar as propostas defendidas por Le Corbusier nos Congresss Internacionais de Arquitetura Moderna, os CIAMs, com aquelas desenvolvidas em Berlin por Bruno Taut ou Martin Wagner, ou em Frankfurt por Ernest May (SAMBRICIO, 2012: 25).

São conhecidas as críticas à ortodoxia de Le Corbusier, formuladas tanto pelos que reclamaram uma Nova Objetividade como por críticos como Karel Teige, enfrentando os famosos “cinco pontos”, que entendiam como reflexo formal de um novo academicismo. Certo é que a crise econômica de 1929 transformou o panorama europeu: se até aquele momento as políticas de habitação haviam sido competência das municipalidades, sindicatos e empresas, as escalas de intervenção mudaram sensivelmente, a partir dessa crise e desde o momento em que se assumiu a política keynesiana baseada em grandes projetos de infraestrutura capazes de reativar a economia (planos municipais ou regionais, políticas de abastecimento de água, planos rodoviários ou de novas redes ferroviárias, etc.).

Isso porque, se em 1929 Ernst May organizou para o II CIAM a exposição sobre a chamada habitação mínima, em 1933, no IV CIAM, a escala é discutida em outros parâmetros. Ao mesmo tempo, se compararam os planos de crescimento urbano, proclamando os conceitos de “habitação, trabalho, lazer e transportes” como pautas, cujo resultado dos debates será a publicação, em 1942, da Carta de Atenas, na qual, depois de reivindicar o conceito funcional da arquitetura moderna e do urbanismo, manifestava-se que os problemas que enfrentariam as cidades deveriam ser solucionados mediante a segregação funcional estrita e a distribuição da população em blocos altos de apartamentos separados por amplos espaços.

A reconstrução, depois da guerra de 1939-1945, acabou por modificar a situação anterior: se os debates entre os profissionais se mantiveram, depois da guerra cada país assumiu uma política própria, descartando ou ignorando as proposições dos quem apenas poucos anos antes foram “oráculos”. De algum modo se encerrava um ciclo. Contudo, ao mesmo tempo em que a continuidade do que foi discutido nos anos de 1930 sofreria uma interrupção na Europa, ela continuaria a apresentar desdobramentos na América Latina.

Ao se abordar essas transformações sob pontos de vista da Europa, é possível notar como a natureza egocêntrica da cultura arquitetônica europeia ignorou por muito tempo o que ocorria na América Latina, pois apresentava-se convencida de sua superioridade cultural. No entanto, não apenas eram poucas as escolas de arquitetura abertas nos países da América Latina, ainda que as elites nacionais latino-americanas solicitassem insistentemente “soluções europeias” e regimes tidos como populistas, muitas vezes presididos por militares ou lideranças políticas desenvolvessem políticas abertamente repressoras.

Para uma Europa que apenas saía de totalitarismos, mostrava-se inverossímil crer que esses governos poderiam implementar tanto políticas habitacionais como planos urbanísticos para modificar suas cidades coloniais. Como consequência, inclusive da parte dos setores especializados, optou-se por ignorar as políticas, cobrando ao máximo a qualidade de certas obras arquitetônicas. Em certos casos, pode-se dizer que não interessavam as políticas fiscais nem a criação dos sistemas de financiamento que possibilitaram o acesso à habitação: interessava apenas a obra de determinados arquitetos. De certo modo, o Brasil foi identificado com a obra de Lucio Costa e Oscar Niemeyer, a Venezuela com a de Villanueva, o México com as edificações de Pani, Cuba com o papel desempenhado por Martinez Inclán e a Argentina com o trabalho de Bonet Castellana.

Uma primeira perspectiva analítica entendeu serem os governos populistas nacionais responsáveis por desenvolver políticas de habitação e políticas urbanas, ainda que, no caso brasileiro, por exemplo, as ações urbanísticas desenvolvidas no contexto municipal tivessem uma relação mais direta e institucionalizada com o Governo Federal a partir de 1964 / 1965, quando da criação do Banco Nacional de Habitação (BNH) e do Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (SERFHAU). No contexto latino-americano hispânico, com a intenção de oferecer satisfação aos seus seguidores, realizaram um trabalho singular, tanto fomentando a construção de habitações para a classe média então em formação, como assumindo e desenvolvendo as denominadas “unidades de vizinhança”, amplos bairros com serviços, equipamentos e infraestrutura que determinaram o crescimento urbano das cidades.

O desenvolvimento dessas políticas implicou na criação dos institutos de financiamento capazes de estabelecer políticas fiscais, como a criação de bancos que possibilitassem a concessão de empréstimos para a aquisição das habitações; o que em determinados casos viabilizou a criação de institutos de ordenação do solo urbano, gabinetes de projetos e propostas de intervenção urbana. Dito de outra forma, as proposições efetivamente implementadas entre 1930 e 1960 não devem ser entendidas unicamente como resultado dos trabalhos dos bons arquitetos, mas enquadrando-as no que foram políticas de Estado.

Por fim, e como indagação para outras investigações e publicações, apresentamos a seguinte problematização: apesar da existência de políticas desenvolvidas na Argentina, Chile, Brasil, Cuba, Venezuela, Colômbia, México e em outros países do continente americano, é possível afirmar que não houve homogeneidade entre elas. Isso porque foram muitas vezes mutuamente estranhos e distintos nesses países os modos de conduzir a construção de habitação para classe média – a preocupação com as unidades habitacionais ou a definição dos processos de verticalização – e a transformação da cidade ocorreu de maneira similar. A percepção dessas aproximações e diferenças aponta de modo claro a vigente necessidade de promover pesquisas e encontros entre pesquisadores para que se possam analisar características específicas comparativamente, ou seja, que os aspectos circunscritos a cada nacionalidade sejam colocados em debate conjuntamente. O Dossiê “Cidade e Habitação na América Latina” pretende, nesse sentido, contribuir com a divulgação de estudos sobre os problemas urbanos na América Latina que de alguma forma permitam construir e percorrer caminhos cujas “portas de entrada”, muitas delas, estão ainda por abrir. Tais caminhos não podem prescindir de uma articulação interinstitucional “interna” à América Latina, inclusive como um projeto político e histórico, o que exige olharmo-nos diretamente, sem passar pelo Sena ou pela Tâmisa. De outra forma, continuaremos construindo a história urbana da América Latina a partir da Europa? E mais, como pensar a história urbana da América Latina como uma história urbana ibero-americana, ainda que isso possa significar uma (possível) contradição, já que Portugal e Espanha estão também na Europa?

O Dossiê e sua organização

A organização da edição n. 8 não mudou em relação ao projeto editorial da Revista URBANA. Apesar de manter-se organizado basicamente em duas partes principais, dossiê e artigos, pelo projeto editorial da revista a sessão artigos teria temática independente, desvinculada da sessão dossiê. Especialmente no caso da edição n. 8, Cidade e Habitação na América Latina, todos os textos seguirão a mesma temática, pois foram elaborados inicialmente para o III Congresso Internacional de História Urbana, realizado em Brasília no mês de novembro de 2013.

A única diferença entre ambas as sessões está na inclusão dos artigos resultantes das conferências realizadas por pesquisadores brasileiros convidados na sessão dossiê, reservando-se à sessão artigos os trabalhos dos pesquisadores – brasileiros e estrangeiros – aprovados para apresentação no Congresso.

Os Editores da URBANA agradecem aos autores, que desde o III Congresso Internacional de História Urbana, e agora com a publicação do Dossiê Cidade e Habitação na América Latina, contribuíram com o debate sobre a história urbana da América Latina. Agradecemos também aos pesquisadores que participaram da produção do livro “Ciudad y Vivienda em America Latina, 1930-1960”, pois está ai a origem desse importante tripé “livro-Congresso-Revista”, inclusive pela participação de todas as representações nacionais no Congresso. Desejamos uma boa leitura.

Notas

1 O ano de 1889 aqui adotado é apenas para caracterizar o corte temporal pela configuração institucional do Estado Republicano e Federativo no Brasil. Não significa desconsiderar as complexidades e importância de períodos anteriores da história do desenvolvimento nacional, por exemplo, desde a consolidação do Brasil Imperial ao longo do século XIX, tanto que algumas referências a esse período serão realizadas no decorrer do texto.

2 É necessário considerar o papel da implementação da infraestrutura territorial (ferrovias, Porto de Santos, armazéns, instituições, a própria modernização das cidades, etc.) no Estado de São Paulo para o desenvolvimento da economia cafeeira, como importante delineadora da concentração espacial da produção industrial no Brasil. Embora não seja o único elemento, podemos dizer que a economia cafeeira paulista foi fundamental na criação dos “fatores territoriais de produção” da industrialização substancialmente implementada a partir de 1930, concentrando-a na região Sudeste, especialmente no eixo Rio de Janeiro-São Paulo

Referências

COUTINHO, Luciano. O desafio urbano-regional na construção de um projeto de nação. In: GONÇALVES, Maria Flora; BRANDÃO, Carlos A; GALVÃO, Antônio C. (org.). Regiões e Cidades, Cidades e Regiões: O desafio urbano-regional. São Paulo- SP: EdUNESP / ANPUR, 2003. pp: 37-57.

GORELIK, Adrian. Das vanguardas a Brasília: cultura urbana e arquitetura na América Latina. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG, 2005.

IANNI, Octávio. Estado e Planejamento Econômico no Brasil. São Paulo: Civilização Brasileira, 1971.

LAFER, Celso. O Planeamento no Brasil: observações sobre o Plano de Metas (1956-1961). In: MINDLIN, Betty (org.). Planejamento no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2003 REZENDE, Fernando. Planejamento no Brasil: auge, declínio e caminhos. In: CARDOSO JR., José Celso (org.). A reinvenção do Planejamento Governamental no Brasil. Brasília: Ipea, 2011

SAMBRICIO, Carlos (org.). Ciudad y Vivienda en América Latina: 1930-1960. Madrid: Lampreave, 2012

VIDAL, Laurent. De Nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX-XX). Trad. Florence Marie Dravet. Brasília: UnB, 2009.

Josianne Cerasoli

Rodrigo de Faria

Carlos Sambricio


FARIA, Rodrigo de; CERASOLI, Josianne; SAMBRICIO, Carlos. Editorial. Urbana. Campinas, v.6, n.1, jan. / jun., 2014. Acessar publicação original [DR]

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