Podemos utilizar conceitos tão atuais como “Centro” e “Periferia” para a Idade Média sem incorrermos em anacronismo? Acreditamos que sim! Dentre outras possibilidades, assinalamos abordagens que destaquem a relação de fronteira e dependência, típicos do fenômeno do capitalismo; a correlação entre os espaços da urbs e do ager ou reflexões que valorizem aspectos identitários, complementares, representativos, que nos levam a pensar a condição periférica de forma móvel, dinâmica e criativa.
Defendemos, pois, que contribuições conceituais, teóricas e metodológicas recentes têm permitido um redimensionamento da relevância do(s) centro(s) e da(s) periferia(s) na análise histórica. Para além de uma visão econômica, tais contribuições têm enriquecido estudos acerca da construção sociocultural de identidades e das representações sociais – tais como estabelecidos e outsiders –, em disputas conservadoras ou progressistas. Enfatizamos ainda suas interações no campo religioso, na arte, na arquitetura.
Ao atentar para a relação entre centro-periferia no medievo, a proposta deste dossiê é contestar a percepção dual presente nos primeiros estudos históricos dedicados à temática: trabalhando, deste modo, os aspectos relacionais e as construções decorrentes do antagonismo ou assimilação representados. Com isso, nos interessa colocar em perspectiva referências como cultura popular e erudita, poder das elites e resistências populares, hereges e ortodoxos, cristãos e pagãos, judeus e / ou muçulmanos, dentre outras. Vislumbrando como seus aspectos formativos e discursos relacionais fazem parte de um constructo social imaginário que, pela identificação, apontam para diversas elaborações e estratégias sociais.
Neste Dossiê temos a oportunidade em experimentar essas visões, quando percebemos no artigo do professor Bruno Oliveira (UFF), a identidade do centro romano, servindo como percepção e disputa de identidade na Britannia, no período da passagem da Antiguidade ao Feudalismo através da circulação de bens, ideias e pessoas. O autor discute que, longe de uma ideia de “crise” do Império Romano houve nesta região produção de riqueza e trocas comerciais, o que é provado pela presença de vestígios da cultura material na Britânia, como mosaicos e a ampliação das casas das elites romano-bretãs.
Já no texto do docente Paulo Duarte (UFRJ) observamos como ocorre o discurso de centralidade eclesiástica na formação da Ecclesia romana, e suas disputas contra episcopados mais estruturados, como o de Arlés entre a primeira metade do século V e meados do século VI. O autor utiliza conceitos propostos pelo sociólogo Pierre Bourdieu como suporte para a sua análise.
Ainda sobre a tensão relativa à construção da identidade da Igreja romana, atravessamos alguns séculos para conhecer seus conflitos com as ordens de cavalaria, através do artigo do professor Guilherme Queiroz Silva (UFPB), em uma disputa de discursos com base em textos escritos por Galberto de Bruges (†c. 1134) e Gisleberto de Mons (c. 1150-1224) que muito explicitam sobre a própria Idade Média.
Nossas imersões às fronteiras ilusórias do conceito nos levam a possibilidades muito mais distantes, como as do imaginário, construído sobre a ponte dos mortos e seu papel no Purgatório e Inferno através da viagem ao Além-túmulo na obra Visão de Túndalo, tecidas no texto da professora Solange Oliveira (UFF). Ou quem sabe ainda, podemos ir ainda mais distante, quando pensamos nas relações do cristianismo com a China na Idade Média Tardia (séculos XVI-XVII), através das considerações da professora Adriana de Carvalho (UNESA / UERJ), acerca dos objetivos dos jesuítas de “controle das almas” nessa região, unindo imaginário, territorialidade e relações de poder.
Esta edição da Brathair conta ainda com relevantes contribuições sobre os debates do medievo na atualidade, em especial nas suas dinâmicas culturais, que dialogam com a proposta do Dossiê e nos permitem refletir sobre tais conceitos na Idade Média. Neste sentido, o professor Sérgio Feldman (UFES) nos oferece visões importantes sobre corpo e desejo, tendo por base o pensamento dos bispos Agostinho de Hipona (354-430) e Isidoro de Sevilha (560-636), que influenciaram a legislação canônica nos séculos XI e XII. Já o professor Alex Oliveira (UNESA) analisa a estrutura monástica hispânica através de duas obras produzidas no reino visigodo no século VII, a saber, a Regula Monachorum e a Regula Isidori, escritas respectivamente por Frutuoso de Braga e Isidoro de Sevilha.
A professora Maria Nazareth Lobato (UFRJ) nos apresenta o ideal de rei na concepção do bispo João de Salisbury, com base em sua obra Policraticus (século XII), produzida na Inglaterra, voltada ao soberano Henrique II Plantageneta, discutindo o papel dos poderes espiritual e temporal de acordo com esse eclesiástico. Por fim, a professora Maria Eugênia Bertarelli (UFRRJ) nos oferece um debate sobre a cultura escrita e oralidade na Baixa Idade Média, tendo como objeto de análise o canto V da Divina Comédia, de Dante Alighieri.
A edição 2018.2 conta também com três resenhas. O docente Bruno Alvaro (UFS) analisa a publicação Cavalaria e Nobreza: entre a História e Literatura, livro autoral dos docentes Adriana Zierer e Álvaro Alfredo Bragança Júnior, que discute a cavalaria principalmente com base em fontes literárias da Península Ibérica e do mundo germânico. O professor João Lupi (UFSC) discorre sobre a importância do livro La Edad Media em capítulos, de Lídia Raquel Miranda, a qual busca oferecer um estudo introdutório sobre este período. Na terceira resenha da edição, a professora Rita Pereira (UESB) aborda a publicação A escrita da história de um lado a outro do Atlântico, coletânea organizada por Maria Eurídice Ribeiro e Susani França. O livro conta com a participação de docentes brasileiros e lusos, visando contribuir com a historiografia do medievo nos dois lados do Atlântico.
Esperamos através do dossiê Centro e Periferia: conceitos e reflexões sobre novas perspectivas de perceber o Medievo contribuir para as reflexões sobre os conceitos de centro e periferia e ensejar novos estudos sobre a temática proposta, visando enriquecer as abordagens sobre a chamada longa Idade Média, colaborando com visões críticas acerca deste período, tais como as proporcionadas pela revista Brathair nessa edição.
Rodrigo dos Santos Rainha – UNESA / PEM-UERJ. E-mail: rodrigo.rainha@estacio.br
Paulo Duarte da Silva – IH / PEM-UFRJ. E-mail: pauloduartexxi@hotmail.com
RAINHA, Rodrigo dos Santos; SILVA, Paulo Duarte da. Editorial. Brathair, São Luís, v.18, n.2, 2018. Acessar publicação original [DR]
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