A revista Mundos do Trabalho é fruto do empenho de pesquisadoras e pesquisadores do GT Mundos do Trabalho, da Associação Nacional de História (ANPUH), em construir um espaço de divulgação e diálogo em torno desse campo de estudos. O projeto editorial colocado em prática desde o segundo número, lançado em 2009, previa a publicação semestral de dossiês, artigos livres e resenhas, afora entrevistas e comentários críticos sobre fontes e acervos documentais. Assim, o desaio assumido pelas equipes que conduziram os trabalhos editoriais ao longo de quase uma década foi o de contemplar a diversidade de problemas de investigação que atualmente pautam a produção acadêmica nessa área. A revista conseguiu reunir contribuições de autores nacionais e estrangeiros sobre relações de gênero; mundo urbano; experiências indígenas; mutualismo operário; embates entre trabalhadores e o poder municipal; processos e condições de trabalho; medicina e a saúde dos trabalhadores na América Latina; conlitos em torno do trabalho e da terra; trabalhadores em mineração; trabalhadores e a ditadura militar; biograia; perspectivas em torno da obra de E. P. Thompson; história social do trabalho na Amazônia; e trabalhadores livres no Atlântico oitocentista.
Esse leque temático por si só evidencia os caminhos percorridos pela história do trabalho no Brasil, a vitalidade do campo de pesquisa e a posição alcançada pela revista entre os periódicos acadêmicos nacionais, tendo consolidado o papel de principal fórum de discussão sobre o assunto. O número 18, inalmente apresentado a leitoras e leitores, vem alargar esse quadro. Sua feitura foi marcada por um longo processo de discussão, enfrentamento e superação de obstáculos em prol da deinição do mote de todo o volume, ora composto por seis artigos e quatro resenhas de livros publicados em 2017.
O dossiê deste número trata das relações entre Cidadania, política e história do trabalho. A proposta consiste em aproximar os mundos da política e o do trabalho e observar criticamente as maneiras como foram (re)conigurados em diferentes espaços e temporalidades. O que uniica os casos analisados a seguir é a tentativa de repensar a dinâmica dos direitos e questionar os limites da cidadania e o alcance das lutas sociais travadas nesse âmbito.1 Trata-se, em linhas gerais, de considerar os termos que informam as múltiplas formas de deinir, praticar e perceber a cidadania e a participação política. Tal esforço equivale a compreender a palavra e o fenômeno da cidadania como um processo histórico de luta por direitos em permanente construção, portanto, sujeito a reveses, contradições, disputas, ganhos simbólicos e materiais.
O itinerário do dossiê tem início com a discussão de Barbara Weinstein sobre História Global do Trabalho. Este terreno vem ganhando adeptos ao redor do mundo e tem suscitado relexões teórico-metodológicas acerca de seus limites e possibilidades como abordagem historiográica e, consequentemente, como resposta à destruição dos direitos e à precarização do trabalho entre mulheres e homens em escala global. Weinstein reporta-se à prestigiada International Labor and Working-Class History, da qual participou como editora em dois momentos diferentes, para destacar a importância desse periódico na construção de uma “história do trabalho realmente globalizada”. As controvérsias que ocuparam as páginas da revista e as mudanças operadas em seu comitê editorial são sintomáticas do deslocamento de enfoques e perspectivas em torno do caráter global da história do trabalho. Ele ocorreu na passagem de um viés nitidamente eurocêntrico para uma noção preocupada em transpor fronteiras nacionais, conectar mundos aparentemente distantes, redeinir a categoria de trabalhador(a), bem como os limites do trabalho livre e não livre e seu papel na própria história do capitalismo. As formulações do historiador holandês Marcel van der Linden e a incorporação de especialistas em África, Ásia e América Latina no comitê editorial foram responsáveis pela reorientação da ILWCH de meados da década de 1990 ao início dos anos 2000. Apesar de considerar positivamente a prática da História Global do Trabalho, a autora ressalta que ainda é preciso avançar muito, especialmente na direção de uma “cultura política de direitos trabalhistas globais” para descobrir as faces da exploração do trabalho, a exemplo da gente boliviana trabalhando no Brasil em situações análogas à da escravidão.
Em seguida, Rossana Barragàn convida-nos a conhecer um pouco da história social e política da Bolívia na primeira metade do século XX, a partir da experiência dos k’ajchas. O dramático episódio envolvendo Paraguai e Bolívia na disputa pelo controle do território do Chaco (1932-1935) levou o país andino a uma profunda crise política e econômica, que exigiu de suas autoridades respostas capazes de criar saídas para a crise. Sob a liderança dos “socialistas militares”, o governo boliviano propôs na Convención de 1938 medidas voltadas à distribuição de terras, à promoção da cidadania de mulheres e indígenas e à administração dos recursos naturais. Desse período em diante, ressalta a historiadora, ganha força a ideia da intervenção estatal na economia e na questão social, a reboque da qual surgem projetos de nação e de desenvolvimento industrial que impulsionaram a “‘socialización de las minas’” e o “proyecto de su nacionalización”. Barragàn demonstra ainda como os k’ajchas, trabalhadores autônomos das minas de Potosí, ocuparam lugar de destaque na elaboração de tais projetos, ao mesmo tempo em que o próprio lugar desses sujeitos no conjunto da nação era redeinido em termos políticos.
As duas últimas colaborações do dossiê tratam de momentos distintos da história brasileira. O primeiro artigo, escrito por Cláudia M. R. Viscardi, lida com os direitos políticos e os dilemas da representação entre a instauração da República e o advento do Estado Novo. Sua análise ancora-se em dicionários e anais parlamentares e enfoca o período em que estiveram em vigência as constituições de 1891 e de 1934. Assim, a historiadora explora questões relacionadas ao direito de voto, à representação política, ao processo eleitoral e à discussão sobre representação corporativa, buscando contrapor-se à ideia – inspirada em T. S. Marshall – que pressupõe a expansão paulatina e progressiva dos direitos. Viscardi procura observar esse processo a contrapelo, isto é, “como resultado de avanços e recuos, vitórias e derrotas dos diferentes grupos de interesse”, portanto, como campo de disputas em permanente construção. O argumento da autora aponta para uma tendência aberta à ampliação da cidadania política na conjuntura demarcada pelas cartas constitucionais, especialmente “para aqueles que dela estavam excluídos, como as mulheres, os trabalhadores e os indivíduos sem renda declarada”.
Edilson Nunes dos Santos Jr. fecha o percurso com artigo sobre o período imperial. Seu objetivo consiste em problematizar as relações entre cidadania e trabalho mediante a observação dos modos de reivindicar direitos. Esse tema vem ganhando atenção de estudiosos interessados no mundo do trabalho no século XIX, conforme se pode notar nas contribuições reunidas em Trabalhadores e poder municipal, dossiê organizado por Cristiana Schettini e Paulo Terra para esta revista (v. 5, n. 9, 2013). Entre outras fontes documentais, Santos Jr. utiliza registros produzidos por instâncias da municipalidade da Corte, guardados no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, material que o inspira a estabelecer um duplo movimento de análise que molda o decurso de sua narrativa. Mais exatamente, o autor recupera os conlitos de interesse entre a Câmara e o Juízo de Paz no exercício da regulamentação do trabalho na cidade do Rio de Janeiro, particularmente na praia da Saúde em 1841. O que está em questão é a tentativa de entender como os dispositivos legais e as tensões entre esses poderes foram apropriados e acionados por moradores da praia e por barqueiros e remadores que nela trabalhavam e buscavam defendê-la como seu espaço de trabalho.
O número 18 da revista conta, ainda, com dois artigos na seção livre. A despeito da particularidade de seus objetos, ambos tratam de dimensões do movimento operário associadas à luta social, à militância e à atividade política.
Luiz Felipe Mundim recupera e apresenta ao público brasileiro a atuação de Gustave Cauvin (1886-1951) e seu cinema militante na França no início do século XX. Propaganda, imagem e discurso: esses elementos constituem o cerne do texto e também fornecem evidências empíricas para o autor embasar seus argumentos. Ao compreendê-los de forma inter-relacionada, Mundim procura reconstituir aspectos da prática e do universo ideológico do movimento operário francês no imediato pré-guerra, na tentativa de demonstrar a pertinência de temas como o alcoolismo na construção de uma cultura moral que termina por estabelecer traços de uma cultura militante.
Por im, Bruno Tavares Araújo analisa a trajetória de importante militante do movimento operário brasileiro na Primeira República. Nascido em Niterói, Antonio Bernardo Canellas (1898-1936) era proissional do ramo tipográico, conhecia ideias anarquistas e sindicalistas e foi integrante – por pouco tempo – do Partido Comunista do Brasil (PCB). A imprensa operária dos anos 1920 foi seu principal meio de atuação e interlocução política com iguras do porte de Astrojildo Pereira e Edgar Leuenroth. Araújo demonstra a circulação ativa de Canellas pela região Nordeste, particularmente em Alagoas e Pernambuco, mas também destaca suas passagens pelo Sul e Sudeste do país e pela Europa, onde pôde tomar contato direto com o movimento operário e sindical.
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Desde o fatídico dia 31 de agosto de 2016, quando a presidenta Dilma Roussef foi deposta por um golpe de estado, uma escalada de ataques contra os direitos sociais e previdenciários dos trabalhadores impôs retrocessos sem precedentes ao Brasil. A terceirização, isto é, a precarização do trabalho em larga escala foi considerada legal pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a mesma corte que legitimou a destituição da mandatária eleita pelo voto popular sem que ela tivesse cometido crime de responsabilidade, conforme pré-requisito ixado na Constituição Federal. Em ambos os casos, o STF falhou em guardar, proteger a Constituição. No primeiro, abriu o caminho para a expansão de relações de trabalho degradantes e indignas, portanto, permitindo violações de direitos humanos. No segundo, deu ares de legalidade à violação dos direitos políticos dos cidadãos brasileiros, que se viram na condição de eleitores que escolheram um governo e foram submetidos a outro, completamente diverso.
Nas eleições presidenciais de 2018, um dos candidatos tem se destacado pelo discurso autoritário, racista e sexista e por fazer da promessa de extinção de direitos o seu programa de governo. A gravidade da situação é tamanha que a possibilidade de ascensão do candidato já provocou a autocensura de um dos colaboradores deste número, que decidiu retirar seu artigo do dossiê de modo a evitar possíveis represálias. Nós compreendemos e acatamos prontamente a decisão em um gesto de solidariedade dirigido ao colaborador. Reorganizamos o conjunto do número, adequando a paginação e os demais artigos. O que segue mantém o sentido original da proposta. Por im, em nome da equipe editorial da Mundos do Trabalho, externamos nossa preocupação em face de tal cenário e nos unimos aos milhões de brasileiros na defesa intransigente da democracia e da plenitude dos direitos sociais, políticos e civis dos trabalhadores, sem deixar de rechaçar veementemente toda e qualquer forma de ataque à liberdade de exercício do pensamento crítico.
Nota
1 Para uma avaliação historiográica, cf. FORTES, Alexandre; NEGRO, Antonio Luigi. “Historiograia, trabalho e cidadania no Brasil”. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano. O tempo do nacional-estatismo. Livro 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003; LARA, Silvia Hunold. “Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil”. Projeto História, São Paulo (16), fev. 1998; PAOLI, Maria Celia. “Trabalhadores e cidadania: a experiência do mundo público na história do Brasil moderno”. Estudos Avançados, vol. 3, n. 7, São Paulo, set./dez. 1989.
Organizadores
Aldrin Castellucci – Professor Titular de História do Brasil da Universidade do Estado da Bahia (UNEB – Campus II)
David P. Lacerda – Pós-doutorando no Departamento de História, UNICAMP. Pesquisador do CECULT. Bolsista da FAPESP.
Nauber Gavski da Silva – Pós-doutorando no Departamento de História, UNICAMP. Pesquisador do CECULT. Bolsista da FAPESP.
Referências desta apresentação
CASTELLUCCI, Aldrin; ACERDA, David P.; SILVA, Nauber Gavski da. Apresentação. Mundos do Trabalho. Florianópolis, v. 9, n. 18, p. 5-8, jul./dez. 2017. Acessar publicação original [DR]
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