Chile despertó: lecturas desde la Historia del estalido social de octubre | P. Artaza, A. Candina, J. Esteve, M. Folchi, S. Grez, C. Guerrero, J. L. Martínez, M. Matus, C. Peñaoza, C. Sanhueza e J. M. Zavala
Chile despertó | Imagem: Contacto Digital
Publicada pela Universidad de Chile, editada por Mauricio Folchi e organizada em onze artigos produzidos por historiadores do Departamento de Ciências Históricas, a obra coletiva “Chile despertó: Lecturas desde la Historia del estallido social de octubre” buscou uma leitura de diversos ângulos dos movimentos que estouraram em outubro de 2019 no Chile e sua consequente crise política. Se durante os anos 1990 o Chile se encontrava permeado por conflitos e mobilizações sociais, a passagem para o século XXI trouxe todo um novo cenário político acompanhado pela reorganização do movimento estudantil secundário, durante a Revolução Pinguina de 2006, e universitário durante as marchas estudantis multitudinárias de 2011. Assim, como todo um contexto de diversas reformas para uma superação de “resquícios autoritários”, a exemplo da reforma constitucional de 2005 e a do sistema eleitoral em 2015. Como, por fim, acompanhado da emergência de uma nova coalizão de centro-esquerda, a Frente Ampla, sendo assim, o quadro amplo de inserção dos movimentos de 2019 parte de um largo cenário, tanto de reativação da sociedade civil, como de renovação política.II De maneira, que a Frente Ampla representou uma novidade pelo seu respectivo rompimento do cenário dominado por um antigo duopólio partidário.III
Estes movimentos espontâneos foram, segundo o editor e autor Mauricio Folchi, a maior mobilização das últimas décadas, os quais se materializaram na recuperação da figura dos cabildos em meio a uma população demandante de participação política. Tendo novas tecnologias sido a base para as suas convocações. Tais manifestações integraram uma proposição para um novo pacto social, de maneira, a serem mais do que um simples acúmulo de mal-estar de décadas. Antes, são produto da insatisfação carregada desde a Constituição de 1980, e das leituras de um Chile que parece nunca ter tido uma constituição, de fato, democrática. Tal crise, de modo geral, não se trata de apenas uma série de demandas sociais não atendidas, antes, são produtos da incapacidade de receber e processar tais demandas por parte do Estado.
No primeiro capítulo, Sergio Grez Toso, apresenta em seu artigo “Rebelión Popular y Proceso Constituyente en Chile”, o quadro do processo existente desde 2011, no qual buscouse uma Constituição democrática por meio de uma Constituinte. Processo este, o qual recobrara forças após o início das movimentações. De maneira geral, este cenário de manifestações fora impulsionado por dois fatores: de um lado, a crise do neoliberalismo, o qual era inapto para responder a determinadas demandas sociais, do outro, a crise do sistema democrático restrito, e com baixa intensidade desde 1990, o que se encarnou nos escândalos de corrupção. Mesmo o processo constituinte iniciado por Bachelet, por outro lado, fora apenas uma manobra de impedir a participação popular, tanto que a integração a Assembleia Constituinte fora entregue as mesmas camadas que administraram e se beneficiaram do sistema neoliberal vigente. Em suma, apenas uma grande força constituinte conseguirá provocar uma ruptura democrática, superando as heranças institucionais da Ditadura e a convocação de eleições para uma Constituinte livre e soberana.
No segundo capítulo, “Orígenes históricos de los cabildos representativos”, Cristián Guerrero Lira introduz um dos temas suscitados durantes os movimentos de 2019, um antigo tipo de organização de representação cultural da política chilena, os Cabildos. Os quais foram uma antiga instituição com prerrogativas relacionadas a administração local e se ocupavam da vida comum em cada cidade. A partir de uma análise, observou-se um conjunto de temas tratados durante os Cabildos abertos, os quais eram convocadas outras autoridades, além de certos cidadãos para tratar de temas diversos, sendo os assuntos econômicos e tributários os mais corriqueiros. Contudo, ao passo que a administração pública se sofisticava e o absolutismo se fortalecia, a participação do Cabildo tornava-se cada vez menos provável. Tendo ainda assim, voltado a deter protagonismo com a crise da monarquia por volta de 1808.
No terceiro Capítulo “Entre estatuas y memorias: rompiendo una(s) historia(s) de lo nacional”, José Luis Martínez C. buscou apresentar através da análise dos diferentes tratamentos para com as estátuas durante as manifestações, um espaço de memórias em disputa no campo da história nacional. O autor chama a atenção que para posteriores análises, a história nacional e os seus atores não possuem o mesmo significado para todos os membros da sociedade. De maneira, que esses monumentos podem vir a servir como espaços de expurgo, para assim, cobrar a um cânone histórico, o lugar de grupos excluídos e invisíveis para com estes, seja no caso dos povos originários, seja por afrodescendentes ou pela negação das identidades regionais. A história é este campo de luta por dignidade e voz na construção do nacional, o que parece ser observável a partir da leitura dos ataques ou preservação dos monumentos, sem dúvida, uma forma única de romper com uma pretensa homogênea narrativa chilena.
Já no quarto capítulo, “No lo vimos venir’. Los expertos bajo escrutinio”, Carlos Sanhueza inicia seu artigo apresentando um quadro curioso, o qual antecede os movimentos de outubro de 2020. Naquele cenário, a situação econômica não era ruim, em realidade, o crescimento tinha sido maior do que da média mundial e o índice de felicidade chileno era o maior da América do Sul. Contudo, o desenvolvimento econômico não é necessariamente sinônimo de felicidade. Antes o estouro destes movimentos revela uma profunda insatisfação perceptível na sociedade. Após anos de uma administração tradicionalmente tecnocrática, a participação democrática acabou por ser diminuída ao concentrar as discussões entre certos grupos, o que, claro, cooperou para insatisfação geral. De todo modo, o ponto central não é era excluir o conhecimento técnico, antes, democratizar a participação nas decisões, tratando a comunidade não apenas como complemento nas decisões, mas um agente decisivo.
No quinto capítulo, “La Clase Media que no era: ira social y pobreza en Chile”, Azun Candina Polomer apresenta uma desconstrução de toda uma ideia de um Chile que tornara-se menos desigual com a expansão da classe média, e a subsequente diminuição dos índices de pobreza. Os principais argumentos para tal afirmativa são: o aumento da renda per capita, a maior integração das mulheres no mercado de trabalho e a massificação do crédito. Contudo, a alta renda per capita é um fator questionável para indicar a diminuição da pobreza, ao passo que o Chile possui uma enorme desigualdade socioeconômica, tendo, por exemplo, entorno de 30% da riqueza nacional acumulada em 1% da população e 1/3 das famílias possuindo dívidas impagáveis. Além disto, a entrada das mulheres no mercado de trabalho, não deixa de demonstrar uma enorme feminilização da pobreza. De maneira geral, a maioria das manifestações, mesmo pluriclassistas e heterogêneas, abarcaram conjuntamente uma crítica ao modelo neoliberal, assim como demandas de políticas solidárias e redistributivas. O que alimentou o quadro cujas questões relacionadas a desigualdade socioeconômica, precariedade do trabalho, entre outras, não eram problemas somente dos pobres. Por fim, tornou-se claro, que está nova classe média se tratava apenas de um grupo dentro de um conjunto de pobres.
No sexto capítulo, “Desigualdad: la grieta que fractura la sociedade chilena”, a historiadora Maria Matus G. apresentou como a desigualdade social abrira tamanha fratura na sociedade chilena, alcançando patamares similares ao de uma oligarquia, o que ofuscou a percepção quanto a qualquer melhora na qualidade de vida. Ao passo, que ainda que os salários tenham aumentando após as crises de 2009 e a desigualdade voltara a alcançar os níveis de 1969, assim como a subsequente participação da renda dos trabalhadores no PIB também tenha aumentado, a porcentagem mantida na mão do empresariado permanecera alta. Contudo, para amenizar tal quadro, a autora sugere determinadas medidas. Primeiramente, harmonizar o salário mínimo e médio em relação aos países que possuem um PIB per capita similar, e segundo, reconstruir o sistema de entrega estatal de bens públicos fundamentais, garantidos como direitos essenciais em uma nova constituição.
No sétimo capítulo, o artigo de Carla Peñaloza Palma, “Derechos humanos: el pasado que no pasa” inicia apresentando os protestos cuja base viu-se sustentada pela desigualdade extrema e a falta de direitos. Contudo, a resposta do governo fora repressiva, sendo a maior dos últimos trinta anos. As similaridades com a repressão durante a ditadura foram claras, e as comparações entre os atos e as reações daquele período tem sido recobrado, como todo um trauma carregado por várias gerações. De maneira, que nos últimos trinta anos, a população chilena vem buscando por justiça para as vítimas da ditadura. Frente a isto, uma medida significativa, ainda que insuficiente, fora a criação da Comissão da Verdade e Reconciliação. Todavia, três áreas são essenciais para uma futura tomada de consciência: a escola, os meios de comunicação e as Forças Armadas.
No oitavo capítulo, “Nuestro sistema político: miedo a lo social e ilegitimidad”, Pablo Artaza Barrios, demonstra que esta convulsão social que ocorrera se deve principalmente a uma incapacidade de resolver problemas históricos, que se estendem desde a terceira parte do século XX até as primeiras décadas do século XXI. A própria ditadura desarticulou uma série de processos desenvolvidos durante o século XX, os quais tentavam fomentar atores sociais participativos na sociedade, forçando a uma desassociação entre o político e o social. De maneira, que o mesmo modelo de administração pós-ditadura, levou a uma acumulação de tensões, que já não podiam ser contidas, em especial em relação a desigualdade. Assim, a contramão do apoio a uma sociedade mobilizada, reestabeleceram um sistema político baseado no medo. Por fim, acabaram por sacrificar estas transformações por uma paz social, o qual garantiria uma administração estável capaz de garantir investimentos estrangeiros, nos quais apostavam como base para o crescimento.
Para o autor, o não acolhimento das mobilizações sociais, está ligado a uma avaliação destes grupos, em especial relacionados ao socialismo renovado. O qual ligada a memória do antigo fracasso da Unidad Popular¸ de Salvador Allende, criou uma tensão entre a revolução de “cima” e de “baixo”, o que no caso, uma população politizada, poderia não ser tão preterível. O que por fim, gerou um governo carente de legitimidade, e com forte distanciamento entre o social e o político. Em suma, o Chile necessita passar por uma profunda transformação política, para que, assim, construa um Estado que busque dialogar com seus cidadãos. Emergindo destas transformações um novo pacto social, que reflita a soberania e um sistema político que não seja a expressão apenas de uma minoria.
Já no nono capítulo, “Chile y España: transiciones cuestionadas”, o autor Javier Esteve Martí, apresenta um quadro um tanto mais amplo para perceber as manifestações chilenas de 2019, ao passo que introduz o caso espanhol e suas manifestações em 2011 após as crises econômicas de 2008 como objeto de comparação. Os dois movimentos em questão detiveram três pontos em comum. Primeiramente, ambos detiveram uma ampla participação dos jovens, e em segundo lugar, as manifestações foram impulsionadas por demandas econômicas. O terceiro fator cabível de comparação, fora o modo de ação dos manifestantes, que em ambos os casos demonstraram seu descontentamento por meio da ocupação de locais simbólicos. Sendo uma digna distinção, entre estes, o grau chileno de violência. De qualquer maneira, apesar dos protestos serem impulsionados contra um sistema político neoliberal, o descrédito deste modelo está ligado principalmente a práticas que justamente escapam da ortodoxia neoliberal, antes práticas próprias de um regime plutocrático. Uma similaridade relevante para este quadro fora que tais críticas ao modelo econômico acabaram por afetar a própria legitimidade da Classe política, que no caso espanhol, acabou por romper o bipartidarismo. Em suma, o Chile pode aprender com o caso espanhol de três maneiras: primeiramente, não desvalorizando partidos já consolidados com uma ampla trajetória, em segundo lugar, que aqueles manifestantes que participam por perspectivas de benefícios a curto prazo, podem voltar a votar em políticas tradicionais com o tempo, e por fim, há o grande risco de ascensão da extrema direita.
No décimo capítulo, “Los pueblos originarios y un nuevo orden político para Chile”, José Manuel Zavala C. apresenta primeiramente o quadro onde os protestos surgem como resultados de demandas por mudanças para superar o modelo de desenvolvimento neoliberal, o qual não beneficiara grande parte do País. Com um sistema econômico direcionado principalmente para exportações, o governo acabara por não abrir espaço para demandas sociais que possam atrapalhar o crescimento tido quase como primordial. Contudo, não se pode tratar economia desconectada da política, tão quanto da cultura. Em suma, a nova ordem política a se estabelecer, segundo o autor, deveria atentar para uma economia plural, capaz de abrigar sistemas produtivos não regidos pela oferta e demanda, conjuntamente com o modo de vida destas populações. Em suma, a nova ordem econômica precisaria garantir a sobrevivência social e econômica das comunidades indígenas, por exemplo, por meio da pluralidade econômica, ademais, sendo esta uma maneira de garantir também a própria sustentabilidade alimentar e ecológica.
Finalizando a obra, Mauricio Folchi retorna no capítulo onze, “La lucha por la dignidad y la justicia ambiental”, o qual busca tratar a relação direta dos movimentos para com a luta por justiça ambiental, tentando ainda dissipar compreensões errôneos no que tange a preocupação com o meio ambiente. De forma clara, dentro do embate de discursos, os defensores do desenvolvimento econômico suscitam o argumento de que a preocupação com o meio ambiente deve ser precedida pelo cuidado as pessoas, segundo estes, a contrapartida dos ambientalistas. Tal afirmação, constrói a ideia de que é permitido transformar o meio ambiente em prol da construção de postos de trabalhos, bens e serviços para a população. Esta fala se aproveita da má compreensão do conceito de meio ambiente, o qual é usualmente tomado como sinônimo de natureza. Contudo, o meio ambiente basicamente se refere ao habitat onde as pessoas vivem, obtém recursos e serviços. Desta maneira, “cuidar das pessoas” em nada difere do cuidado ao meio ambiente. De forma geral, a degradação ambiental está intimamente ligada aos problemas sociais. No caso chileno, a própria qualidade ambiental se trata de um quadro de desigualdades. Tal conceito ao passar do tempo, expandiu-se ao englobar grupos socioeconômicos não definidos, e assim, reúnem no movimento pela justiça ambiental, grupos ambientalmente desfavorecidos. O debate acerca do meio ambiente se materializa em uma nova mentalidade social. Mentalidade esta dotada de uma consciência política socioambiental e territorial. Em suma, esta luta pela justiça ambiental, se resume em um esforço para democratizar o meio ambiente. Sendo tal luta pelas causas ambientais uma busca por um novo pacto social, tendo por pilares a justiça e a dignidade.
Em quadro geral, os artigos propostos nesta obra coletiva conseguiram abarcar uma série de temáticas diretamente traçadas e manifestadas nos movimentos de 2019 no Chile. Desconstruindo principalmente a face de um desenvolvimento tão exteriormente assentido, porém, carregado de contradições internas. Sem dúvida, todos os autores conseguiram expor e clarificar uma face talvez não tão habitual do crescimento chileno, onde cicatrizes como a de desigualdades e demandas democráticas não sejam tão aparentes ao olho nu. De fato, tais falas expõem um país com contradições mal resolvidos desde a queda de seu período ditatorial e que ainda convulsionam em meio a um paradoxo dos índices de desigualdade, em todo sentido possível, e os de crescimento econômico. Revelando um país com anos de administrações tecnocrata, políticas neoliberais com auspícios de uma plutocracia, e toda uma doutrina de crescimento marcada por desigualdades e uma estrutura governamental com pouco espaço para participação social.
Notas
II COSTA, Murilo Gomes; TANSCHEIT, Talita. “E no entanto, ela se move! As transformações recentes da democracia no Chile” In: LIMA, Maria Regina Soares de (org.) [et al.]. América do Sul no século XXI: desafios de um projeto político regional. Rio de Janeiro: Multifoco, 2020, p. 72 – 73.
III Ibid, p. 83.
Referências
ARTAZA, P.; CANDINA, A.; ESTEVE, J.; FOLCHI, M.; GREZ, S.; GUERRERO, C.; MARTÍNEZ, J. L; MATUS, M.; PEÑALOZA, C.; SANHUEZA, C.; ZAVALA, J. M. Chile despertó: lecturas desde la Historia del estalido social de octubre, 2019. Santiago: Universidad de Chile, 2019.
COSTA, Murilo Gomes; TANSCHEIT, Talita. “E no entanto, ela se move! As transformações recentes da democracia no Chile” In: LIMA, Maria Regina Soares de (org.) [et al.]. América do Sul no século XXI: desafios de um projeto político regional. Rio de Janeiro: Multifoco, 2020.
Resenhista
Allan Pontes Pettinelli – Graduando em História pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Referências desta Resenha
ARTAZA, P.; CANDINA, A.; ESTEVE, J.; FOLCHI, M.; GREZ, S.; GUERRERO, C.; MARTÍNEZ, J. L; MATUS, M.; PEÑALOZA, C.; SANHUEZA, C.; ZAVALA, J. M. Chile despertó: lecturas desde la Historia del estalido social de octubre. Santiago: Universidad de Chile, 2019. Resenha de: PETTINELLI, Allan Pontes. O paradoxo chileno: crescimento econômico e desigual. Cadernos do Tempo Presente. São Cristóvão, v. 13, n. 01, p. 110-114, jan./jun. 2022. Acessar publicação original [DR]