São mitos de calendário tanto o ontem como o agora, e o teu aniversário é um nascer a toda hora. (Carlos Drummond de Andrade)
O calendário na parede anuncia que estamos em 2021. Objeto cultural inventado para assinalar a passagem do tempo derivado da necessidade de controlar os dias e as noites, o plantio e a colheita, a chuva e a seca, o trabalho e o descanso, destaca, em meio às mudanças de estações, feriados consagrados aos santos e às efemérides nacionais. Assim, no eterno recomeçar das semanas pelos meses do ano, “grandes homens” e “heróis” são lembrados e reverenciados. Uns clamam por orações. Outros por demonstrações de patriotismo.
Atentas à origem etimológica de calendário que vem do “grego kalein, que significa chamar em voz alta, convocar”1, chamamos e somos chamadas a celebrar algo que não está em nenhuma agenda, almanaque ou folhinha. Trata-se do centenário da Escola Regional de Merity, que poderia passar despercebido em meio às homenagens realizadas pelo centenário de nascimento de Paulo Freire, nosso patrono da educação.
Fundada por Armanda Álvaro Alberto em Merity, então distrito do município de Iguaçu (atualmente território do município Duque de Caxias), em um momento de efervescência política que antecedeu a celebração do Centenário da Independência – evento que mobilizou a sociedade brasileira e os educadores – desde o início atraiu a atenção daqueles que defendiam a educação como a grande causa nacional. O trabalho desenvolvido na zona rural fluminense se projetou na cena educacional do país na medida em que, no momento de valorização social da infância, traduziu um novo olhar para a criança que inspirava a mais do que instruir, educar, o que implicava em propiciar no cotidiano da sala de aula a observação e a experimentação.
A educadora trazia como experiência pedagógica os anos de magistério no Colégio Jacobina, um ensaio de escola ao ar livre para filhos de pescadores, que iniciara em Angra dos Reis, em 1919, e a inserção no debate educacional em alguns espaços sociais nos quais as mulheres começavam a atuar de modo mais intenso: a Associação Cristã Feminina, o Instituto Central do Povo, a Liga Brasileira Contra o Analfabetismo, e a Federação Brasileira para o Progresso Feminino.
Ainda que, em 1921, não tivesse um modelo a seguir, como afiançava, desejava propiciar a educação integral em um ambiente vivo, alegre e apropriado aos interesses das crianças, capaz de despertar a curiosidade, a liberdade e o prazer da descoberta. Concretizava o desejo de colocar em prática métodos de ensino que tomassem a criança como centro do processo ensino-aprendizagem, em sintonia com modelos pedagógicos que circulavam mundo afora. Apropriando-se do ideário de Pestalozzi, Maria Montessori, John Dewey e tantos outros, ela procurou constituir um sistema próprio de ensino que mereceu de Lourenço Filho uma observação sobre a singularidade do trabalho desenvolvido:
Inspirada a princípio em Montessori, Armanda Alberto organizou, em breve, um sistema próprio, visando não só a educação das crianças, mas a dos pais dos alunos, problema muito particular às nossas populações rurais que não lhe escapou do espírito arguto. (Lourenço Filho, 1978, p. 176)
Assim, além de ser um laboratório de pedagogia prática, voltava-se para a comunidade, sendo o centro da sua vida cultural. Tais características foram se constituindo aos poucos em colaboração com Edgar Sussekind de Mendonça, Francisco Venâncio Filho, Heitor Lyra, Delgado de Carvalho e Belisário Penna que, dentre outros, participaram da construção física e simbólica de uma escola diferente, atenta ao desenvolvimento infantil e à realidade social na qual estava inserida.
A longevidade da escola que resistiu ao tempo, à falta de recursos financeiros, à prisão política de sua fundadora e ao descaso de governantes, a partir do final dos anos de 1980, quando Armanda Álvaro Alberto já havia falecido, chamou a atenção de pesquisadores e pesquisadoras que se voltaram para investigar a Associação Brasileira de Educação, os signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, a União Feminina do Brasil, a Aliança Nacional Libertadora, a Sociedade dos Amigos de Alberto Torres, a Baixada Fluminense, a disseminação do ideário escolanovista, os intelectuais da educação, as mulheres que se dedicaram ao magistério, o debate entre católicos e pioneiros, os movimentos feministas, os processos de escolarização, as campanhas de alfabetização, dentre tantos temas. Muitos deles estão aqui reunidos em torno deste lugar de memória da educação brasileira.
De olho no calendário que clama por uma comemoração, professores e professoras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Universidade Federal do Estado de São Paulo, (UNIFESP), Universidade Estácio de Sá (UNESA), Universidade do Grande Rio (UNIGRANRIO), Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), Colégio Pedro II, professores das redes públicas dos municípios de Duque de Caxias e Rio das Ostras e dirigentes do Centro de Pesquisa, Memória e História da Educação da Cidade de Duque de Caxias e Baixada Fluminense (CEPEMHEd) atenderam ao apelo para participar deste dossiê de Linhas dedicado ao centenário da Escola Regional de Merity. São autores de dissertações e teses, alguns transformados em livros, e aqueles que, atuando no município onde a escola foi construída, têm se interessado por uma história da educação local que fuja dos marcos políticos, dos grandes homens, da legislação ou das reformas de ensino.
Voltados para os sentidos da comemoração do centenário da escola, os dois primeiros artigos se constituem em inventários do vivido e do investigado. Em “Razões para comemorar: o legado das festas de aniversário da centenária Escola Regional de Merity”, Ana Chrystina Mignot mergulha em fotografias, depoimentos orais e documentos oficiais que registram celebrações que marcam a existência da escola e entendendo que comemoração não diz respeito a compilar de modo idílico o passado, propõe alguns desafios que se colocam para interpelar o presente e projetar um futuro no qual a educação possa ser um direito assegurado para todos. Amália Dias, Angélica Borges e Marcos Cesar de Oliveira Pinheiro, em “Grande Sertão Baixada e as veredas da Historiografia da Educação local”, mapeiam estudos acadêmicos sobre Armanda Álvaro Alberto e a Escola Regional de Merity apontando terem sido estes a instituir “uma vereda para a escrita da história da educação da Baixada Fluminense”. No balanço que efetuam identificam que, a partir de então, o campo de estudos de história da educação na Baixada Fluminense se ampliou. A interpretação da produção acadêmica realizada tem como horizonte assinalar questionamentos, lacunas e indicar aspectos que ainda não foram explorados.
Para compreender a visibilidade alcançada por esta escola particular, rural e sem fins lucrativos se faz necessário observar os espaços de atuação nos quais Armanda Álvaro Alberto teve especial participação, visto que neles pôde indicar, explicitar e discutir sua compreensão sobre a educação, a escola e o papel dos educadores. Em “A Escola Regional de Meriti e os debates de política educacional constitutivos da Associação Brasileira de Educação nos anos 1920”, Marta Chagas de Carvalho examina as concepções de política educacional que foram partilhadas pelos educadores que compunham o Conselho Diretor da ABE e que foram idealizadores da escola: Armanda Álvaro Alberto, Edgar Sussekind de Mendonça, Heitor Lyra da Silva e Francisco Venâncio Filho. A autora se detém em especial na interlocução com o Estado. Partindo de documentos da Comissão de Censura Cinematográfica, que pertenciam ao acervo do SEMEAR, do Arquivo do Museu Nacional e da Revista Nacional de Educação, Ana Gabriela Saba de Alvarenga em “A experiência de Armanda Álvaro Alberto na Comissão de Censura Cinematográfica”, discute a participação da educadora nesta comissão instituída pelo Decreto 21.240 de 1932. Para tanto, examina o papel do cinema educativo, seu uso no ambiente escolar e na composição das demais práticas escolares. Procura, ainda, identificar os pontos de convergência e divergência que perpassam o debate e, em particular, o posicionamento por ela assumido.
O que singulariza esta escola rural, particular, gratuita e sem fins lucrativos? Iniciando a resposta a esta questão, no artigo “A experiência educacional e sanitária da Escola Regional de Meriti: modernização e regionalismo num sertão próximo à Capital (1921-1932)”, Júlio Cesar Paixão Santos instiga a refletir sobre as atividades desenvolvidas nos dez primeiros anos de funcionamento da escola. Destaca as estratégias adotadas que permitiram passar de uma experiência local a um exemplo a ser multiplicado país afora. Assim, de uma experiência educacional no sertão, passa “a se constituir como um exemplo de possibilidade de educar e sanear os sertões e os sertanejos”.
Vilma Corrêa Amancio da Silva e Cláudia Alves, por sua vez, em “Trabalhos Manuais e a Regional de Meriti: o entalhe como ofício e a criação como profissão”, tomam os relatórios anuais como fonte privilegiada e focalizam o trabalho na Oficina Heitor Lyra por José Montes, professor convidado por Armanda Álvaro Alberto, em 1954, a ensinar, na escola que dirigia. Na operação historiográfica situam o trabalho ali realizado no currículo primário brasileiro, tomando como referências estudos de Corinto da Fonseca e de Manoel Penna, sobre a disciplina Trabalhos Manuais e sua relação com a Escola Ativa.
Como a escola se transforma em experiência a ser replicada é o objeto de análise de Caruanã Guatara Oliveira Frescurato e Fernando César Ferreira Gouvêa em “Entre correspondências e fotos: a Escola Regional de Meriti como modelo para a criação de novas instituições educacionais”, quando identificam outras iniciativas que emergiram inspiradas na escola de Armanda Álvaro Alberto: a Escola Municipal Sagrada Família de Nazareth, no distrito de Andrade Costa, na zona rural do município de Vassouras, no estado do Rio de Janeiro; o Ateneu Aprazivelense, em Monte Aprazível, interior do estado de São Paulo; a Escola Rural Modelo de Tigipió, na cidade de Aracoiaba; e a Escola Normal Rural de Juazeiro do Norte (ENRJN), ambas no Ceará.
Já no artigo “Sarau Janelas Floridas: (re)existências na educação e na arte”, Luciana Alves Pires e Vanusa Rodrigues da Silva elegem examinar as lutas contemporâneas contra a construção de um shopping no entorno da escola, quando diversas entidades e atores sociais se apropriaram do nome do Concurso Janelas Floridas, idealizado por Armanda Álvaro Alberto, que premiava, a partir de 1923, as casas melhor ornamentadas da cidade. As autoras, que lecionam na atual Creche Escola Municipal Dr. Álvaro Alberto inventariam como a defesa da escola como patrimônio é trabalhada junto à comunidade escolar, especialmente com as crianças. A Escola Regional de Meriti, com a força de sua memória inspirava mais do que outras escolas, a luta por sua manutenção enquanto patrimônio.
A resenha escrita por Eliana Laurentino nos convida a conhecer a diversidade da produção sobre a escrita da história da Baixada Fluminense e de sua cena cultural, a partir do livro que apresenta a tese de Tania Amaro Almeida, que versou sobre as representações literárias de Francisco Barboza Leite acerca do município de Duque de Caxias entre as décadas de 1950 a 1990.
Uma entrevista com Marluce Souza Andrade, diretora executiva do Centro de Pesquisa, Memória e História da Educação da Cidade de Duque de Caxias e Baixada Fluminense (CEPEMHEd) realizada em abril de 2021 por Amália Dias, encerra o dossiê que apresentamos nesta conceituada revista. Nela o esforço coletivo por reunir, higienizar e classificar documentos está presente.
Em setembro, mês em que sempre se comemorou o aniversário da escola, estamos em festa e lançamos um repto aos leitores e leitoras de Linhas para que se juntem à celebração do centenário da Escola Regional de Merity, atual Creche-Escola Municipal Dr. Álvaro Alberto, sonho de uma mulher que dedicou sua vida às crianças pobres, negras e descalças de Duque de Caxias, que se tornaram homens e mulheres que souberam honrar a memória da escola de muitos modos: dando o nome de sua fundadora a outras instituições de ensino da cidade, criando o Cineclube Mate com Angu ou protegendo o prédio escolar construído a partir de esboço do arquiteto Lúcio Costa quando se manifestam e assinam manifestos para evitar a demolição do entorno.
Ergamos nossas vozes em defesa da educação, da liberdade, da democracia e da justiça social, numa homenagem à escola. Como lembra o poeta, “o teu aniversário é um nascer a toda hora” e, por iss o, ela não se encerra no último dia do calendário de 2021. Assim, nos dias, nas semanas, nos meses e nos anos que virão, temos o compromisso de exigir a educação como um direito, direito este que ainda sonhamos ver conquistado e cuja conquista depende sempre e cada vez mais da luta de cada um e de todos nós.
Viva a Escola Regional de Merity!!! Viva Armanda Álvaro Alberto!!!
(Primavera de 2021)
Nota
1 https://www.dicionarioetimologico.com.br/calendario/
Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de, 1902-1987. O tempo passa? Não passa. In. Amar se aprende amando: poesia de convívio e de humor 1a ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2018. (Coleção Carlos Drummond de Andrade).
LOURENÇO FILHO, Manoel B. Manoel Bérgson. Introdução ao estudo da Escola Nova: bases, sistemas e diretrizes da pedagogia contemporânea. São Paulo: Melhoramentos, 1978. (12ª edição).
Organizadores
Ana Chrystina Mignot
Amália Dias
Referências desta apresentação
MIGNOT, Ana Chrystina; DIAS, Amália. Apresentação. Linhas. Florianópolis, v. 22, n. 50, p. 05-11, set./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]
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