No ano do centenário do educador Paulo Freire convidamos a todos arqueólogos e especialistas nas temáticas do patrimônio, memória e educação a colaborar com a construção de reflexões sobre as relações entre a Educação e Cultura Material, promovidas em ambientes escolares ou não, como práticas de liberdade. Paulo Freire foi recebido como subversivo por alguns setores da sociedade ao longo de toda sua vida como educador e, ainda nos dias de hoje, é rejeitado por determinados campos de poder. O que em sua obra e em nossas práticas pode tornar a educação tão perigosa? Qual o potencial de uma educação partilhada atrelada à cultura material? A educação como prática da liberdade seria capaz de romper a existência do “homem simples esmagado, diminuído e acomodado (…) tragicamente assustado, temendo a convivência autêntica e até duvidando de sua possibilidade” (Freire, 1967: 44)? Seria capaz de desnudar a sociedade como meio para desvendá-la e permitir uma compreensão ativa e atuante sobre os contextos políticos e históricos no qual nos inserimos (Freire, 1986: 15/17)? A educação como prática da liberdade mantém-se como um tema atual e urgente.
Finalizando o dossiê, podemos abertamente afirmar que a proposta temática foi bem recebida pelos arqueólogos, educadores, historiadores, gestores públicos, entre outros especialistas no campo da memória, patrimônio e cultura material. No total, foram aprovados doze textos, entre artigos, entrevista e uma tradução inédita de uma entrevista dada por Paulo Freire, em Geneva, no ano de 1970. Em comum, os textos trazem como eixo central a reflexão ativa sobre cultura material, educação e liberdade. A temática é provocadora, e, claro, serve como uma plataforma para a construção de novos diálogos e práticas de ação. Nessa edição, portanto, você encontrará a seguinte estrutura:
No primeiro artigo, de autoria de María Fernanda Ugalde e Oswaldo Hugo Benavides (UGALDE;BENAVIDES, 2021) é feito uma importante reflexão sobre as teorias freiriana, em particular sobre a educação como prática da liberdade e suas detalhadas propostas metodológicas na “Pedagogia do oprimido”, que podem ser articuladas e implementadas para questionar e subverter diferentes campos do conhecimento, do poder histórico intelectual e social. Entre esses campos está o da arqueologia, sobre o qual os autores pontuam que é preciso entender, processar e ter mais consciência de que os arqueólogos não são os que sabem o que aconteceu no passado e menos ainda como isso deve nos impactar no presente “Lo nuestro es muy detenidamente aprender de nuestro método dialógico y colaborativo para ver dónde están los miedos y el peligro, y seguir ahondando por ahí”.
O artigo Paulo Freire e Arqueologia: Uma Experiência da Abordagem da Diversidade Cultural em Contextos Escolares, por sua vez traz reflexões sobre as contribuições de Paulo Freire para a promoção de um conhecimento arqueológico sobre a diversidade cultural construído com o público escolar. Sendo apresentado as principais atividades desenvolvidas no âmbito do projeto de extensão “Ações Educativas do Projeto Arqueologia e Educação: questões de diversidade no Ensino Fundamental I”, realizado no ano de 2018, que surge como de atividades de pesquisadores do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Memória, Cultura e Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais, UEMG/Poços de Caldas, e teve como intuito oficializar as ações educativas realizadas em escolas desde 2012. Tendo como fio condutor os dizeres da lei 11.645/08, com enfoque baseado nos pressupostos da Arqueologia Pública, as ações realizadas buscaram levar à educação escolar diferentes abordagens sobre diversidade cultural e patrimônio arqueológico. Entre seus resultados os autores destacaram
ampliação do debate sobre a diversidade cultural na educação com os discentes do curso de Pedagogia e professores da rede pública municipal, assim como a reafirmou a busca pela desconstrução de estereótipos acerca das identidades afro-brasileiras e indígenas.
Cláudio Baptista Carle, no artigo Caminhando com encantados: o aprender fazendo e as ideias libertadoras de Paulo Freire na formação de arqueólogos no Rio Grande do Sul, segue expressa o aprendizado de arqueologia que apresenta a formação arqueológica de professores que sem a intenção promoviam uma educação freiriana interacionista, libertadora e emancipatória na arqueologia. Os exemplos citados são os professores Bartomeu Meliá, Guilherme Naue, Fernando La Sálvia, Daniel Gargnin e André Jacobus, que, como investigadores e formadores, atuaram para além institucionalizado de ensinar teórica, avançaram para uma prática do fazer arqueológico. Premissa importante de formação de arqueólogos no Brasil que antecedeu em paralelo a formação institucional que se desenvolvia em apenas uma instituição de ensino do país. Essa formação de aprender fazendo é peculiarmente uma forma discutida a enfrentada por Paulo Freire nos estudos da Andragogia (que em seu tempo ainda falava em Pedagogia).
Para João Lorandi Demarchi o patrimônio cultural é um campo de disputa, onde os grupos sociais que compõem a elite brasileira influenciaram os critérios que legitimam o que pode ser reconhecido como patrimônio e, por consequência, se beneficiam dessa valoração. A educação bancária voltada a este patrimônio reforça o poder simbólico dos bens protegidos, enquanto serve para justificar a dominação de uns sobre os outros. Desse modo, no artigo Patrimônio-Gerador: perspectivas de Paulo Freire no patrimônio cultural, o autor busca, com base no referencial teórico de Paulo Freire, denunciar as situações-limite do patrimônio e da chamada educação patrimonial. Ao mesmo tempo em que pretende anunciar as centelhas de possibilidades de atuação para um patrimônio transformador e dialógico contido em textos oficiais a partir da Constituição de 1988. Na construção teórica dessa perspectiva democrática, é apresentado o conceito de patrimônio-gerador, baseado na teoria de Paulo Freire.
No artigo Educação patrimonial e processo pedagógico: dialogando com Paulo Freire e aprendendo com os povos indígenas os autores apresentam o resultado de um estudo, que teve como objetivo compreender o processo educativo proposto no Projeto Aprendendo com os Povos Indígenas (PACPI) e as contribuições da Arqueologia para a aprendizagem e o reconhecimento do patrimônio cultural, a valorização das identidades e percepções de ambiente e natureza dos povos indígenas, por parte dos estudantes participantes. O público-alvo do projeto foram crianças do Primeiro Ano do Ensino Fundamental I do Colégio UNESC, localizado no município de Criciúma, SC, no ano de 2018, que segundo os autores a experiência contribuiu para compreender que
Para que aconteça uma aprendizagem significativa, é necessário constituir a prática educativa considerando que os conhecimentos precisam ser vivenciados por meio de contextualização e ancorados em estudos científicos. Práticas educativas colaborativas, fornecem ao educando, as ferramentas de reflexão crítica sobre os significados de diferentes culturas, levando-os a problematizar os aspectos materiais e imateriais na construção de uma valorização e reconhecimento patrimonial, mas também das pessoas, de suas culturas, de suas tradições e seus costumes.
Cristina Santos Lucio, no artigo Educação patrimonial e processo pedagógico: diálogos entre a educação patrimonial e Paulo Freire (SCHIAVETTO et al, 2021), aborda a Educação Patrimonial no Brasil tendo como base a análise de documentos produzidos pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Utilizando-se de revisão bibliográfica de estudos de pesquisadores sobre o tema enquanto metodologia, a autora parte da problematização da relação da educação patrimonial como prática de liberdade. O resultado da sua pesquisa consistiu em apresentar discussões de termos desenvolvidos por Paulo Freire para pensar uma educação patrimonial crítica, inclusiva e democrática em oposição a uma educação patrimonial conservadora.
A pesquisa desenvolvida por Ana Paula Moreira Pinto Duarte e José Luiz Lopes Garcia (MOREIRA PINTO DUARTE; LOPES GARCIA, 2021) apresenta a Educação Patrimonial associada ao licenciamento ambiental como referente a um conjunto de ações educativas que visam a criação de diálogos entre a comunidade detentora do patrimônio cultural e a equipe de execução do trabalho de campo e laboratório em Arqueologia. Sendo considerada como uma ferramenta fundamental para o fortalecimento da autoestima, da identidade e preservação das memórias, cujas contribuições de Paulo Freire (1921-1997) são basilares para se pensar metodologicamente à Educação Patrimonial. Assim o artigo discutiu os resultados do Programa de Educação Patrimonial do Projeto de Resgate, Monitoramento Arqueológico e Educação Patrimonial da Linha de Transmissão de 138kV Barbosa Ferraz – São Pedro do Ivaí, realizado nos municípios de São Pedro do Ivaí, São João do Ivaí e Barbosa Ferraz – PR. Como um exemplo de programa fundamentado teoricamente e metodologicamente nas contribuições de Paulo Freire, tendo como princípio norteador o estabelecimento de uma educação democrática, libertadora e dialógica.
Leonardo Waisman de Azevedo e Rita Scheel-Ybert (WAISMAN DE AZEVEDO; SCHEELYBERT, 2021) afirmam que a arqueologia possui um grande potencial de contribuição ao ensino escolar em seu artigo Histórias em diálogo no ensino escolar: contribuições possíveis da arqueologia brasileira. Para os autores os paradigmas contemporâneos da disciplina dialogam com as teorias e diretrizes correntes da educação, na medida em que ambos buscam explorar e compreender aspectos da diversidade de histórias e identidades estabelecidas nas relações sociais, e que ambos buscam a elaboração de raciocínios através de diversas disciplinas. Em particular com a arqueologia, visto que para os autores
A arqueologia contribuiu para a opressão, mas ainda pode contribuir para a emancipação dos povos (LIMA, 2007), se no fogo cruzado escolhermos colocá-la a serviço da justiça social. O mecanismo que propomos para isso está na interface entre arqueologia e educação (WAISMAN DE AZEVEDO; SCHEEL-YBERT, 2021).
O resultado de uma pesquisa realizada no âmbito do Mestrado Profissional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) é o tema do artigo de onde José Lassance (LASSANCE, 2021), que, por meio de uma análise bibliográfica examina, os Projetos Integrados de Educação Patrimonial (PIEP) na alçada da Instrução Normativa IPHAN nº 001/2015. O objetivo foi traçar um panorama conceitual dos PIEPs por meio das referências utilizadas pelos projetos, a fim de identificar potencialidades e fraquezas no desenvolvimento da Educação Patrimonial no contexto do Licenciamento Ambiental, mais especificamente no campo da Arqueologia, tendo como recorte projetos disponíveis na base de dados do SEI/IPHAN-RS. Foi apontado durante o texto alguns dos problemas identificados e sugerimos uma maior aproximação entre as cadeias operatórias da Arqueologia e da Museologia, com foco nas atividades educativas, como metodologia para a comunicação dos conhecimentos gerados nas pesquisas. Para tanto o autor contrapôs o embasamento bibliográfico utilizado para o desenvolvimento dos PIEPs com conceitos da Educação Patrimonial, da Comunicação Museológica apoiados em Cury (2005) e visões progressistas sobre a Educação, utilizando para tal as teorias de Paulo Freire (2006) e Martín-Barbero (1998).
De acordo como o artigo Arqueologia Pedagógica: reflexões teóricas e conceituais, elaborado por Danielle Gomes Samia (SAMIA, 2021), a arqueologia no Brasil, vem sendo desenvolvida em geral desconectada das práxis pedagógicas. Sendo que o objetivo do artigo foi alcançar uma proposta para reduzir essa desconexão, com fomentação da pedagogia arqueológica articulada à correntes teóricas para o desenvolvimento de conteúdos que proporcionem autonomia. Segundo a autora,
Esta fomentação perpassa pelo entendimento que a pesquisa arqueológica, não é uma atividade tecnicista, e que deve ser integrada as humanidades com a promoção de interações que proporcionem conexões com as pessoas e suas memórias, ancestralidades e práticas. Sendo necessário compreender que a pedagogia arqueológica não deve estar centrada em descrever os registros arqueológicos e/ou na formulação de sínteses com linguagem abstrata, mas deve buscar mostrar as conexões com as sociedades dos lugares onde a investigação é realizada (SAMIA, 2021).
Na entrevista realizada com o Professor Doutor Randall H. McGuire Randall Macguire (FACHINI et al., 2021) é apresentado suas pesquisas no campo da arqueologia anglófona, e discute-se, a partir do seu livro Arqueologia como ação política, arqueologia pública e sua relação com comunidades. No final da entrevista discute a influência de Paulo Freire sobre seus trabalhos.
A tradução feita por Ana Luiza Rocha do Valle e Franciele Busico (ROCHA DO VALLE: BUSICO, 2021) da entrevista Educação para a conscientização – Uma conversa com Paulo Freire, permite ao leitor conhecer um pouco mais sobre o pensamento freiriano, especialmente sobre o seu recém-lançado livro “Pedagogia do Oprimido” publicado em 1968. Originalmente publicado com o título Education for awareness a talk witt Paulo Freire, a entrevista aconteceu em Geneva, em 15 de novembro de 1970 e está disponível na íntegra na sessão do Acervo Educador Paulo Freire1 do Instituto Paulo Freire, o qual agradecemos a colaboração.
Para Freire era impossível alterar as realidades que enfrentamos sem comprometimento. E, para ele:
“quem pode comprometer-se? (…) A primeira condição para que um ser possa assumir um ato comprometido está em ser capaz de agir e refletir. (…) É exatamente esta capacidade de atuar, operar, de transformar a realidade de acordo com finalidades propostas pelo homem, à qual está associada sua capacidade de refletir, que o faz um ser da práxis”. (FREIRE, 2013: 12/13)
O que queremos com os artigos que se seguem é justamente estimular o debate, a reflexão e a ação. É transparente para nós editoras que Freire era um momento marcado por traços de seu contexto social; a autora norte-americana bell hooks, por exemplo, extrapolará as reflexões de Freire ao propor dimensões do gênero, do feminismo e do feminismo negro, nos desafios da educação como práticas da liberdade e da transformação do mundo. Mas a sua historicidade não retira o seu brilho intelectual e suas contribuições para os tempos atuais. Fica o convite para a leitura dos artigos e o compromisso para a transformação de nosso cotidiano em um espaço mais democrático, plural e diverso. Boa leitura!
Nota
1 http://www.acervo.paulofreire.org/handle/7891/1207 [cons. 17 dez. 21]
Referências
CURY, Marília Xavier. Comunicação museológica: uma perspectiva teórica e metodológica de recepção. São Paulo, 2005.
FACHINI, C.; CAMPOS, L.; POUGET, F. M. C. Entrevista com Randall McGuire. Revista Arqueologia Pública, Campinas, SP, v. 17, n. 2, 2021.
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa, Paz e Terra, São Paulo, 2006.
FREITE, P. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013 (Formato e-book). Disponível em: http://observatorioedhemfoc.hospedagemdesites.ws/observatorio/wpcontent/uploads/2020/04/4-Paulo_Freire_Educa%C3%A7%C3%A3o_e_mudan%C3%A7a.pdf Acessado em: 18/12/2021.
LASSANCE, J. Educação como canal de comunicação arqueológica/museológica: uma análise bibliográfica dos projetos de educação patrimonial no licenciamento ambiental no Rio Grande do Sul. Revista Arqueologia Pública, Campinas, SP, v. 17, n. 2, 2021
LIMA, Tania Andrade. A arqueologia na construção da identidade nacional: uma disciplina no fio da navalha. Canindé, Xingó, v. 10, p. 11–26, 2007.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Heredando el futuro: pensar la educación desde la comunicación. Culture and Education, Cultura y Educación, n. 9, p. 17-36, 1998.
MOREIRA PINTO DUARTE, A. P.; LOPES GARCIA, J. L.. Educação patrimonial e a pedagogia freiriana: uma discussão sobre o programa de educação patrimonial da lt 138kv Barbosa Ferraz – São Pedro do Ivaí. Revista Arqueologia Pública, Campinas, SP, v. 17, n. 2, 2021.
ROCHA DO VALLE, A. L.; BUSICO, F. Educação para a conscientização: uma conversa com Paulo Freire. Revista Arqueologia Pública, Campinas, SP, v. 17, n. 2, 2021.
SAMIA, D. G.. Arqueologia pedagógica: reflexões teóricas e conceituais. Revista Arqueologia Pública, Campinas, SP, v. 17, n. 2, 2021.
SCHIAVETTO, S. N. de O.; BERNARDES, A. S.; CARVALHO, T. R. de. Paulo Freire e arqueologia: uma experiência da abordagem da diversidade cultural em contextos escolares. Revista Arqueologia Pública, Campinas, SP, v. 17, n. 2, 2021.
UGALDE MORA, M. F.; BENAVIDES, O. H. O passado é o presente: a educação como prática de liberdade. Revista Arqueologia Pública, Campinas, SP, v. 17, n. 2, 2021.
WAISMAN DE AZEVEDO, L.; SCHEEL-YBERT, R. Histórias em diálogo no ensino escolar: contribuições possíveis da arqueologia brasileira. Revista Arqueologia Pública, Campinas, SP, v. 17, n. 2, 2021.
Organizadores
Luana Campos – Doutora em Quaternário, Materiais e Culturas pela UTAD (Portugal) Professora da Universidade Estadual de Goiás Quirinópolis – GO, Brasil E-mail: lcampos.ms@gmail.com https://orcid.org/0000-0001-5985-1756
Cristina Fachini – Doutora em Ambiente e Sociedade Pesquisadora em Economia e Sociologia Rural – IAC/SAA Campinas – SP, Brasil E-mail: cristina.fachini@sp.gov.br https://orcid.org/0000-0003-3785-5582
Aline Vieira de Carvalho – Doutora em Ambiente e Sociedade Pesquisadora em Arqueologia Pública – Nepam/Unicamp Campinas – SP, Brasil E-mail: alineap@unicamp.br https://orcid.org/0000-0001-7380-5940
Referências desta apresentação
CAMPOS, Luana; FACHINI, Cristina; CARVALHO, Aline Vieira de. Editorial. Revista Arqueologia Pública. Campinas, v.16, n.2, p.1-8, 2021. Acessar publicação original [DR]
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