Entender como governos autoritários construíram bases de apoio social capazes de legitimar e estabilizar o funcionamento das instituições políticas mobilizou a atenção dos pesquisadores das ditaduras militares da América do Sul nos últimos anos. Especialmente no Brasil, com o ressurgimento recente de narrativas laudatórias sobre os “anos de chumbo”, o interesse sobre o assunto se tornou ainda mais patente. Afinal, como é possível que partes expressivas da sociedade possam apoiar, ou mesmo, não se rebelar contra governos que exaltam a tortura, a perseguição política e a censura?
No final dos anos 1970 e início dos anos 1980, quando a ditadura brasileira começou a ter que lidar com um descontentamento social que ia além das esquerdas e abarcava amplos setores da esfera pública brasileira, a resposta para essa pergunta ganhou contornos redentores: as pessoas que apoiaram regimes autoritários foram manipuladas ou coagidas pelas políticas repressoras do Estado. Por isso apoiaram, pelo engano ou pelo medo. Dessa forma, a sociedade, vista como vítima, se redimia da conivência com os absurdos autoritários. Os filhos dessa pátria, que por anos levaram pedras feito penitentes1, viam passar a página infeliz da nossa história convictos da culpa estatal. O jardim da democracia que florescia sem pedir licença consagrava a memória binária da sociedade versus o estado; dos civis contra os militares.
Com o avanço dos estudos sobre os regimes autoritários no século XXI, novas análises sobre a construção das memórias coletivas na redemocratização brasileira apontaram para os limites dessa resposta baseada na ideia da luta do bem contra o mal. Para além de uma relação maniqueísta, as novas pesquisas passaram a investigar as pontes e as cumplicidades tecidas entre agentes sociais e o governo militar (Aarão Reis 2000, 71). A memória social que configurou a ditadura como um “corpo estranho” e indesejado pela sociedade brasileira passou a ser confrontada pelas pesquisas históricas alicerçadas no conceito de zona cinzenta, definido pelo historiador Pierre Laborie como o enorme espaço entre dois polos e lugar de ambivalência no qual os dois extremos se diluem na possibilidade de ser um e outro ao mesmo tempo (Rollemberg 2010, 102).
Além dos casos extremos de adesão ou resistência, a relação entre sociedade e Estado autoritário passou a ser entendida a partir de uma complexa rede de apoios tácitos, simpatia, neutralidade, indiferença ou mesmo sensação de impotência (Aarão Reis 2010, 387). A partir desses comportamentos sociais complexos e multifacetados, que expressam as estratégias e as experiências cotidianas dos sujeitos históricos, regimes autoritários construíram consensos sociais capazes de conferir legitimidade e estabilidade aos sistemas políticos, sem a necessidade de recorrer exclusivamente aos aparatos repressores a fim de garantir a sua legitimidade social.
Filiado a essa nova proposta de abordagem, o jovem historiador Bruno Rei logrou êxito aos analisar os festejos do Sesquicentenário da Independência organizados pela ditadura militar brasileira em 1972. Em livro intitulado Celebrando a Pátria Amada: esporte, propaganda e consenso nos festejos do Sesquicentenário da Independência no Brasil (1972), resultado de uma consistente pesquisa documental realizada durante o doutorado no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense, o autor mostrou como os diversos eventos organizados pela ditadura em 1972 buscaram reforçar o sentimento de otimismo e grandeza do Brasil acessando símbolos e códigos presentes no imaginário social brasileiro. Se o “milagre econômico” e a vitória da seleção brasileira na Copa do Mundo de futebol de 1970 criavam o ambiente propício para a exaltação à grandeza do país, a propaganda veiculada através dos festejos visava reforçar o passado de harmonia social, marcado pelos feitos de grandes homens como Pedro I e Tiradentes, que lutaram pela libertação do Brasil e pela integração nacional (Fico 1997).
Ao término da leitura, ficamos certos de que o autor cumpriu o seu objetivo principal: mostrar os festejos como espaços de reconhecimento e diálogos entre as representações otimistas da nação e os sujeitos sociais que participaram direta ou indiretamente dos eventos. A interação entre o governo, organizadores, os artistas e o público revela ao leitor como os compartimentos sociais são repletos de ambiguidades, e não expressam ações cristalinas de adesão ao governo, ou resistência ao autoritarismo. Ao contrário, o texto de Bruno Rei contribui para compreendermos essas relações entre Estado e sociedade a partir dos campos de possibilidade dos sujeitos que fazem escolhas cotidianas, sem que isso signifique a elaboração de planos de enfrentamento ao autoritarismo.
Destaco as análises dos comportamentos de dois importantes personagens da História do Brasil contemporâneo feitas pelo autor: Pelé e Elis Regina. Não há dúvidas que são dois expoentes nas suas respectivas carreiras de jogador e cantora. O primeiro ficou marcado na memória das esquerdas brasileiras como homem simpático ao governo militar. A segunda, por sua vez, tem lugar de destaque na memória social da redemocratização brasileira como a intérprete do hino da anistia – O bêbado e a equilibrista2. Bruno Rei nos mostra como os dois apresentaram comportamentos ambíguos em 1972. Afinal de contas, se fossemos considerar de forma rígida a validade da memória binária, não conseguiríamos entender o que aconteceu com os dois ídolos nacionais. Pois então, Pelé, o homem do regime, recusou o convite para participar da Taça Independência, torneio de futebol que contou com várias seleções do futebol mundial e que fazia parte de uma estratégia de fortalecimento da candidatura de João Havelange à presidência da FIFA. Já a gaúcha Elis, aceitou o convite para cantar no ginásio do Grêmio de Football Porto-alegrense na ocasião da abertura da olímpiada do exército. Pode parecer estranho, mas os motivos foram semelhantes para a recusa e para o aceite. Pelé queria ganhar um cachê maior que os outros jogadores. O “Rei do futebol” alegou que a oferta inicial para que ele jogasse pela seleção era menor do que o montante que ganhava nas excursões com o Santos Futebol Clube. Os dirigentes brasileiros ficaram insatisfeitos, não fecharam acordo com o jogador, e a seleção canarinho não contou com o seu maior ídolo. Já Elis Regina, assim como muitos artistas renomados que até hoje inspiram a intelectualidade de esquerda como Os Mutantes, Beth Carvalho, Elza Soares e Taiguara, aceitou participar do show porque foi contratada e recebeu a quantia desejada para cantar. Ora, ela era uma cantora profissional, assim como Pelé. E os dois decidiram as suas participações nos eventos do sesquicentenário a partir da mesma questão: o dinheiro.
Na memória gestada na redemocratização brasileira, esses dois eventos foram redefinidos e ganharam novos significados. No caso do Pelé, a sua ausência foi explicada pelo fato de que um ano antes, em 1971, ele fizera a sua despedida da seleção, e isso inviabilizou a sua convocação para a seleção na Taça Independência. No caso da Elis, a memória do medo foi acionada e a versão da cantora dada em entrevista anos depois se tornou a vitoriosa: a intérprete da anistia só aceitou participar do evento porque estava sendo coagida. Mérito do autor que, atento aos limites dessas memórias maniqueístas, trouxe para o leitor a percepção de que sujeitos sociais, famosos ou não, conduziam as suas vidas sem pautar, necessariamente, suas ações em esforços de resistência à ditadura. Esse tipo de comportamento é o que demonstra o sucesso da criação dos consensos sociais em regimes autoritários.
Dividida em quatro capítulos, o autor analisa no primeiro a abertura das comemorações em 1972 e mostra ao leitor que o projeto dos festejos remontava aos tempos do Governo Costa e Silva. No segundo capítulo, Bruno Rei destaca como a Olimpíada do Exército foi bem mais do que um evento desportivo e militar. A programação com shows de música e ampla participação dos civis transformaram o evento em uma bem-sucedida manifestação de uma ditadura que, apesar de ser lembrada pelas esquerdas como “os anos de chumbo”, conseguiu propagandear com sucesso as imagens de um Brasil que vivia os seus “anos de ouro” (Cordeiro 2009).
O terceiro capítulo é dedicado ao torneio de futebol Taça da Independência. Bruno Rei nos mostra como os organizadores enfrentaram problemas que iam desde o boicote das seleções dos países democráticos europeus, passando pelo preço do ingresso, e chegando até aos estádios vazios em jogos desinteressantes. Mesmo assim, uma final dos sonhos para o governo entre Brasil e Portugal foi realizada no Maracanã para mais de cem mil espectadores, que assistiriam à vitória da seleção por um a zero, gol anotado pelo ponta-direita Jairzinho.
Por fim, no quarto e último capítulo o autor investiga a 35º edição da Corrida do Fogo simbólico da Pátria, evento cívico realizado desde 1938. Mais uma vez, acionando símbolos referentes à grandeza territorial e à fé do povo brasileiro, organizadores e os participantes da corrida levaram por mais de 20 mil quilômetros do território nacional mensagens patrióticas e religiosas, e realizaram solenidades cívicas a fim de reforçar o otimismo sobre o futuro de paz e grandiosidade da nação brasileira nas cidades mais distantes dos grandes centros urbanos.
Ao final da leitura, podemos também ter certeza que, ao trazer à tona as expressões dos grupos que apoiaram ou negligenciaram o autoritarismo estatal durante a ditadura, Bruno Rei cumpriu a missão mais complexa dessa pesquisa. O autor nos fez olhar para dilemas e feridas ainda abertas na sociedade brasileira. Nos fez enxergar como muitos viveram as suas vidas e foram felizes, mesmo com brasileiros sendo perseguidos, torturados e exilados. No fim das contas, livros como o do Bruno Rei nos fazem entender como a cultura política autoritária está presente de maneira relevante no imaginário social brasileiro. Entre o preto e o branco da adesão ou resistência, milhões viveram na zona cinzenta de um consenso que legitimou e perpetuou o autoritarismo. Por tudo isso que Bruno Rei nos mostra em seu livro, não nos deveria surpreender que o discurso antidemocrático dos dias atuais fosse capaz de mobilizar de maneira tão apaixonada os saudosos dos tempos em que a nossa gente falava de lado e olhava para o chão3, ao mesmo tempo em que muitos silenciam diante da escalada autoritária que vivemos.
Notas
1 Referência à canção “Vai passar”, composta pelo músico Chico Buarque e lançada no álbum “Chico Buarque”, em 1984.
2 A canção “O bêbado e a equilibrista”, composta por João Bosco e Aldir Blanc, se tornou um símbolo da luta pela anistia.
3 Referência à canção “Apesar de você”, composta pelo músico Chico Buarque.
Referências
AARÃO REIS, Daniel. Ditadura, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
AARÃO REIS, Daniel. “Revolução e socialismo em Cuba: ditadura revolucionária e construção do consenso”. Em A construção social dos regimes autoritários. Legitimidade, consenso e consentimento no século XX: Brasil e América Latina, org. Denise Rollemberg, Samantha Quadrat, 363-392. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
CORDEIRO, Janaina Martins. “Anos de chumbo ou anos de ouro? A memória social sobre o Governo Médici”. Revista Estudos Históricos, 22, n. 43 (2009): 85-104. https://doi.org/10.1590/S0103-21862009000100005
FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997.
ROLLEMBERG, Denise. “As trincheiras da memória. A Associação Brasileira de Imprensa e a ditadura. (1964-1974)”. Em A construção social dos regimes autoritários. Legitimidade, consenso e consentimento no século XX: Brasil e América Latina, org. Denise Rollemberg, Samantha Quadrat, 97- 144. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
Resenhista
Renato Soares Coutinho – Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Professor de História do Brasil Republicano do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. E-mail: rscoutinho@id.uff.br https://orcid.org/0000-0002-1040-7061
Referências desta Resenha
REI, Bruno Duarte. Celebrando a Pátria Amada: esporte, propaganda e consenso nos festejos do Sesquicentenário da Independência do Brasil (1972). Rio de Janeiro: 7letras, 2020. Resenha de: COUTINHO, Renato Soares. A pátria amada verde, amarela e cinzenta: os festejos do Sesquicentenário da Independência e o consenso autoritário na ditadura militar brasileira. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.27, n.2, p. 420-424, 2021. Acessar publicação original [DR]
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