Chile 73: Memoria, impactos y perspectivas | Joan del Alcázar e Esteban Valenzuela

Existem certos momentos no devir das sociedades em que a memória emerge com mais força e de forma às vezes surpreendente. Nesses momentos, a experiência com determinados eventos remete as pessoas e os grupos sociais ao passado, trazendo à tona certas lembranças que por seu conteúdo desencadeiam reações no presente. Conforme definição de Jacy Seixas (2002 p.43-45), esse trajeto faz com que sejamos interpelados pelos problemas da atualização e da espacialização da memória. O livro hora resenhado e organizado pelo historiador espanhol Joan del Alcázar [1] e pelo político, escritor e pesquisador chileno Esteban Valenzuela [2], reúne nove artigos que refletem a preocupação desses acadêmicos, com o papel exercido pela memória do governo socialista de Salvador Allende (1970-1973) e da ditadura militar (1973-1990) no aperfeiçoamento da democracia chilena. De acordo com Alcázar e Valenzuela, a memória deste passado recente têm representado muitos dos antagonismos vividos no país e que estariam dificultando a produção de consensos e a plena democratização. Trata-se de uma dimensão dos acontecimentos pretéritos permanentemente latente e que retira do impacto exercido pelas referidas experiências limite, grande parte da força das representações que manifesta.

Em 2013, constituiu-se no Chile um desses momentos detonadores de memória durante a conjuntura da contenda presidencial ocorrida no clima dos quarenta anos do golpe de Estado. Nesse caso, dentro de um quadro político complexo, onde figuram uma crise de representatividade da direita política, o rearranjo da coalizão de centro-esquerda e o pluralismo partidário das forças ditas progressistas, a origem dramática de três importantes candidatos em pugna destacou-se como um evento referenciador.

Segundo o escritor Ariel Dorfman (2013), as candidaturas de Michelle Bachelet pela coalizão Nueva Mayoria, de Evelyn Matthei pela direitista Alianza por Chile e de Marco Enríquez-Ominami pela coalizão Si tú quieres, Chile cambia, compunham uma “história de três pais”. O General Alberto Bachelet, torturado e morto na Academia de Guerra e Aviação em 1974, o General Fernando Matthei, membro da junta militar e diretor dessa Academia na década de setenta, e Miguel Enríquez, líder do MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionaria) abatido pela polícia secreta no mesmo ano. Nessa história, mediante a aplicação dos regramentos democráticos, teria ocorrido um (re)encontro geracional, diante do qual poderíamos inquirir sobre quanto de justiça há nos fatos de a Presidente eleita ser a filha do general assassinado, de a candidata perdedora ser a filha do militar golpista que não teve a coragem de salvar a vida de seu companheiro de farda e amigo, e no fato de o filho do guerrilheiro disputar este segundo lugar através de parâmetros político-institucionais herdados do governo autoritário. Os ajustes previstos na narrativa de Dorfman (2013) expressam, em certa medida, anseios por reparação e conflitos frequentemente viscerais que influenciam a toma de decisões dos chilenos.

Isso torna compreensível a referida preocupação dos organizadores da obra e ademais, nos ajuda a entender porque os mesmos a estendem à escrita da história, colocando a necessidade de os pesquisadores que trabalham com essa temática redobrarem sua vigilância epistemológica [3]. Nesse campo, os interesses em jogo pela definição de períodos siderais da história da nação atentam para tudo o que é dito, silenciado e comprovado. Como salientam Alcázar e Valenzuela, no Chile mesmo os partidários do esquecimento, quando ouvem os silenciados, também querer falar. Talvez possamos nos remeter neste ponto à necessidade de uma ética da responsabilidade, entendida, de acordo com o conceito weberiano, como avaliação de toda ação em função de suas consequências e da capacidade dos atores de responder a elas. Pensar nas consequências que podem gerar a “história oficial” ao relativizar a violação dos direitos humanos e eximir responsáveis de crimes, ou a “história dos vencidos” ao dar voz àqueles que por sua situação de subalternidade não puderam se pronunciar sobre os fatos; seria uma das formas de se perseguir tal ética. Por outro lado, não podemos negligenciar que responder às consequências significa assumir um posicionamento político, e estamos diante de uma obra que se posiciona e que por isso nos permite aproximá-la ao movimento qualificado como “batalha pela memória” e como “política da memória” [4]. Ainda que devamos sublinhar que à diferença do período de maior efervescência da produção intelectual sobre a memória dos golpes e ditaduras, após algumas décadas de democracia na América Latina, questões sobre igualdade e liberdade se agregam a esta problemática alargando o escopo dos trabalhos interessados nas relações entre a narrativa do passado e a política.

Conforme afirmam Alcázar e Valenzuela, “em boa medida […] se produziu uma contaminação, se assim pudermos falar, da memória da ditadura pela desilusão da democracia” (2013, p.17). Contudo, pensamos que a desilusão da democracia também é a representação de uma memória, a memória das desigualdades que assolam a região latino-americana há séculos. Logo, o que os autores chamam de contaminação, poderíamos definir como concatenação (seriação, vinculo, encadeamento) entre lembranças de tantas formas de opressão. O ensaio “Escravidão e ditadura: por mais comissões da verdade” de Tomaz Amorim Izabel é ilustrativo dessa relação ao afirmar sobre o Brasil que “a reescrita histórica da Escravidão e da Ditadura e suas indenizações estão dentro de um mesmo movimento […] O pau-de-arara da UPP no Rio de Janeiro é descendente daquele do DOI-CODI que é, por sua vez, descendente direto daquele da senzala” [5]. O debate pode se alargar, entretanto, por hora é importante frisar que essa realidade é o que mune a nós e aos autores dos textos que comentaremos a seguir, de um olhar capaz de realizar re-leituras dos acontecimentos pretéritos, aqui mais especificamente da “experiência chilena”. Uma vez que, como afirmou Seixas (2002), atualizar o passado corresponde a atualizar algo comum à memória e ao presente.

Para nós, nesta relação de intercâmbio entre memória e problemas contemporâneos reside uma característica que atravessa todos os artigos da obra e que consiste em pensar sobre os fundamentos da democracia na América Latina.

O primeiro artigo El esquivo bloque por los cambios del siglo XX: Frente Popular, Frente de Acción Popular (FRAP), Unidad Popular (UP) y Concertación, de Tomás Moulian, Sergio Valdés y Esteban Valenzuela, nos desvela alguns dos paradoxos vividos pelas coalizões de centro-esquerda durante o século XX no Chile ao inseriremse num sistema político resistente à mudanças. Segundo os autores, os “blocos por mudanças” se constituíram em forças bastante competitivas, conquistando algumas vezes a Presidência da República, mas mesmo tendo realizado reformas importantes como a da nacionalização do cobre, dentre outras, fracassaram no seu maior objetivo, ou seja, a promoção de mudanças estruturais na sociedade. Conclusivamente, a despeito de tecerem considerações acerca da influência do contexto econômico e político internacional na formação e desestruturação desses blocos, os autores apontam para as dificuldades vivenciadas nos âmbitos do Estado e das concepções políticas internas aos partidos como razões de dito fracasso. Para finalmente desembocar numa afirmação taxativa e de caráter sensível ao escreverem que “cada bloque fue víctima de la culpa de la experiência de um fracasso pasado” (p.39 grifo nosso).

Ao avaliar como o fracasso do governo da Unidade Popular (1970-1973) foi interpretado na arena internacional Joan del Alcázar, o autor do segundo artigo intitulado El impacto del 73 chileno en el debate político de la izquierda internacional, nos oferece algumas pistas sobre as consequências sensíveis desse impacto e de como isso influenciou a reconfiguração de diretrizes partidárias, como as do eurocomunismo, em direção ao pragmatismo ou como as que caminharam em direção ao descrédito e radicalismo contra a democracia liberal, como a do comunismo cubano. No que se refere à Espanha, o autor observa que no ambiente marcado pelo franquismo a esperança no projeto de transformação derrotado no Chile transmutou-se primeiramente em dor, para logo em seguida constituir-se em força na luta pela redemocratização espanhola. A guisa de conclusão, o autor parece concordar com a visão segundo a qual a democracia representa uma possibilidade de aperfeiçoamento da própria esquerda. Primeiro porque desta exige o exercício do consenso e segundo porque, longe da possibilidade de mudança de sistema a curto ou médio prazo, esta se vê –desde que sincera consigo- impelida antes à prática do que ao simples gesto.

Se nos dois artigos anteriores se questionou respectivamente sobre como funcionaram as coalizões que se propuseram operar transformações em democracia e sobre como a esquerda formulou estratégias de atuação a partir da avaliação de experiências prévias; Carlos Hunneus e Rodrigo Cuevas fazem um questionamento sobre a qualidade do campo de atuação política. Es la actual democracia de mejor calidad que la que existió antes de 1973? La democracia semisoberana, cuarenta años después del golpe de Estado é o título do terceiro artigo da obra, no qual os autores observam que a despeito do crescimento econômico chileno, a magnitude da desigualdade e a concentração de riqueza são piores que em 1973. Associada a instituições com características herdadas da ditadura, incluindo ai o principal parâmetro normativo de um país a Constituição, tal situação conduz à conclusão de que vigora hoje no Chile uma democracia “semisoberana”.

Com uma proposta bastante original, o quarto artigo intitulado Aciertos e “innovaciones” de la UP, aquello que perdura, Esteban Valenzuela Van Treek e Guillermo Marín Vargas realizam o esforço de recuperar, dentre as 40 medidas propostas pelo Programa de Governo da Unidade Popular, as mudanças promovidas seja através de reformas, de programas ou de experiências inovadoras e que de alguma maneira perduraram. Além das conhecidas nacionalização do cobre e reforma agrária, a política habitacional da época ganha destaque, pois sob uma inovadora concepção de habitação como direito básico do cidadão, projetava-se pelo atendimento integral dessa necessidade. Iniciativas como os programas de alimentação básica infantil e escolar e o incentivo à leitura são ainda hoje uma referência de responsabilidade social do Estado. Tudo isso, bem como a implantação de um pioneiro software-internet que digitalizava e comunicava empresas que formavam a Área de Propriedade Social e outros projetos de inovação cultural, como o do Museu da Solidariedade, nos dão evidência suficiente para discutir a ideia que opõe o governo de viés socialista da UP à modernização.

O caminho entre um momento histórico onde tudo parecia ser possível e outro onde muito pouco parece ser possível é percorrido pelo quinto artigo El dilema epistemológico tras el golpe: miedo a la utopia o vigencia del sueño socialista de Pablo Salvat y Natacha Romero. A partir de uma perspectiva da filosofia política, os autores afirmam que a perda de energia utópica no Chile contemporâneo ocorre através da constrição pela razão instrumental, do horizonte incondicionado que esta energia requer. Essa energia política criativa encontrava-se em ebulição na sociedade chilena no inicio da década de 1970, mas enfrentou-se a forças conservadoras alojadas em setores dominantes que a desmobilizaram violentamente. Para, posteriormente, converte-la na sua antítese através da adoção do “modelo chileno”, do qual provêm muitos dos obstáculos institucionais com os quais a atual classe política deve enfrentar-se. A fim de retomar essa questão ontológica, que acreditamos ser de dinamização do poder constituinte, contra a política excessivamente pragmática e gestionária, os autores defendem a elaboração de relatos coletivos sobre o passado mais audaciosos.

No artigo Las divergentes “lecturas” socialistas del 73. De Altamirano a Bachelet. La unidad Popular: un pasado siempre presente entre los socialistas chilenos, sexto texto da coletânea, o historiador Édison Ortiz faz uma análise histórica da dinâmica do socialismo no Chile a partir das leituras da “experiência chilena” realizadas por seus adeptos entre 1970 e o primeiro decênio do século XX. O autor considera que as diferenças existentes entre os grupos socialistas foram forjadas em torno a dois enclaves que os dividiram, a concepção de fracasso e a concepção de derrota. Até o inicio da década de 1990, porém, esses grupos se unificaram como resultado do abandono das estratégias radicalistas de combate à ditadura e da culminância do processo chamado renovação socialista. Todavia, perante os desafios enfrentados pelos governos da Concertación, sugiram novamente fraturas internas esculpidas pelo mesmo dilema; arrefecer as reformas ou gerenciar possibilidades institucionais concretas.

A análise da incidência dos fatores relativos ao sistema internacional na caída do governo Allende é pouco comum no universo de estudos acerca deste tema, assim sendo, o sétimo artigo Superando el sesgo e la primacia de los factores internos: la Unidad Popular a la luz de las constriccions del sistema-mundo capitalista de Luis Garrido nos traz uma preciosa contribuição nesse sentido. Segundo Garrido, não se trata de restringir as causas ao global em detrimento do local, mas ampliar o horizonte explicativo desse período de inflexão na história chilena relevando aspectos tais como: o papel das organizações internacionais na reprodução da desigualdade, a participação chilena no mercado mundial, os ciclos econômicos de expansão e retração, dentre outros.

O oitavo artigo desta coletânea propõe uma abordagem inovadora da memória das vitimas da ditadura com o intuito de promover a educação a favor dos direitos humanos e foi escrito por Manuel Fuenzalida, Esteban Valenzuela, Paulo Contreras e Felipe Zuñiga sob o título Geomemorias del 73: mapas de las violaciones a los derechos humanos. Essa abordagem utiliza mapas que indicam o local onde ocorreram os crimes, que tipos de crimes e a quantidade de pessoas atingidas com definições de idade e sexo. Esse método, segundo os autores, permite uma visualização da memória desses fatos, e a nosso ver, promove a espacialização dessa memória.

Finalmente, o artigo Pinochet VS. Allende, imágenes para la juventud del siglo XXI, de autoría de Joan del Alcázar e Berta Rodrigo encerra o livro contrapondo os dois principais personagens da memória e da história que povoou todos os textos aqui apresentados. Nessa contraposição evidenciam as responsabilidades de cada um desses líderes, desmistificam o heroísmo atribuído a cada um deles, desnudam seus defensores e acusadores. Pinochet e Allende aparecem através daquilo a que se associaram, ditadura e morte, e representação e esperança. Sem embargo, permanece no simbólico que eles representam as controvérsias em vigor no Chile, no limite suas caras expressam as grandes desigualdades sociais que ainda marcam o país.

Os desafios vividos pelos chilenos possuem muitos paralelos com os desafios vividos pelas sociedades latino-americanas em geral, sobretudo no que se refere à qualidade da democracia. Paira sobre a região um aparente consenso de que esse é o melhor sistema, entretanto isso se desmorona quando o assunto é no que ele consiste, e entram em cena qualificativos para a democracia tais como substantiva e procedimental, que nos colocam na encruzilhada da opção por igualdade ou liberdade. Daí a importância de voltarmos o olhar para o passado em busca da memória que dará suporte a um novo momento constituinte onde todos possam realmente participar. Talvez por isso, hoje nas manifestações chilenas as bandeiras pró constituinte, a bandeira mapuche e aquela com a cara de Allende sejam bradadas lado a lado. Nesse sentido, uma memória para o futuro pode ser aquela que nutre a história da refundação das sociedades latino-americanas, finalmente é nisto que o livro resenhado nos põe a pensar.

Notas

1. Catedrático do Departamento de História Contemporânea da Universidade de Valência, Joan Del Alcázar é conhecido internacionalmente por seu trabalho de assessoria ao Juiz espanhol Baltasar Garzón que em 1999 acusa o ditador Pinochet de violações aos direitos humanos e solicita a extradição deste, que se encontrava detido em Londres, para julgamento na Espanha. Há um interessante artigo publicado no Brasil onde Alcázar descreve como foi este trabalho e analisa a influência deste tanto na escrita da história política chilena quanto no campo do direito internacional. “A imunidade soberana de Pinochet contestada”. Lua Nova: Revista de cultura e política nº 49 de 2000.

2. Diretor do Departamento de Ciência Política da Universidade Alberto Hurtado em Santiago do Chile, publicou “Alegato histórico regionalista” Santiago de Chile: Ediciones SUR, 1999. Foi deputado pelo PPD(Partido Por la Democracia) ao qual renunciou, aderiu à campanha presidencial de Michele Bachalet e é coordenador da área de descentralização da Presidente.

3. De acordo com Pierre Bourdieu, diante da impossibilidade de neutralidade axiológica e da pressão que os demais campos como o social, o político e o religioso, por exemplo, exercem sobre o campo científico, o sociólogo precisa manter-se vigilante tanto ao cumprimento de parâmetros científicos que resguardem a produção do conhecimento quanto à tentação de enrijecer a metodologia tornando-a sua tábua de salvação. Aqui, estendemos esse entendimento às demais ciências humanas.

4. Esses termos fundamentam-se respectivamente em Michel Pollak no seu consagrado texto “Memória, esquecimento e silêncio” publicado pela Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 03,1989; em Márcio Seligmann-Silva no artigo “Testemunho e a política da memória: o tempo depois das catástrofes” publicado na Revista Projeto História da PUC, n . 30 jun. 2005, São Paulo.

5. Esse texto está disponível em: http://negrobelchior.cartacapital.com.br/2013/11/08/escravidao-e-ditadura-por-mais-comissoes-da-verdade/

Referências

DORFMAN, Ariel. Una historia de tres padres. El país. 15 de noviembre de 2013. Disponível em: https://elpais.com/elpais/2013/11/08/opinion/1383937078_233763.html. Acesso em: 21/11/2013a

SEIXAS, Jacy Alves de. Os campos (in)elásticos da memória: reflexões sobre a memória histórica. In: BRESCIANI, Maria Stella; BREPOHL. Razão e paixão na política. Brasília, UNB, 2002.


Resenhista

Janaína Alexandra Capistrano da Costa – Mestre em Sociologia – Doutoranda em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, bolsista CAPES processo 11094-13-3 e Professora Assistente do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Tocantins. janacapis@gmail.com


Referências desta Resenha

ALCÁZAR, Joan del; VALENZUELA, Esteban (Orgs.). Chile 73: Memoria, impactos y perspectivas. Valencia: Publicaciones de a Universidad de Valencia, 2013. Resenha de: COSTA, Janaína Alexandra Capistrano da. A memória chilena após 40 anos. Revista Latino-Americana de História. São Leopoldo, v.3, n.12, p. 205-212, 2014. Acessar publicação original [DR]

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