Manuel Zapata Olivella nasceu em Santa Cruz de Lorica, Departamento de Córdoba – Colômbia em 17 de março de 1920. Foi médico, antropólogo, folclorista, escritor, aventureiro, boêmio, livre-pensador, professor e resgatador de histórias. Ele é considerado o Decano de la literatura negra, por ser o primeiro autor negro que exaltou, rememorou e inseriu em suas obras a identidade negra colombiana. Ainda criança se mudou para Cartagena. Neste percurso, adentra a cultura negra e reivindica o protagonismo negro nas diferentes esferas da sociedade. Desde muito jovem começou a escrever no jornal El Fígaroenas revistas Estampa de Bogotá, Cromos, Sábado e Suplemento Literário de El Tiempo. Faleceu em Bogotá, Colômbia em 19 de novembro de 2004, com 84 anos.
Dentre suas principais obras, podemos destacar as seguintes: Tierra Mojada (1947), La Calle 10 (1960), Detrás del Rostro (1963), Chambacú, Corral de Negros (1963), Em Chimánaceun Santo (1964) e Changó, el Gran Putas (1983). Além desses romances, ele também publicou relatos breves como: Pasión Vagabunda (1948), He visto la Noche (1952), China 6 a.m (1954), Cuentos de Muerte y Libertad (1961), El Cirujano de la Selva (1962), ¿Quién Dio el Fusil a Oswald?(1967), Fábulas de Tamalameque: Los Animales Hablan de Paz (2003), Levantáte Mulato (s/d).
Dentre as diversas obras escritas por Zapata Olivella, a de maior destaque é Changó, El Gran Putas. Esse extenso romance aborda com maestria e realismo a travessia dos negros capturados na África pelos traficantes negreiros e suas escravizações nas Américas. Para concluir essa obra, o autor levou cerca de vinte anos investigando o percurso de travessia forçada dos negros africanos para as Américas. Esse fato marcou as memórias ancestrais do Muntu Africano permeado por muita luta, disputa, enfrentamento, resistência e muito sangue negro derramado. No entanto, a memória ancestral que narra o enredo do romance empodera o Muntu Africano e Americano com a força da religiosidade africana por meio dos Orixás. Dessa forma, Xangó ecoa sua voz de justiça e empodera os seus filhos.
A escolha de Changó, El Gran Putas, de Manuel Zapata Olivella, justificase por apresentar-se como uma nova forma de produzir romance, rompendo com os laços da tradição canônica. Esse romance enriquece a tradição realista mítica na literatura afro-latino-americana. O próprio autor inova ao inserir sua produção no Realismo Mítico. Sendo assim, Changó , El Gran Putas, se caracteriza como uma grande cerimônia simbólica de candomblé, santería e vodu, caracterizando assim um eterno presente querepete o passado no futuro, isto é, as figurações dos ancestrais que se mantêm presente por meio do Muntu. Portanto, os acontecimentos da vida do Muntu Africano e Americano são configurados pelos Orixás e traduzidos pelas Tábuas de Ifá através das falanges ancestrais destinadas pelos Orixás e demonstradas por meio dos odus, sistema adivinhatório do Iorubá.
Mediante a combinação das realidades históricas com a mitologia africana, o romance consegue resgatar e reconstruir as memórias ancestrais dos povos afrolatino-americano por meio dos acontecimentos que se apresentam na narrativa ficcional, mas que retrata fatos que possuem ligação direta com fatos históricos importantes. Essa interpretação da polifonia de vozes dos filhos de Xangó e seus descendentes é possível ser identificadas por meio da religião, das lutas independentistas, das revoluções, da configuração do Muntu e pelas memórias ancestrais de nossos antepassados. Para organizar esta grande obra e dar-lhe forma romanesca, Zapata Olivella recorre ao que denominou de Realismo Mítico, forma de interpretar os acontecimentos históricos através das memórias ancestrais, da história, mitologia africana, da ficção e do Realismo Mítico. Sendo a estrutura do romance dividida em cinco partes, cada capítulo está subdividido em seções, aqui resenhadas.
Na primeira parte, Los Orígenes, está dividida em seções nomeadas como: La tierra de los ancestros; La trata e La alargada huella entre dos mundos. Neste capítulo, se faz presente a mitologia africana por meio da apresentação e surgimento dos Orixás, como sendo os primeiros representantes do Muntu Africano. Os Orixás acompanharam os africanos escravizados ao Novo Mundo. Podemos construir através da análise dessa parte a árvore genealógica das raças e a apresentação dos deuses. Há, também, a presença da maldição de Xangó, que desencadeará o destino do Muntu Africano pelas Américas, sendo a memória ancestral dos filhos de Xangó quem está obrigada a manter viva seu legado, seja durante seu tempo de vida ou nas outras dimensões espirituais. Portanto, o Muntu Americano como descendente de Xangó recobra a sua liberdade.
Na segunda parte, El muntu americano, se divide em: Nacido entre dos aguas; Hijos de Dios y la Diabla e ¡Cruz de Elegba, la tortura camina! Neste capítulo são narrados os períodos escravistas do Muntu Africano na América, seus sofrimentos, resistências, lutas e conquistas. São narrados também, os acontecimentos ocorridos na América como as doenças que se proliferaram rapidamente entre os negros africanos recém-chegados, a lepra e a miséria, a tortura e as invasões que desfiguraram as culturas que ali já estavam, como por exemplo os indígenas. Dessa forma, o encontro dos negros africanos com os povos indígenas são cruciais para o destino do Muntu Africano e do Muntu Americano. Em suma, o contato dos nativos indígenas com os negros escravizados contribuiu na obra para o fortalecimento do ideário libertário desses povos.
A terceira parte, La rebelión de los vodús, se divide nas seguintes seções: Hablan los Caballos y sus Jinetes; El Tambor de Bouckman e Libertad o Muerte. Neste capítulo, há o relato da primeira revolução negra na América, ocorrida no Haiti, com personagens históricos como Makandal, Toussaint L’Ouventure, Boukman, Dessalines e o famoso rei Henri Chistophe – primeiro imperador negro na América. A ordem ascendeno interior dos negros e negras escravizados(as). Sendo assim, despertam e compreendem as humilhações e as aniquilações passadas por todo seu povo como um infringimento inaceitável e que merece ser combatido. É a partir desse acontecimento que seus ideais humanistas encontram ancoragem nos grandes heróis da História Negra e encontram vozes amigas nas terras da América, onde homens e mulheres dão a vida para construir sua dignidade roubada.
Já a quarta parte, Las sangres encontradas, está dividida da seguinte maneira: Simón Bolivar: Memoria del Olvido; Jusé Prudencio Padilla: Guerras Ajenas que Parecen Nuestras; El Alejaijadinho: Donde Quiera que Tus Manos sin Dedos Dejen la Huella de tu Espíritu e José María Morelos: El Llamado de los Ancestros Olmecas. Este capítulo se dedica as lutas independentistas e o aporte dos negros como heróis, destacando: Simón Bolivar, José Prudencio Padilla, Antonio Maceo, Aleijadinho, Bouckman e José María Morelos. Se desprende o relato da permanente luta contra o poder colonial até consolidar-se a primeira revolução realizadas por escravizados, a Revolução do Haití. Então, a grande revolução pelo ideal de liberdade teve início por meio de um desejo esperançoso de independência da América.
Por sua vez, a quinta e última parte, Los ancestros combatientes, se divide em: El Culto a los ancestros; Los Fabricantes de Centellas; La Guerra Civil nos Dio la Libertad e ¡Oye: Los Orichas están Furiosos! Este capítulo narra as lutas dos(as) negros(as) nos Estados Unidos e seus líderes como Nat Turner, Agne Brown, Malcom X e Martin Luther King. Esta divisão da obra não abandona o histórico, mas ordena e destaca os acontecimentos e os personagens que sempre estão fortificados por seus(suas) deuses(deusas) e seus ancestrais.
Zapata Olivella tinha fortes motivos para reivindicar em sua obra a presença do(a) negro(a) de forma afirmativa por meio de sua visão enquanto ser humano. Um dos principais fatores foi contar, desde sua subjetividade, como se deu a diáspora dos povos africanos arrancados de sua terra natal, da sua África, sendo colocados em navios negreiros junto de outros povos – muitos dos quais inimigos – com outras línguas e costumes, levados para trabalhar como escravizados(as) no Novo Mundo, onde seriam forçados a abdicar de seus costumes, crenças, deuses, danças, religião, e com isso, adotar a religião de seus senhores(as) e ouvir que seus costumes e seus(suas) deuses(as) eram errados(as) e inferiores.
Em algumas coleções de livros de história e em uma parcela de narrativas baseadas em fatos, os povos negros escravizados eram relegados a uma posição periférica e desumana. Zapata Olivella, em sua obra modifica toda essa tradição, ao inserir o negro como protagonista de sua própria História. Ele percorreu vários lugares para conhecer as vivências e as culturas dos negros em diferentes lugares, para assim, conhecer a fundo a história dos povos africanos, contar uma história na qual dava vez e voz aos povos normalmente esquecidos, dando importância principalmente aos ritos e costumes africanos que sempre foram tratados de forma preconceituosa como tribais, atrasados e até demoníacos. Dessa forma, o autor resgata a cultura do Muntu Africano e Americano por meio das memórias ancestrais dos povos provindos da mãe África.
O candomblé, a santería, o vodu e tantos outros ritos de matriz africana sempre foram retratados como formas de crenças marginalizadas, visto que os ensinamentos dessas religiões são passados de geração para geração, não tendo um livro sagrado para universalizá-las. Dessa forma, os praticantes das religiões de matriz africana sofrem preconceitos, perseguições, racismo religioso, silenciamentos e muitas rotulações como religião demoníaca. Zapata Olivella, ao retratá-las em sua obra, mostra-as como algo sagrado e grandioso e que constrói a trajetória vivenciada pelo povo negro na América, já que a religiosidade africana é um dos pilares que sustentam os povos escravizados e seus descendentes no Novo Mundo. É através da religiosidade que os negros sobrevivem e incorporam as forças das vozes de seus ancestrais para sobreviver e resistir nas terras as quais foram trazidos.
Por muitos anos, temos estudado História de uma maneira limitada, pois um grupo de historiadores(as) tradicionais se restringiram a apenas falar sobre as figuras históricas de destaque, como reis, militares e tantas outras pessoas consideradas importantes. A História tem sido mostrada em uma perspectiva cristã, eurocêntrica e masculina e grupos como os(as) negros(as), indígenas, mulheres, homoafetivos etc., normalmente não aparecem, ou seja, são silenciados. Esse movimento de silenciamento das vozes ancestrais desaparece no romance, já que Zapata Olivella dar vez e voz ao povo negro, seja mulher, homem, criança, adulto, idoso, homoafetivo etc. Sendo assim, o enredo está permeado por uma polifonia de vozes ancestrais, cada voz contribuindo para a construção dos povos originários Muntu.
A escolha da obra de Zapata Olivella se justifica também pela riqueza histórica apresentada na perspectiva do(a) negro(a), e sua interpretação poética se dá a partir das memórias ancestrais dos(as) negros(as) presentes na América. Esse percurso rediscute e insere, por meio da literatura, no ideário nacional e na memória ancestral os questionamentos dos discursos dominantes. Com isso, rompem-se com os velhos paradigmas e abrem-se oportunidades para novos campos da formação da história dos(as) afro-colombianos(as) de forma mais crítica e inclusiva. As memórias ancestrais são apresentadas de forma equilibrada e em sintonia com a África. Além disso, a narrativa se insere em um momento histórico no qual são produzidas, negociadas e confrontadas práticas polifônicas de vozes que ecoam e que buscam por seu reconhecimento na sociedade.
As memórias ancestrais são resgatadas a partir dos mitos, crenças, costumes e ensinamentos iorubás e bantos, os quais são representações coletivas negras que possuem a força das tradições e dos conhecimentos passados de geração para geração. Os ritos que se ligam as tradições bantos e iorubás constituem métodos, correntes e perspectivas de manuseio da própria realidade. Assim, os mecanismos de pensamentos das operações dos comportamentos humanos e das trocas sociais são relevantes para o processo de construção das memórias ancestrais erguidas pelos(as) negros(as) africanos(as).
Com a leitura do romance percebemos a imensidão e a importância de desfrutar dos quinhentos anos de história do negro na América por meio dos deuses tutelares e da cosmovisão da religião iorubá e banta. Esse desfrute se dá no romance por meio das memórias ancestrais que se unem na construção da polifonia ancestral de vozes dos filhos de Xangó.
Portanto, essa resenha se destina aos estudantes de Letras, História, Antropologia, Sociologia, Psicologia, Filosofia e Pedagogia, sejam da Graduação ou da Pós-Graduação. Além de ampliar o direcionamento para todas as pessoas que tenham interesse nos estudos literários afro-latino-americano. Dessa forma, a leitura, a compreensão e a interpretação da obra precisam fazer jus aos seus incontestáveis sentidos a partir das memórias ancestrais do Muntu Africano e Americano presentes na América. Além disso, a relevância desse romance perpassa quinhentos anos de História dos Negros Africanos trazidos e instalados em diferentes lugares da América.
Referência
ZAPATA OLIVELLA, Manuel. Changó, el Gran Putas. Bogotá: Ministério da Cultura – República Colombiana, 2010.
Resenhista
Josimar Soares da Silva – Doutorando em Literatura e Interculturalidade – PPGLI/UEPB. Mestre em Formação de Professores – PPGFP/UEPB. Especialista em Língua Portuguesa e Espanhola pela UCAM/RJ. Especialista em Linguística Aplicada ao Ensino do Português – FIP/PB. Professor Efetivo da Rede Municipal de Toritama/PE. Professor efetivo da Rede Municipal de Taquaritinga do Norte/PE. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1921630572767028. E-mail: soaresjosimar2009@gmail.com
Referências desta Resenha
ZAPATA OLIVELLA, Manuel. Changó, el Gran Putas. Bogotá: Ministério da Cultura – República Colombiana, 2010. Resenha de: SILVA, Josimar Soares da. Polifonia ancestral: as vozes dos filhos de Xangó. Resenhando. Alfenas, v.3, n.3, 2021. Acessar publicação original [DR]
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