O tema das migrações internacionais tende a ser mais estudado nas Ciências Sociais do que nas Relações Internacionais (RI). Ainda assim, esse é um assunto que transcende fronteiras nacionais e que também poderia ser explicado pelas teorias das RI. Dentre as muitas óticas pelas quais as migrações podem ser vistas, destaca-se o número de crianças desacompanhadas atravessando a fronteira rumo aos Estados Unidos da América (EUA). Ainda que isso não seja uma novidade, o volume desse fluxo vem aumentando nos últimos anos, sendo inclusive noticiado pela mídia internacional. Nessa linha, Jacqueline Bhabha analisa o tema da migração infantil.
A autora adota uma ótica da criança como sujeito de direitos, presentes na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (1989) para estudar como os Estados lidam com a migração das crianças desacompanhadas (incluindo o seu direito à reunificação familiar), a situação das crianças cidadãs cujos pais são imigrantes irregulares, a adoção internacional, as crianças traficadas, as crianças soldado, as crianças refugiadas e os adolescentes migrantes por causas econômicas. As crianças começam a aparecer nos estudos migratórios relacionadas em trabalhos sobre migrações femininas e familiares. Contudo, a abordagem das crianças como atores com voz própria nem sempre é observada, pois essas normalmente são tratadas como objeto. Ao mesmo tempo, nas RI, os temas que envolvem esse grupo são considerados low politics e recebem pouca atenção internacional e da Academia. Apesar disso, Watson (2006) defende que as crianças são atores da disciplina que impactam as relações interestatais.
Além disso, como conclui Bhabha, a relação entre os Estados e o modo como eles entendem as migrações contribuem para que os direitos e a proteção dessas crianças sejam garantidos ou não. A tendência é prevalecer a vontade dos Estados de coibirem fluxos indesejados frente aos direitos das crianças, sendo esses aplicados em uma lógica adulto-cêntrica. Nessa visão, a ideia de “punir” uma migração irregular sobrepõe a de garantir o “melhor interesse da criança”. Também dificilmente a voz e o direito à participação são observados.
Para explicar essa questão, a autora considera o conceito de ambivalência. Nas RI, uma lógica utilizada para explicar a exclusão de alguns grupos e temas seria a ideia de agência invisível de Enloe (1990). Para essa teórica feminista, as mulheres – como atores e os temas feministas – não entrariam na Agenda da disciplina porque sua agência não seria reconhecida como tal no âmbito internacional, ou seja, não é que essa ação não exista, mas ela não é devidamente considerada. Bhabha acredita que o problema da migração infantil não seria sua invisibilidade, mas sim o modo ambivalente como os Estados lidam com isso. Esse tema estaria visível, porém os atores responderiam a ele utilizando duas abordagens contrastantes: a do seu dever internacional de proteger as crianças e seus direitos (considerando a vulnerabilidade infantil e o papel de vítima) e a do direito estatal soberano de realizar um controle migratório e desestimular migrações irregulares (ainda que essas sejam de “pobres” crianças).
Assim, a proposta da autora seria ir além dessas duas concepções para compreender as crianças como sujeitos de todos os seus direitos. No campo das RI, temas que envolvem as crianças ainda são periféricos. Muitas vezes os direitos das crianças se encontram embaralhados no discurso dos direitos humanos usado inclusive para justificar e legitimar intervenções em outros países. Uma questão decorrente da leitura do livro é: como motivar os Estados a perceberem as crianças como sujeitos de direitos, se a quase universal ratificação da Convenção sobre os Direitos da Criança (apenas Somália e os EUA não ratificaram) não conseguiu esse fato? Estudar a migração infantil na ótica das RI poderia contribuir para responder a essa pergunta.
Também é questionável a ideia de Era Global presente no título da obra. Bhabha justifica que a globalização, com a evolução dos meios de transporte e comunicação, teria facilitado e modificado os fluxos migratórios. Sendo assim, infere-se que a era Global seria a da globalização. Por outro lado, essa relação nem sempre é clara, especialmente porque, no momento atual, nem todos os Estados participam da ordem existente. Nem mesmo os estudos migratórios teriam essa visão global, visto que alguns fluxos migratórios recebem mais atenção do que outros. Ainda que a migração seja um fenômeno global, seu estudo não compreende todo o globo, de modo que muitos tipos, origens e destinos migratórios ainda permanecem desconhecidos e silenciados. Isso não invalidada o esforço de Bhabha, pelo contrário, a autora contribui para que a migração infantil seja inserida na agenda de pesquisa dos estudos migratórios, de direitos humanos e das RI.
Referências
WATSON, Alison M. S. 2006. Children and International Relations: a new site of knowledge? Review of International Studies 32: 237- 250.
ENLOE, Cynthia. 1990. Bananas, Beaches and Bases: Making Feminist Sense of International Politics. Berkeley: University of California Press.
Resenhista
Patrícia Nabuco Martuscelli – Mestranda em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília – UnB. E-mail: patnabuco@gmail.com
Referências desta Resenha
BHABHA, Jacqueline. Child Migration and Human Rights in a Global Age. Princeton: Princeton University Press, 2014. Resenha de: MARTUSCELLI, Patrícia Nabuco. Meridiano 47, v.15, n.146, p.55-56, nov./dez. 2014. Acessar publicação original [DR]
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