Cicatriz do universal | Sander Gilman
Freud, em Moisés e o monoteísmo, comparou o ego a um tecido cicatrizado. Essa metáfora médica, proposta em um momento já relativamente sólido da psicanálise como saber independente da medicina, não deixou de ser notada por Sander Gilman em sua ‘leitura judaica’ da obra do fundador da psicanálise.
Para Gilman, a cicatriz evoca muito fortemente a judaicidade de Freud — vivida por este de modo intenso e real, tanto corporal quanto simbolicamente, ao longo dos 16 anos em que o câncer o afligiu. Pois elas — cicatriz e judaicidade — estão associadas, no saber médico de então, à sífilis e ao câncer, remetendo-nos a uma longa série de pesquisas e debates sobre a propensão ou imunidade dos judeus a essas doenças, o que, por sua vez, remete às várias abordagens “racialistas” da especificidade judaica, e especialmente, porém num plano mais geral, às categorias subjacentes, como loucura, doença, alteridade. Cicatriz, ainda, remete à marca judaica por excelência, a marca física da (ou representada pela) circuncisão: marca ambígua, tão carnal quanto simbólica, que não cessa de demandar (e receber) interpretação.
Mas a idéia de cicatriz, nesta nossa leitura da leitura de Freud por Gilman, é uma imagem ainda mais significante.
O câncer que acaba por matar Freud é comparado por Gilman a outra “doença sistêmica”, de que Freud, em seu último livro (Moisés e o monoteísmo) tentou dar conta: o anti-semitismo. Sem tentar resumir a interessante construção da última parte do estudo de Gilman — um atento mapeamento histórico dos principais temas e termos envolvidos, pontuado por estratégicos lances interpretativos (pseudo?, ironicamente?) freudianos —, sublinhemos apenas o vínculo profundo, e não meramente analógico, entre as duas doenças; vínculo que tem o homem judeu Freud como charneira. Segundo Gilman, Freud entendia que morria de um câncer ‘não judaico’, isto é, câncer de um intelectual de classe média ascendente — simbolizada pelo hábito inveterado do charuto, já então associado à formação de tumores, mas, por outro lado, associado por Freud, no nível pessoal, à memória (esta, judaica) paterna. Ao mesmo tempo, no entanto (e aqui vai o peso do argumento de Gilman), construía ‘neutramente’, ‘cientificamente’, sem deixar marca (discursiva) de seu envolvimento direto, uma hipótese da “posição problemática do judeu enquanto causa … do anti-semitismo”. Ao morrer de uma doença ‘neutra’ (mas não assim na carga imaginária da época), neutralizava-se também perante a ‘doença’ (da diferença menor, da ferida narcísica) que via/era vista em si mesmo, como judeu.
Assim, tem-se um Freud que insiste em se colocar, por meio de sua posição e seu discurso científico, ‘fora’ e ‘acima’ das questões de sua época que lhe diziam respeito como judeu (e médico/cientista judeu), mas que ele não deixava de elaborar, e mesmo de experimentar muito concreta e pessoalmente. Por isso é que “fora” e “acima” não implicam negação ou fuga, mas estratégia de elaboração. Segundo o autor: “Sua arma contra o anti-semitismo era o discurso da ciência. … A fim de conseguir isso, ele teve de se afastar de qualquer acusação de que seria de fato ‘apenas’ um judeu, agindo ‘apenas’ por interesse próprio. A voz neutra do cientista de sexo masculino que Freud tão cuidadosamente construiu em sua tentativa de dividir a humanidade em apenas duas classes — homem e mulher — veio em seu socorro em sua confrontação final com as forças das trevas” (lembre-se que Moisés e o monoteísmo foi escrito no exílio inglês de Freud, já durante o domínio do nazismo e do austro-fascismo).
Ora, essa charneira — o cientista judeu (homem) Freud — não é uma persona nem um efeito vazio: as ‘questões pessoais’ e aquelas ‘objetivas’ com que ele se deparou em sua trajetória não estão em relação de (de)cifragem, mas de tradução e transformação mútuas. As ‘questões da época’ estão em Freud, constituem-no em sua identidade judaica e em sua carreira médica e psicanalítica: o livro de Gilman, afinal, é sobretudo uma minuciosa e mais do que competente contextualização que explora raízes, usos e articulações de noções e categorias com que direta ou indiretamente dialogava Freud, e das quais, em senso comum ou por abordagem científica, se valia. Gilman retraça a teia de debates e conceitualizações em que se ligam mutuamente tópicos como, entre tantos, a idéia/conceito de raça nas discussões sobre características etnopsicológicas e os significados biológico e cultural da endogamia, e as relações reais e imaginadas entre sexualidade, loucura, hereditariedade e os ‘traumas modernos’.
As ‘questões da época’, efetivamente, tomam corpo em Freud. A obra deste, podemos então dizer, aparece como cicatriz do enfrentamento do universal com o particular — no duplo sentido da frase. Gilman afirma: “O que eles [Freud e Fliess, em seu empreendimento associado] estavam fazendo era de fato ‘ciência’ moderna, ocidental, ou uma cabala entre dois judeus de sexo masculino? Esses dois homens realmente pertenciam ao mundo da ciência ou estavam vendo o mundo através de suas próprias lentes judaicas?”
A posição de Freud, sua particularidade e diferenciação não é obstáculo nem garantia da universalização. A generalização conceituai (da histeria, da sexualidade, e mesmo de certas concepções “racialistas”) não precisa ser encarada como resposta ou compensação a algo recôndito e reprimido: basta-nos ver sua teoria como preenchendo a ferida aberta (no Outro) de sua identidade. Voltando a Gilman: “A biologia européia serviu … para dar forma a atitudes aceitas em relação a todos os grupos marginais, em especial os judeus. … Os médicos judeus, ao aceitarem a retórica da medicina do século XIX, necessitavam limitar a aplicabilidade desse modelo a eles próprios.” E Freud, para Gilman, não foi estranho a nenhuma das duas vias que se abriam como resposta a essa necessidade. Em suas elaborações pessoais, também Freud teria afastado o objeto desse saber desqualificador para uma subcategoria — os judeus do Leste, imigrantes, não modernos, não emancipados; em sua construção teórica, realizou o deslocamento da “carga emocionalmente suportada”, ‘universalizando’ a histeria feminina. (Gilman, adiante, lembra Octave Mannoni, que escreveu: “Freud chegara a Salpêtrière como neurologista; deixou-o como ‘histérico’ — tendo achado que era histérico o suficiente para se identificar com os pacientes de Charcot. Essa identificação está na origem da descoberta da psicanálise, já que tornou possível a ‘auto-análise’ de Freud com Fliess.”)
Para quem até aqui suportou esta apresentação de um aspecto pontual dilatado até quase se tornar um argumento, é tempo de esclarecer que a leitura que propomos se dá como que à revelia do autor e seus horizontes. De fato, não é o detalhado circuito da pesquisa em história da psicanálise, nem as interpretações a que ela serve de apoio, que preferimos destacar, embora seja certo que, de seu ângulo assumidamente restrito e ‘lateral’, Gilman efetivamente jogue luz sobre um veio ainda rico do pensamento/obra/empreendimento freudiano. Também não destacamos a contribuição à atual revitalização da discussão dos conceitos de raça, dada pelo exemplo da sua pregnância mesmo num saber marcado pelo afastamento da biologia em favor da cultura e do discurso. Também não sublinhamos o rendimento, para a linha de estudos de gênero, do esforço do autor em dar “atenção à … elaboração das imagens de masculinidade” em Freud. O subtexto masculino da ciência de que Freud se vê como herdeiro e continuador (e renovador), bem como a complexidade dos conteúdos e práticas judaicos “patriarcais”, são pontuados em suas manifestações e variantes, passando pela atenção aos estereótipos do judeu e da mulher na ciência e no senso comum leigo à época de Freud, como já se fez menção. Gilman, citando Lesley Hall, fala — e não fica aquém de sua intenção declarada — em “desconstruir o falo monolítico” a que alguma crítica feminista por vezes se faz opositora.
Interessa-nos, para além dos horizontes explícitos do estudo, apre(e)nder algo da tensão constante, que assume várias formas e se apresenta em vários níveis, entre o particular e o universal. A impossibilidade de se ater a este ou aquele, para quem quer que assuma, invoque ou tente empreender a representação da diferença. Nesse sentido, a (ou uma) identidade judaica de Freud menos explica do que ‘amarra’ as várias instâncias da diferença — racial, cultural, sexual — que ele viveu e pensou; diferença de que a psicanálise ainda não deixou de ser — potencialmente, ou como ‘reserva teórica’ — um instrumento (ético/estético) de compreensão, assimilação e, também, preservação.
Gilman mais de uma vez lembra como Freud temia que a psicanálise fosse vista como “ciência judaica” — e chega mesmo, num tour de force que capitaliza todo o seu trabalho de historicização e contextualização, a interpretar nessa direção a teoria de Freud sobre o discurso paranóico, tal como aplicado ao caso do juiz D. Schreber. Preocupado com a universalização do seu lugar teórico (i.e., de cientista e teorizador), Freud, segundo Gilman, teria deixado de perceber o quanto a estrutura do discurso paranóico estava informada pelo discurso anti-semita (por vezes, cientificamente referidos), presente “não apenas nos manicômios, mas nos recintos das legislaturas de Viena e Berlim”. Atento à possibilidade de “explicação psicanalítica das origens da religião”, ao “primitivo tal como revelado à luz da arqueologia e etnologia”, Freud teria deixado de ver o presente e o próximo em favor do passado e do distante.
Certo ou errado em sua interpretação — pouco importa, aqui — Gilman com isso faz deslizar a questão. Se a psicanálise, numa linha de fechamento/estereotipação/acusação que se estende e radicaliza até a ideologia nazista (que tem afinidades e algumas referências médicas e racialistas comuns com o raciocínio ‘degeneracionista’), “era vista como uma pseudodência judaica e como uma forma de histeria de massa, uma ‘epidemia psíquica entre médicos'” (grifo do resenhista) — visão a que Freud soube responder, do interior do saber erudito, com uma “dureza de judeu” maior do que a do “nobre teutão prussiano” —, agora podemos vê-la positivamente, e com rendimento analítico e político, como um discurso do judeu europeu.
Esse discurso não é, está claro, o disfarce ou contrafação, o arremedo ou subterfúgio de que é acusado pelo anti-semita (o qual, aliás, aparece agora com outras tintas, outras razões e emoções: não as do ódio argumentativo, do preconceito racionalizado, mas do zelo e do medo da diferença no ‘modo narcísico’ da fixação nas “diferenças secundárias”). Também não é, por outro lado, instância da ‘ideologia’, representação que mascara a realidade; não é o saber utilitário de acomodação do/ao mundo. Enfim, o que se nos abre como possibilidade, exemplificada por certa leitura possível do esforço de Gilman, é fazer retornarem os discursos e os saberes às suas contingências originárias e sua contingencialidade radical. Isso, por sua vez, não significa desistir da universalização, mas problematizá-la sem cessar. Não significa criticar uma carência de cientificidade ou universalidade verdadeiras na ciência mesma, preparar terreno para verdades menos limitadas a suas condições de produção; e, mais que isso, não implica niilistamente rejeitar a legitimidade do que se diz ou pode dizer, diagnosticando um excesso que estaria contaminando o campo científico, habitado então por mais teorias ‘ideológicas’ do que é possível comportar sem efeitos perversos e surpreendentes.
Estudos como o de Gilman — colocados ao largo da interpretação da obra pela chave da biografia individual, e também distantes da redução historicista do pensamento ao contexto que lhe oferece seus apoios e ocasiões — podem ajudar-nos a manter afiada alguma lâmina crítica. O sucesso retórico de Freud — quase pragmaticamente, ele dirá da semelhança entre sua teoria e os delírios paranóicos de Schreber, que os sucessos futuros decidirão se “há mais delírio na teoria” do que ele mesmo deseja, ou se há no delírio “mais verdade do que outros hoje crêem possível” —, o êxito retórico de Freud se revela um ‘fracasso epistemológico’ (limites da universalização da sua particularidade), para voltar a transfigurar-se, sob nosso olhar, em ‘sucesso performático’: pois a universalização não mais se apresenta como empresa funesta, mas lugar contingente de onde, a seu tempo, Freud pensou a diferença. (Quase ousaríamos propor que o extenso e minucioso exame, no livro de Gilman, das discussões sobre a circuncisão valha por um implícito reconhecimento das ‘apropriabilidades’ presentes do tema: pensar nessa inscrição corporal, e no corpo de saber que em torno dela gravita, como uma ‘economia primitiva’ da différence.)
Em várias ocasiões, nos deparamos com o paralelismo (implícito, no texto de Gilman) entre a categoria do Outro, tal como se construiu na antropologia, por exemplo, e a alteridade em questão nas construções de raça, sexo (gênero) e loucura; por isso, ao nos confrontarmos, na esfera da cultura, com a situação de pluralidade e simultaneidades, com os efeitos de equivalência que a descolonização ou desmetropolização do saber pode acarretar, é a ‘particularidade’ mesma — insistente, intransferível —, redescoberta em Freud, que se nos afigura como seu trunfo de pertinência teórica aqui e agora.
Essa particularidade talvez deva ser entendida um pouco ‘rortyanamente’; ela se apresenta na abertura mesma para a universalização, porém com uma tensão a mais: os limites, além de externos, são também intern(alizad)os — não só os da exeqüibilidade dos desígnios, mas da cumplicidade com eles. Um Freud judeu não é nem acaso nem limitação da psicanálise. Se esta nem ‘oculta’ nem ‘compensa’ a judaicidade do indivíduo Freud, diremos que a traduz conceitualmente — dando partida à imperecida ciclicidade vital das traições (tradutor, traidor…) e disseminações.
Hoje, com efeito, na (pós-)modernidade globalizada, nos vemos mais próximos de uma situação em que a alteridade e a diferença não têm lugar (território) fixo nem estatuto reflexamente garantido de solidez; e isso se faz graças, em parte, à contingencialização do discurso, à operação de referenciá-lo à locação e elocução que o sustêm. O lugar da diferença é um lugar (em) aberto — uma ferida —, e não se preenche ou cicatriza em sentido único; demanda ocupações provisórias e sucessivas. Um retorno historicizado(r) aos fantasmas de Freud pode nos colocar na trilha de sua vocação.
Resenhista
Amig Geiger – Mestre em antropologia social. Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Referências desta Resenha
GILMAN, Sander. Cicatriz do universal. Rio de Janeiro: Imago, 1994. Resenha de: GEIGER, Amig. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.2, n.2, jul./out.1995. Acessar publicação original [DR]