Cidadania/ historiografia e Res publica: contextos do pensamento político | John Greville Agard Pocock

O renomado historiador das ideias John G. A. Pocock afirma que, além de buscar as linguagens existentes em contextos históricos muito bem determinados, estabelecendo uma análise sincrônica dos discursos políticos, a sua própria inteligência histórica “tende para o diacrônico, o estudo de o que acontece quando as linguagens mudam ou os textos migram de uma situação histórica para outra.” (POCOCK, 2013, p. 276) E é dessa maneira que ele propõe os seus questionamentos e afirmações no interior do grupo já há muito conhecido como Linguistic Contextualism da “Escola do Pensamento Histórico e Político” de Cambridge. Ao se posicionar como um pesquisador mais interessado em performances discursivas, nas interações entre langue e parole (entendidas como texto e ação, respectivamente), Pocock, por meio de sua perspectiva teórica antiparadigmática (é equivocado pensar que ele seja um tributário da perspectiva de paradigma formulada por Thomas Kuhn, como o faz grande parte de seus críticos) e multidimensional, acabou por relegar ao anacronismo bibliotecas inteiras.

Tais questões podem ser fartamente visualizadas no conjunto de textos que compõem a sua recente publicação Cidadania, historiografia e Res publica. Trata-se de um conjunto de nove ensaios, dentre os quais oito são temáticos, todos inéditos em língua portuguesa. No capítulo que apresenta uma abordagem de cunho teórico intitulado “Fundamentos e momentos (Sobre a historiografia contemporânea do pensamento político)”, Pocock lança mão de seu filtro revisor para traçar um paralelo entre as suas próprias ideias históricas e políticas das últimas décadas com as de Quentin Skinner. Ele se indaga acerca dos caminhos tomados por ambos, direcionando o foco para os avanços e as possíveis fragilidades das duas abordagens historiográficas. Por meio de refinada lide historiográfica, o autor elenca as obras mais exponenciais de Skinner (The Foundations of Modern Political Thought; Reason and Rethoric in the Philosophy of Hobbes; Visions of Politics) e as suas próprias (The Machiavellian Moment; Virtue, Commerce and History; Barbarism and Religion) para tecer uma crítica velada aos rumos que o seu colega tomou devido às suas indagações históricas.

O subtítulo do livro em questão é “Contextos do pensamento político” e, de fato, ele está em fina sintonia com o conteúdo dos artigos. Os temas ali expostos demonstram os rumos das análises de John Pocock há um bom tempo: humanismo cívico, tradição republicana, ideal de cidadania. Ao propor a sua versão da história do republicanismo (destacam-se os capítulos “A teoria clássica da deferência”, “A tradição republicana holandesa” e, por fim, “A Res publica e a diversidade de repúblicas: uma história das ideias”), ele não se limita a detectar os elementos componentes daquela ideia nos discursos políticos dos contextos florentino, inglês ou americano. Pocock vai além, isso porque a sua intenção é a de visualizar como todos esses mesmos elementos estavam inseridos naqueles momentos históricos, como participavam, contrapondo-se ou corroborando com as demais visadas ideológicas e retóricas políticas. Daí o fato de Pocock atentar para a complexidade em se definir um Antigo Regime. Baseado em leituras detalhadas das obras de Montesquieu, Hume, Gibbon, dentre outras fontes, ele faz a opção pela definição anciens régimes, realidades plurais e diversas, o que condiz mais com o seu olhar historiográfico.

Em dois momentos (capítulos “O pré-capitalismo – a percepção augustana” e “As críticas radicais à ordem whig na época entre revoluções”), o historiador descreve como o fundamento da personalidade social, que era constituído pela propriedade, a fundiária e a do dinheiro, posteriormente passou a se caracterizar pela junção de ambas, dos títulos de papel do crédito público. Mas nenhum desses dois discursos, aquele que priorizava os bens de raiz e o que sinalizava para a sociedade investidora, sobrepuseram-se já que, segundo informa Pocock, ambos passaram a conviver, mesmo que numa crescente tensão. Referindo-se a Defoe, a Mandeville e a Montesquieu, ele estabelece o momento no qual o sentimento de e pela honra passou a ser entendida mais como uma intersubjetividade de desconfiança presente na sociedade rentista do que tomada sob o seu antigo ethos feudal. Isso foi de extrema importância para o pensamento político daquele período, já que só o indivíduo “cuja personalidade se fundava em bens de raiz poderia perceber-se a si próprio como verdadeiro e virtuoso; a criatura do mecanismo de crédito não pode deixar de ser uma criatura de paixões, fantasia e outras faltas de orientação.” (POCOCK, 2013, p. 85) O que adquiriu forma mais vultosa, a partir de então, foi a questão da corrupção.

É inegável que nos demais capítulos que compõem Cidadania, historiografia e Res publica a maior parte do arsenal teórico pocockiano esteja concentrada em narrar uma história das ideias acerca do ideal de cidadania, conceito colado ao de republicanismo. E, ao assim proceder, Pocock traça esse ideal desde a época clássica até os dias atuais, mas de maneira contextualizada, sem a promoção de deslocamentos abstratos no tempo histórico. Nos capítulos restantes (“O humanismo cívico e o seu papel no pensamento anglo-americano”, “Entre Maquiavel e Hume: Gibbon como humanista cívico e historiador filosófico” e “O ideal de cidadania, da Época Clássica até hoje”), o autor chama muito a atenção para as migrações historiográficas sofridas pelas ideias citadas acima, sem que uma questão deixe de existir: a relação, por um lado, entre cidadania, refinamento e progresso, e do outro, a corrupção, que sempre foi entendida como inerente a tais fatos, sendo este um debate constantemente presente nos autores do pensamento político moderno. Isso porque para tais personagens, cujas ideias estavam ocupadas com questões cívicas e políticas, um pessimismo sempre esteve presente quando focalizavam os momentos históricos em que as virtudes antigas herdadas do republicanismo clássico passavam a ser deslocadas ganhando destaque, assim, os ideais de uma sociedade burocrático-rentista.

Analisando as ideias de Maquiavel a Hume, passando por Gibbon e outros, Pocock expõe a ideia do paradoxo do progresso:

A honra precede a virtude, porque precede a propriedade; a virtude só é possível quando percebemos o que nos liga à sociedade; a propriedade dá a essa ligação uma forma tangível, e, tal como progresso comercial multiplica as formas que pode assumir, as paixões sociais são, também elas, multiplicadas e, ao mesmo tempo, refinadas. A virtude, porém, é perseguida pelo terrível paradoxo de que a propriedade dá ao governo um poder sobre nós e, simultaneamente, corrompe, ao mesmo tempo em que confere a independência de espírito sem a qual não somos capazes de resistir ao governo. (POCOCK, 2013, p.135)

Para além dessa conturbada questão, em sua reconstrução do ideal de cidadania, Pocock explica que para o pensamento ocidental a história de tal conceito se faz mediante o interminável embate entre as formulação aristotélicas, ou seja, o homem político, que interage com os outros semelhantes, e as formulações do romano Gaio, que afirmavam o homem como cidadão quando se encontrasse na condição de atuar através das coisas. Resumidamente, é o diálogo interminável entre o ideal e o real, herança antiga e que sobreviveu até mesmo para os modernos, ainda perdurando. As migrações linguísticas e discursivas, o grande objeto que constitui as pesquisas de Pocock, acabaram por possibilitar um ideal greco-romano de cidadania no século XVIII e nos seguintes. E os rumos tomados pela busca da personalidade do cidadão, num universo de pessoas, ações e coisas, não foram os mais felizes, demonstra o autor, haja vista as séries de holocaustos puritanistas ocorridas nas últimas centenas de anos. Em Cidadania, historiografia e Res publica, John Pocock oferece ao leitor um conjunto variado de temas, não obstante todos estarem interligados. A leitura de sua obra é compensatória porque, mais que um método estanque e encapsulador de conceitos, ela adquire forma como um ponto de vista sobre as ideias e discursos políticos. Ponto esse constantemente aberto a continuidades, seja para que se proceda a revisões, seja para reafirmá-lo.


Resenhista

Thiago Rodrigo Napp – Mestre em História pela Universidade Estadual de Maringá.


Referências desta Resenha

POCOCK, John Greville Agard. Cidadania, historiografia e Res publica: contextos do pensamento político. Coimbra: Almedina, 2013. Resenha de: NAPP, Thiago Rodrigo. Cultura Histórica & patrimônio, v.3, n.1, p.158-161, 2015. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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