A pandemia que assolou o mundo em 2020 suscitou reflexões acerca dos rumos tomados pela humanidade no último século e das perspectivas de futuro. O ano também foi marcado pelo centenário do nascimento de Celso Furtado, efeméride que flamejou debates sobre desenvolvimento, desigualdade e outras problemáticas socioeconômicas. Foi nesse contexto que Alexandre Macchione Saes e Alexandre de Freitas Barbosa organizaram o livro Celso Furtado e os 60 anos de “Formação Econômica do Brasil”, com relevantes revisitações à magnum opus publicada em 1959, “uma obra que ainda produz preciosas sugestões sobre um projeto social e econômico de Brasil”, segundo os organizadores.
A bem da verdade, o livro em destaque é fruto do evento realizado em 2019 por ocasião dos 60 anos de Formação Econômica do Brasil – organizado pela Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) e pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), ambos da Universidade de São Paulo (USP) –, que foi sediado pelo Centro de Pesquisa e Formação do Serviço Social do Comércio (SESC). Seus capítulos reúnem parte significativa daquilo que se discutiu com 22 especialistas em nove mesas temáticas, cujos eixos orbitaram na importância histórica da obra consagrada e na persistência de sua proposta inovadora e única para a análise dos problemas brasileiros.
As duas seções iniciais do livro Celso Furtado e os 60 anos de “Formação Econômica do Brasil” tratam da representatividade na literatura brasileira da obra que já nasceu best-seller e tem incentivado economistas, historiadores e cientistas sociais a repensarem o país nas últimas seis décadas. O clássico furtadiano é posto ao lado do panteão de Casa-grande & Senzala (Gilberto Freyre, 1933), Raízes do Brasil (Sergio Buarque de Holanda, 1936) e Formação do Brasil Contemporâneo (Caio Prado Jr., 1942), embora escrito anos depois. Como salientam os organizadores, Furtado partiu das pioneiras interpretações do Brasil a fim de oferecer a própria chave para a compreensão do país.
A primeira parte é intitulada “Formação Econômica do Brasil e o gênero de ‘Formação’”, agregando as contribuições de André Botelho, Vera Alves Cepêda, Alexandre Macchione Saes e Rômulo Manzatto acerca desse viés da obra. Os capítulos são perpassados por proximidades e distanciamentos entre as interpretações antecessoras e a análise elaborada por Furtado em Formação Econômica do Brasil, destacando-se o caráter de projeto político da obra e os lugares que esta ocupa entre os marcos historiográficos no presente.
Na segunda parte, “Da economia brasileira para a história econômica: os debates historiográficos herdados de Formação Econômica do Brasil”, os textos de Flávio Rabelo Versiani e Flávio Azevedo Marques de Saes exploram o perfil de historiador econômico de Furtado e o papel dele na historiografia econômica brasileira. Os dois autores elucidam como a síntese histórica apresentada pelo economista estimulou uma vasta gama de pesquisas monográficas nos anos subsequentes. Também analisam em que medida as evidências empíricas ali registradas conseguem construir novas sínteses. Essa problemática é igualmente delineada pelos diálogos que Mauro Boianovsky trava entre Celso Furtado, o economista estadunidense Douglass North e a Nova História Econômica.
As duas secções seguintes do livro foram definidas respectivamente como “Teoria e método em Formação Econômica do Brasil” e “Da história econômica para a economia brasileira: o projeto político de Formação Econômica do Brasil”. Ambas se dedicam a examinar o impacto da obra entre os seus contemporâneos, derivado da capacidade que Furtado teve de mobilizar diferentes teorias na elaboração de uma interpretação de Brasil muito própria, oferecendo também um projeto de país pautado numa leitura histórica robusta ainda que sintética.
Na terceira parte, os capítulos de Pedro Cezar Dutra Fonseca, Maurício C. Coutinho e Roberto Pereira Silva explicitam como Furtado costurou teorias e métodos ao compor a sua “obra-prima do estruturalismo latino-americano”, conforme definição de Ricardo Bielschowsky retomada pelos organizadores. Em contrapartida, na quarta parte do livro, Pedro Paulo Zahluth Bastos, Fernando Rugitsky e Carlos Alberto Cordovano Viera tecem suas considerações a partir das especificidades de Formação Econômica do Brasil para demonstrar a relevância da obra no debate político vigente à época de sua elaboração acerca da construção de um projeto de país.
A penúltima seção do livro recebeu o título “A atualidade de Formação Econômica do Brasil” por agrupar os apontamentos de Fernanda Graziella Cardoso, Gilberto Bercovici e Alexandre de Freitas Barbosa sobre a representatividade coetânea da obra de Furtado. Os três autores demonstram o vigor de um texto sexagenário, que conta com dezenas de reimpressões em nove idiomas (espanhol, inglês, polonês, italiano, japonês, francês, alemão, romeno e chinês) e mais de 300 mil exemplares vendidos. A tríade de ensaios retrata Formação Econômica do Brasil como o principal compêndio introdutório acerca das estruturas históricas da economia brasileira que, ao mesmo tempo, serve de instrumento de análise da conjuntura atual do país e dos caminhos possíveis para o desenvolvimento. Esses capítulos são um convite para hoje recorrermos a Formação Econômica do Brasil na busca criativa por novos horizontes, permitindo que Furtado reviva a cada utopia vislumbrada.
As percepções que Elisabete Marin Ribas registra em “O arquivo pessoal de Celso Furtado: relações e relacionamentos para além dos bastidores da história econômica” compõem a sexta e última parte do livro resenhado. Em paralelo aos desdobramentos dos 60 anos de Formação Econômica do Brasil e do centenário de nascimento do autor, uma parcela significativa do acervo de Furtado foi doada ao Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP) pela viúva dele, a jornalista e tradutora Rosa Freire d’Aguiar. A disponibilização dessas fontes estimulará revisitações às obras furtadianas, já intensificadas pelas duas efemérides. Nesse sentido, as ponderações sobre a expressividade do conjunto documental constituem o desfecho ideal para um livro que realça a potencialidade ainda vigorosa de Formação Econômica do Brasil em um contexto tão desafiador como o presente.
Rosa Freire d’Aguiar é, aliás, a responsável pelo prefácio de Celso Furtado e os 60 anos de “Formação Econômica do Brasil”, no qual historiciza sucinta e genialmente a saga de elaboração, edição e recepção da obra que tem inspirado dezenas de teses, pesquisas, controvérsias e críticas. A autora atribui a permanência de Formação Econômica do Brasil ao pioneirismo do enfoque adotado por Furtado e às intuições e pistas que ele apresenta, considerando ser justamente essa a percepção ao se concluir a leitura do livro que está prefaciando. Para ela, as revisitações consolidadas no volume aqui resenhado captaram o “modo amplo de ser e de ver” que o historiador Francisco Iglesias conferiu às análises de Furtado e, em especial, à Formação Econômica do Brasil.
É de fato uma grande responsabilidade tratar de uma obra de peso como Formação Econômica do Brasil, um clássico do pensamento econômico brasileiro que não só inspirou gerações como foi per se objeto de estudo de tantos trabalhos referenciais ao longo das seis décadas de existência. Nesse sentido, um marco foi a edição comemorativa dos 50 anos, organizada por Rosa Freire d’Aguiar, que reuniu resenhas, prefácios e apresentações, elaborados em 1959 e nas décadas seguintes por autores brasileiros e estrangeiros, incluindo textos de Francisco Iglésias, Tamás Szmrecsányi e Maurício C. Coutinho. A fortuna crítica consolidada nessa edição especial demonstra as amplas dimensões do imediato impacto nacional e internacional de Formação Econômica do Brasil.
A efeméride de meio século foi celebrada com outros trabalhos expressivos, sendo interessantes duas menções específicas para fins desta resenha. Uma delas é Celso Furtado e a “Formação Econômica do Brasil”: edição comemorativa dos 50 anos de publicação (1959-2009). Francisco da Silva Coelho e Rui Guilherme Granziera organizaram releituras de estudiosos renomados, como Wilson Cano, Luiz Carlos Bresser-Pereira, André Tosi Furtado, Alain Alcouffe, João Antonio de Paula, Fernando Cardoso Pedrão, Regina Helena de Faria, Wagner Cabral da Costa, Clélio Campolina Diniz, Leonardo Guimarães Neto, Carlos Antonio Brandão e Aldo Ferrer, além de outros especialistas já citados aqui e ali neste texto.
A outra menção diz respeito ao livro 50 anos de “Formação Econômica do Brasil”: ensaios sobre a obra clássica de Celso Furtado, organizado por Tarcisio Patricio de Araújo, Salvador Teixeira Werneck Vianna e Júnior Macambira em conjunto com o Instituto de Economia Aplicada (IPEA). O volume é composto por contribuições essenciais de Francisco de Oliveira, Ricardo Bielschowsky, Tania Bacelar de Araújo, Valdeci Monteiro dos Santos, Aloisio Teixeira, Bertha K. Becker, Fabio Sá Earp, Guilherme Delgado, Marcos Vinicius Chiliatto Leite, e outros autores que igualmente participam dos demais livros comentados nesta resenha.
As publicações evocativas dos 50 anos de Formação Econômica do Brasil ocupam posições de destaque na historiografia brasileira pelas releituras críticas que elucidam a gênese da obra e as proporções de sua influência em vários momentos das primeiras cinco décadas. Outro ponto em comum é trazerem à luz aspectos de questões centrais em Formação Econômica do Brasil, especialmente sobre a concepção estruturalista, o deslocamento do centro dinâmico, as raízes históricas das desigualdades regionais e do subdesenvolvimento brasileiro e, sobretudo, a contribuição original de Furtado para a teoria do desenvolvimento econômico.
Evidentemente, esses temas também são revisitados em Celso Furtado e os 60 anos de “Formação Econômica do Brasil”, porém num contexto nada promissor, cujas projeções exigem algo muito além de um referencial para a construção de um novo projeto de país. O livro consolida reflexões sobre a expressividade atual de Formação Econômica do Brasil na historiografia mundial e os possíveis usos de seu modelo analítico único, trazendo à tona a força da utopia seminal que Furtado imprimiu naquelas páginas. Nesse sentido, o diferencial desse livro em relação às publicações do cinquentenário é demonstrar que a obra agora sexagenária é ainda capaz de inspirar a busca por novos caminhos para as mudanças estruturais no país mesmo em tempos tão difíceis.
Nessa chave interpretativa, é possível visualizar o lugar que Celso Furtado e os 60 anos de “Formação Econômica do Brasil” ocupará na estante dos livros dedicados ao clássico furtadiano. As publicações que comemoraram a efeméride da década anterior trouxeram incontáveis contribuições a partir de um olhar voltado do presente para o passado, analisando em Formação Econômica do Brasil aquilo que a consagrou na trajetória dos 50 anos. Já o traço comum das releituras críticas que compõem Celso Furtado e os 60 anos de “Formação Econômica do Brasil” é a reflexão na direção do presente para o futuro, observando num hoje devastador a potencialidade que a obra mantém de transformar o amanhã.
Referências
ARAÚJO, T. P. de; VIANNA, S. T. W.; MACAMBIRA, J. (Org.). 50 anos de “Formação Econômica do Brasil”: ensaios sobre a obra clássica de Celso Furtado. Rio de Janeiro: IPEA, 2009.
COELHO, F. da S.; GRANZIERA, R. G. Celso Furtado e a “Formação Econômica do Brasil”: edição comemorativa dos 50 anos de publicação (1959-2009). São Paulo: Atlas, 2009.
FURTADO, C. M. Formação Econômica do Brasil. Edição comemorativa 50 anos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
SAES, A. M.; MANZATTO, R. F. Os sessenta anos de Formação Econômica do Brasil: pensamento, história e historiografia. XIII CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA ECONÔMICA E 14ª CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DE EMPRESAS, 2009, Criciúma. Anais…. Acesso em: 6 jan. 2021. SOARES, J. A. R. Celso Furtado, 100 Anos: Formação Econômica do Brasil (1959). Boletim de Informações da FIPE. n. 476, p. 69-75, maio 2020. Disponível em: https://downloads.fipe.org.br/publicacoes/bif/bif476.pdf . Acesso em: 11 dez. 2020.
Resenhista
Amanda Walter Caporrino – Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Econômica da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. É historiadora da Secretaria de Cultura e Economia Criativa de São Paulo. E-mail: amandacaporrino@alumni.usp.br ORCID: 0000-0003-0867-9815
Referências desta Resenha
SAES, Alexandre Macchione; BARBOSA, Alexandre de Freitas. (Orgs). Celso Furtado e os 60 anos de “Formação Econômica do Brasil”. São Paulo: SESC; BBM, 2021 (prelo). Resenha de: CAPORRINO, Amanda Walter. História Econômica & História de Empresas, v. 24, n. 1, p. 248-253, jan./abr. 2021. Acessar publicação original [DR]
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