Censura ao cinema nas ditaduras ibéricas | Ler História | 2021

1 Desde o início da história da imagem em movimento esta, à semelhança do que sucedeu com as performances teatrais, foi alvo de censura, não apenas em Portugal e Espanha mas em todos os países que a exibiam. A censura ao cinema existiu desde a origem do próprio cinema e, como argumenta Annette Kuhn (1988, 127) no seu estudo sobre a censura aos filmes no início do século XX, é um fenómeno complexo que deve ser entendido enquanto processo, na medida em que alia e resulta de diversas forças censórias que acabam por convergir. Neste sentido, e este é um aspecto comum a todos os países onde existiu censura ao cinema, e como os três artigos deste dossier concretamente demonstram, a censura não se pode reduzir a um conjunto de instituições e actividades institucionais predefinidas, mas está sujeita a constantes mudanças nos discursos, leis e práticas institucionais. Sue Curry Jansen (1991, 221) vai ao encontro destas reflexões definindo censura como um conceito que engloba todas as prescrições socialmente estruturadas que inibem ou proíbem a disseminação de ideias, imagens, informações, etc., obstruções estas que podem ser asseguradas por qualquer sistema de autoridade.

2 Todos os regimes ditatoriais em que vigorou a censura legislada a todas as formas de expressão artística tentaram controlar o discurso público, legitimando certas vozes e relegando outras ao silêncio, impondo deste modo a ideologia vigente e advogando a protecção dos valores da sociedade. Como bem demonstra a obra seminal de Marwick (1998), quando estuda a Inglaterra, França, Itália e Estados Unidos durante os mesmos anos em análise neste dossier, cada um dos referidos países apresenta características específicas no que se refere aos seus próprios sistemas de censura ao cinema e às diversas formas de expressão artística e o mesmo é válido para Portugal e Espanha. Porém, apesar de nos anos em estudo grande parte da Europa e do mundo ocidental viver em regimes autoritários, nos quais vigoravam sistemas de censura impostos pelo estado, estes não foram imunes a um vasto número de actividades inovadoras que ocorreram nos anos 60, de forma simultânea e numa aceleração e interacção sem precedentes (Marwick 1998, 6-7). Esses movimentos culturais e sociais já vinham sendo adivinhados nas décadas anteriores, mas consolidaram-se e desenvolveram-se nos anos 60, ocorrendo independentemente das conjunturas políticas dos vários países onde se verificaram e prevaleceram (Marwick 1998). Os três artigos do presente dossier mostram especificamente como estas conjunturas alteraram os critérios das comissões de censura às imagens em movimento, tanto em Portugal como em Espanha.

3 Apesar das mudanças ocorridas de forma acelerada nos anos 60, os modelos dominantes das ditaduras do século XX, no que se refere às instituições, ao seu funcionamento e chefes de estado, apresentam aspectos comuns, a que as ditaduras ibéricas não foram alheias, inspirando-se em parte, como outros regimes idênticos, no fascismo italiano e no nacional-socialismo alemão. Como explicita António Costa Pinto (2012, 20), são caracterizados por “uma liderança personalizada, o partido único ou dominante e as instituições políticas técnico-consultivas”. Como refere em seguida, tendo também em mente a Espanha franquista, “mais de metade das 172 ditaduras do século XX que foram iniciadas por militares, partidos, ou por uma combinação de ambos, foram, total ou parcialmente, personalizadas num período de três anos depois da tomada de poder”.

4 No que respeita especificamente às ditaduras ibéricas, estas desde cedo perceberam a relevância social e cultural do poder da imagem em movimento, que se transmitia na ficção, nomeadamente através do cinema, mas também nos noticiários, supostamente veículos de in(formação) do que sucedia nos dois países. Os três artigos apresentam perspectivas comparadas da forma como os mecanismos de controlo das imagens em movimento eram exercidos em Portugal e Espanha, e como neles influíram as personalidades tanto de Oliveira Salazar, como de Marcelo Caetano e de Franco. Esta abordagem é necessária e inédita. Se existem estudos em Portugal sobre a ditadura de Franco, investigações em Espanha sobre o Estado Novo português e também estudos que comparem ou relacionem o modo de actuação dos dois regimes, especificamente sobre a censura à imagem em movimento nos dois países ibéricos, em relação com o pensamento político de seus líderes, nunca se fez um estudo conjunto e comparado. Apenas existem os trabalhos de Morais (2013, 2018 e 2017), nos quais é feito, por um lado, um estudo comparado nos países ibéricos sobre a censura aos filmes espanhóis e iberoamericanos no final das ditaduras e, por outro, uma introdução geral aos dois sistemas de censura ao cinema.

5 No artigo centrado no estudo da censura franquista ao cinema patriótico, referente à Guerra Peninsular, Josefina Martínez Álvarez também faz referência à censura aos filmes históricos, incluindo as co-produções hispano-portuguesas, analisando a actução dos censores sobre aqueles filmes que, segundo o ideário político franquista, deveriam conter as mais significativas representações do espírito espanhol: os que recriavam a maior gesta pátria do século XIX, a Guerra Peninsular. Também se aproximam do tema os trabalhos de Maria do Carmo Piçarra (2006, 2011 e 2020), nos quais analisa, sobretudo, o Jornal Português de Actualidades Filmadas sendo que, no seu último livro, sobre o cinema ambulante durante o salazarismo e o cinema de propaganda, faz também referência ao tema da censura ao cinema. O mesmo sucede com a tese de doutoramento de Albina Luciani Albuquerque (2014), centrada no noticiário cinematográfico Actualidades NO-DO para o Brasil entre 1950 e 1961. Muito recentemente foi também publicado o artigo de Ana Cabrera, Carla Baptista e Clara Sanz-Hernando (2020), mas trata-se de uma investigação centrada na cobertura que os jornais ibéricos fizeram à viagem oficial de Marcelo Caetano a Espanha em 1970, e não nos noticiários cinematográficos.

6 Embora no título do dossier se aluda ao cinema, o que propomos analisar e divulgar centra-se num estudo comparado da censura às imagens filmadas que incluem a ficção (cinema) e a não ficção (notícias cinematográficas), durante as ditaduras ibéricas. Ou seja, as imagens filmadas, bem como o teatro, são meios de expressão artística e/ou de divulgação que implicam um contacto directo com o público. O que perturbava o poder instituído era o modo como o público era envolvido e influenciado pelas imagens e a forma como estas, por sua vez, podiam desencadear efeitos no seu comportamento. A estrutura do dossier é cronológica e temática, começando no primeiro artigo com a análise dos mecanismos da censura ao cinema em Espanha, no início da ditadura; passando no segundo artigo para uma perspectiva comparada das relações entre Portugal e Espanha, no que respeita à censura efectuada ao Jornal de Actualidades NO-DO; e terminando no último, com a análise do que sucedeu no final dos regimes franquista e marcelista, no que respeita à censura ao cinema, em ambos os países, unindo a imagem captada do real à imagem ficcionada.

7 Os três artigos incidem sobre o marco político, nacional e internacional, dos regimes ditatoriais (1933-1975), nos dois países ibéricos, e a sua influência nos mecanismos de controlo das imagens em movimento. O primeiro, de Fátima Gil Gascón, centra-se no estudo da censura cinematográfica na Espanha franquista entre 1939 e 1959, analisando as estruturas políticas e sociais que condicionavam o que era permitido ver ao longo das duas primeiras décadas do regime de Franco. Corroborando o que será também demonstrado nos dois artigos seguintes, o cinema em Espanha era alvo de um controlo muito apertado por parte da Junta Superior de Censura Cinematográfica e da Comisión Nacional de Censura Cinematográfica, por constituir um meio com uma enorme influência social; também por esse motivo foi, desde logo, aproveitado para transmitir a propaganda do regime. O seu artigo mostra também a influência determinante da Igreja católica nos círculos do poder em Espanha, originando a censura privada a par da estatal; como Fátima Gil Gascón demonstra, ambas coexistiram na Espanha franquista.

8 Em seguida, o artigo de Josefina Martínez Álvarez procede a um levantamento inédito sobre a censura portuguesa ao Jornal de Actualidades/NO-DO, um serviço espanhol de notícias cinematográficas especialmente dirigido para o mercado português. O seu estudo mostra que em Portugal, quando foi criado o Fundo do Cinema Nacional em 1948, com a finalidade de apoiar a função educativa e social do cinema, em colaboração com a distribuidora portuguesa de filmes Doperfilme, a direcção espanhola do NO-DO (abreviatura de Noticiarios y Documentales) concebeu a abertura de uma delegação em Lisboa. Esta iniciativa, como demonstra a autora, obteve um enorme êxito, na sua implementação e continuidade. Por fim, o artigo de Ana Bela Morais incide na comparação entre os mecanismos de censura ao cinema, em Portugal e Espanha, no período final das ditaduras (1968-1975). A sua investigação, recorrendo a exemplos de processos de censura que se encontram nos arquivos nacionais portugueses e espanhóis, mostra que eram mais as semelhanças do que as diferenças, na estrutura organizativa da Comissão de Censura e nos mecanismos de censura aos filmes nacionais e internacionais, que chegavam aos dois países, sendo que o factor económico, já nesse período da história peninsular, era determinante.

9 Os três artigos demonstram como os dois regimes, o Estado Novo português e o franquismo, embora com algumas diferenças, acabaram por convergir no essencial no que respeita à censura às imagens em movimento. Como na maioria dos países, em Portugal e Espanha o cinema tinha-se convertido no veículo por excelência da propaganda e os noticiários eram a sua porta-voz. Os três artigos convergem também no modo como descrevem e comparam todo o processo de censura e classificação etária nas duas vertentes em análise: no cinema em Portugal e Espanha e no noticiário de imagens filmadas NO-DO. Também os três evidenciam os aspectos que eram mais censurados (e até mesmo proibidos) em Portugal e Espanha ao longo das ditaduras, mostrando como podiam sofrer alterações ao longo dos anos, dependendo dos acontecimentos e contextos políticos e sociais. A principal diferença política entre Portugal e Espanha e a que mais condicionou a censura às imagens em movimento, de ficção ou noticiário filmado, diz respeito ao modo de entender as províncias ultramarinas. Enquanto Portugal insistiu até ao fim em manter as suas colónias, negando-lhes a independência, tal não sucedeu com Espanha. Por este motivo, vários temas relacionados com movimentos independentistas (dentro e fora dos países ibéricos) foram mandados cortar ou mesmo proibir para exibição em Portugal, tanto nos noticiários NO-DO (cf. artigo de Josefina Martínez Álvarez), como no cinema (cf. artigos de Ana Bela Morais e Fátima Gil Gascón).

10 O objectivo deste dossier é, assim, perceber como a geopolítica e a geoestratégia dos governos dos regimes autoritários, assim como a trajectória e a ideologia dominante nos dois países ibéricos, tentaram controlar o que era visto e ouvido pelo público da época. Como os três artigos poderão comprovar, sob uma perspectiva comparada entre os dois países ibéricos, no que respeita às imagens em movimento, no tempo das ditaduras, as sensibilidades dos dois países sobre diferentes assuntos a serem exibidos divergiam consoante os interesses do momento. Relacionando o artigo de Fátima Gil Gascón com o de Ana Bela Morais, podemos concluir que apesar de haver uma maior preocupação em Espanha com a proibição de imagens e sequências nos filmes que punham em causa a religião católica e a moral, neste mesmo país, numa fase mais avançada do franquismo, eclodiu o movimento do “el destape”, por oposição a Portugal que, apesar de uma ligeira abertura nos critérios, também na fase final do marcelismo, nunca permitiu que movimento semelhante surgisse. E, como demonstra o artigo de Josefina Martinez Álvarez, podemos concluir que estas sensibilidades distintas sobre o que era permitido ser ou não ser exibido traduzem diferenças muito mais significativas nas notícias filmadas do que nos filmes de ficção. Tal facto pode explicar-se porque as reportagens do Jornal de Actualidades, ao serem vistas e ouvidas por um maior número de espectadores do que o cinema de ficção, podiam influenciar de uma maneira mais directa e insidiosa a sua mentalidade. Também por motivo semelhante, o teatro era mais censurado do que o cinema. Assim, baseando-se e recorrendo a documentação de arquivo, grande parte inédita, presente nos arquivos nacionais de ambos os países ibéricos, os três artigos demonstram que, até ao fim das ditaduras, Portugal e Espanha fizeram o possível para serem eficazes no controlo do que era visto e ouvido pelo público da época.

Referências

ALBUQUERQUE, Albina Luciani (2014). El noticiario cinematográfico Actualidades NO-DO para Brasil (1950-1961). Madrid: Universidad Rey Juan Carlos (Tese de doutoramento).

BAPTISTA, Carla; Cabrera, Ana; Sanz-Hernando, Clara (2020). “Entre la censura y la propaganda: la cobertura de periódicos españoles y portugueses del viaje oficial de Marcelo Caetano a España en 1970”. Revista Latina de Comunicación Social, 77, pp. 73-94.

JANSEN, Sue Curry (1991). Censorship: The Knot That Binds Power and Knowledge. Oxford: Oxford University Press.

KUHN, Annette (1988). Cinema, Censorship and Sexuality, 1909-1925. London: Routledge.

MARTÍNEZ Álvarez, Josefina (2014). “La censura franquista ante el cine patriótico: el caso de la Guerra Peninsular”, in Atas do Congresso Internacional Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013. Lisboa: Centro de Investigação Media e Jornalismo, pp. 82-96.

MARWICK, Arthur (1998). The Sixties. Cultural Revolution in Britain, France, Italy and the United States, c.1958-c.1974. Oxford: Oxford University Press.

MORAIS, Ana Bela (2013). “La censura cinematográfica en España y en Portugal: una primera aproximación”, in J. F. F. Casals, P. Numhauser (eds), Escrituras silenciadas. El paisaje como historiografia. Alcalá de Henares: Universidad de Alcalá, pp. 61-66.

MORAIS, Ana Bela (2017). “Censorship in Spain and Portugal of Spanish and Latin American Films (1968-1974): A Comparative Perspective”. Interlitteraria, 22 (1), pp. 93-106.

MORAIS, Ana Bela (2018). “Cine y censura en la Península Ibérica: el caso de las películas hispano-americanas (1968-1974)”, in J. F. F. Casals, P. Numhauser, M. Orfali (eds), Escrituras silenciadas. Heterodoxias y disidencias en la península ibérica y América. Alcalá de Henares: Universidad de Alcalá, pp. 375-381.

PIÇARRA, Maria do Carmo (2006). Salazar Vai ao Cinema: O Jornal Português de Actualidades Filmadas. Coimbra: Minerva.

PIÇARRA, Maria do Carmo (2011). Salazar Vai ao Cinema II. A “Política do Espírito” no Jornal Português. Lisboa: DrellaDesign.

PIÇARRA, Maria do Carmo (2020). Projectar a Ordem. Cinema do Povo e Propaganda Salazarista. 1935-1954. Caxias: Os Pássaros.

PINTO, António Costa (ed) (2012). Governar em Ditadura. Elites e Decisão Política nas Ditaduras na Era do Fascismo. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.


Organizadora

Ana Bela Morais – CEC, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Portugal. E-mail: anabmorais@campus.ul.pt


Referências desta apresentação

MORAIS, Ana Bela. Censura ao cinema nas ditaduras ibéricas: introdução. Ler História. Lisboa, n.79, p.9-15, 2021. Acessar publicação original [DR]

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