Divulgando os resultados de pesquisas acadêmicas recentes, este livro consiste na reunião de oito estudos que apresentam ao leitor reflexões renovadas sobre o Ceará dos séculos XVIII e XIX. Além de não estar organizado a partir da divisão tradicional em períodos, a coletânea tem a vantagem de dedicar a maioria dos seus capítulos à análise de aspectos relativos à capitania do Ceará, ajudando a suprir a carência da publicação de conhecimento atualizado acerca do passado colonial cearense. Nesse sentido, uma das suas contribuições mais originais é a utilização da expressão Siará grande para se referir ao Ceará dos primeiros séculos, que busca historicizar o passado através da recuperação do seu caráter processual, evitando projeções anacrônicas.
No capítulo inicial, dedicado à produção e comercialização de carnes secas no Ceará setecentista, Almir Leal de Oliveira aponta a insuficiência das análises sobre a pecuária na América portuguesa, ainda bastante limitadas às sínteses gerais oferecidas por Capistrano de Abreu e Caio Prado Júnior, cujas proposições foram produzidas a partir de um conjunto reduzido de fontes. Segundo o autor, tais interpretações encontram-se, em linhas gerais, reproduzidas pelas historiografias locais, cujos estudos dedicados à atividade charqueadora foram, também eles, construídos a partir de um número restrito de dados empíricos. Observa, ainda, que a dificuldade em encontrar registros sobre o negócio das carnes secas resulta da própria ausência de regulamentação e da falta de rigor da tributação praticada pela Coroa.
Buscando superar tais limitações, um dos pontos altos do texto de Almir Leal é a afirmação da variedade e complexidade da pecuária praticada nos chamados sertões pernambucanos, demonstrada a partir da especialização da produção realizada em cada área (gado vacum ou cavalar, charque, couros, sal e produtos agrícolas) e da indicação dos mercados específicos nos quais era comercializada (fábricas de carnes secas, feiras de gado, curtumes e regiões mineradoras). Além de ressaltar a importância assumida pelo charque nas redes mercantis atlânticas, através da recuperação da listagem dos donos de oficinas de carne em Aracati e dos registros das entradas de barcos no seu porto, o autor reconstitui parte da trajetória de charqueadores, negociantes, proprietários de barcos, pilotos e investidores envolvidos com a produção e comercialização de carnes secas na principal vila mercantil da capitania. Merece destaque ainda a proposição da figura do mercador-charqueador-mercador, imprescindível para o entendimento da integração entre os portos do sertão e o comércio atlântico.
No segundo capítulo, Rafael Ricarte da Silva discute a concessão de sesmarias nos sertões de Mombaça que, assim como Aracati, pertencenciam à ribeira do Jaguaribe, a maior e mais importante do Siará grande. Tendo em vista os fundamentos e problemas que caracterizaram o sistema sesmarial nos territórios americanos, o autor afirma que as diferentes determinações régias, visando à regulamentação das doações (limitação do número e tamanho das datas, tentativas de demarcação e obrigatoriedade de confirmação), foram frequentemente ignoradas na capitania. Segundo ele, este incumprimento foi tolerado para incentivar as guerras de conquista das terras aos índios e estimular a produção local, viabilizando a arrecadação dos dízimos para os cofres régios. Cabe perguntar em que medida esta tolerância ou falta de rigor em relação à ocorrência de irregularidades não teria resultado da própira incapacidade da Coroa em fazer valer as suas leis e decretos nos sertões da capitania. Dialogando com os resultados do estudo referencial de Francisco José Pinheiro sobre o assunto, o autor aponta que as concessões de sesmarias na capitania acabaram permitindo a concentração de grandes extensões de terra nas mãos de poucos requerentes e membros de uma mesma família, fator determinante na estruturação do poder na região.
No terceiro capítulo, Gabriel Parente Nogueira analisa o processo de criação de vilas na capitania, responsável pela integração do Siará grande e das suas elites às malhas político-adminitrativas da monarquia portuguesa. Tomando como fonte as ordens régias e os editais de fundação dos concelhos locais, o autor afirma terem sido quatro as suas principais origens ou motivações: implementação do poder régio (Aquiraz, Fortaleza e Icó), controle das atividades econômicas (Aracati), aldeamentos indígenas (Viçosa, Soure, Arronches, Paupina, Monte-Mor-o-Novo e Crato) e controle social (Sobral, Quixeramobim, São João do Príncipe e São Bernardo). Apesar de não pôr em causa a sua validade, deve-se ter em mente que esta classificação fundamenta-se na consideração de uma motivação principal ou mais evidente em detrimento da multiplicidade de interesses envolvidos. Nestes territórios marcados pelo criatório, fica claro que o desenvolvimento urbano não teria se configurado em justificativa preponderante para a fundação das suas vilas, o que vai ao encontro da ideia defendida por Maria Auxiliadora Lemenhe. Ainda de acordo com o autor, ao contrário do que ocorreu nas capitanias vizinhas, a ausência da elevação de uma vila ao estatuto de cidade no Ceará é ilustrativa da constituição de uma organização política regionalizada, caracterizada pela existência de vilas hegemônicas em cada uma das suas regiões.
No quarto capítulo, Mário Martins e Ana Cecília de Alencar recompõem as trajetórias de mulheres que viveram no Ceará dos séculos XVIII e XIX. A partir da análise de cartas de sesmaria e de registros cartoriais, revelam-nos que muitas encabeçaram pedidos de doação de datas, ocuparam a posição de proprietárias de terras, herdaram cabedais, realizaram a compra e venda de imóveis, participaram em relações de empréstimo e crédito, chegando, inclusive, a exercerem a chefia de núcleos familiares e envolverem-se em contendas na defesa dos seus interesses. Em diversas situações, utilizaram-se da associação com homens, da condição de viúvas ou da sua qualidade de “donas” como estratégias de poder. Com isso, as representações idealizadas dos papéis sociais atribuídos às mulheres na época são contrastadas pelas suas práticas sociais. Apesar de levar em consideração exclusivamente mulheres livres e proprietárias, o texto evidencia a pluralidade de papéis e comportamentos assumidos. Além disso, os autores observam que estes variavam de acordo com diversos aspectos (camada social, idade, estado civil e muitos outros), evidenciando como e em que medida cada um deles influíram na construção das identidades de gênero e nas relações de poder que travaram.
Os dois capítulos seguintes discutem a ocorrência de epidemias e as consequentes ações médicas empreendidas em cronologias, espacialidades e contextos distintos. No primeiro deles, a partir da consulta de correspondências e outras fontes publicadas, Eduardo Vasconcelos analisa a atuação da comissão liderada pelo médico João Lopes Costa Machado, em 1791, para combater as febres palustres que se espalharam pela região norte da capitania no último quartel do século XVIII. Explicando a ocorrência da epidemia através do pressuposto miasmático, o licenciado acreditava que a população deveria ser obrigada a se submeter a tratamento médico, opinião indiciária do fato de que a medicina acadêmica ainda tentava se afirmar como saber socialmente estabelecido. Não por acaso, associada ao convencimento das autoridades, a utilização de termos específicos buscava defender a especialização do saber médico e a sua legitimação social em contraposição a outros agentes, tais como cirurgiões, barbeiros, sangradores e leigos.
A seguir, Dhenis Silva Maciel debate a epidemia de cólera-morbus que atingiu a população de Maranguape em 1862. Novamente, comissões foram formadas para combater a doença, desta vez concentradas na capital. Através de relatórios dos presidentes da província, jornais e literatura coêva, o autor observa que os médicos envolvidos no episódio não tinham respostas concludentes para o mal, questionando a pretensa ideia de homogeneidade do saber médico, expresso, neste caso, através do enfrentamento entre as explicações hipocrática e microbiológica. Junto aos discursos da medicina sanitarista, foram associadas opiniões moralizadoras, que condenavam o modo de vida das populações pobres, verificando-se, inclusive, distinção na medicação prescrita conforme o doente se tratasse de pessoa livre ou escravo. Tendo em vista o embate entre medicina oficial e práticas de cura populares, outro aspecto interessante apontado pelo texto é a presença de médicos, cirurgiões e curandeiros nas comissões de combate à epidemia.
O sétimo capítulo, assinado por Keile Socorro Felix, discute as reviravoltas que caracterizaram o conturbado processo de independência política na capitania. Fundamentando-se na análise de documentos oficiais publicados e inéditos, a autora observa que o governo por meio de juntas governativas, formadas através de eleições locais entre 1821-1823, implicou na ampliação do poder de mando dos potentados cearenses, que passaram a se digladiar para obter o seu controle. Em sentido oposto, teve lugar a implementação de um projeto de centralização nacional a partir da corte carioca, em prol da unidade das províncias. Tal projeto centralizador se fez sentir localmente através da concentração de poderes em Fortaleza, que passou a receber privilégios, dentre os quais a instalação de órgãos administrativos, a função de principal porto e o título de cidade. É justamente nesse contexto que se insere a reivindicação de um governo federativo pela Confederação do Equador em 1824, com vistas à preservação da autonomia local. Ao recuperar o caráter processual dos embates entre os projetos centralista e autonomista, a autora critica o caráter teleológico da historiografia que, durante muito tempo, considerou a independência como positiva e inevitável.
No capítulo final, Bruno Nojosa de Freitas aprofunda a discussão entre centralização e autonomia local na província cearense por meio dos violentos confrontos armados entre liberais e conservadores ocorridos na vila de Telha durante as eleições de 1860, que resultaram em elevado número de mortos e feridos. Dentre as fontes investigadas, encontram-se leis, relatórios, correspondências camarárias e jornais. Estes últimos, longe de qualquer imparcialidade, defendiam orientações ideológico-partidárias bastante nítidas. O autor defende que a política da província não pode ser resumida à violência, devendo-se levar em conta as configurações e estruturas de poder que lhe eram subjacentes. Nesse sentido, depois de referir-se à reforma eleitoral de 1860, afirma que as eleições no período eram influenciadas por diversos fatores, como a nomeação de cargos pelo imperador, o recrutamento forçado de candidatos da oposição, a existência de parcialidades e a influência dos delegados nas juntas de qualificação, que decidiam quem estava habilitado a votar.
Em suma, esta coletânea representa uma tentativa bem-sucedida de fazer com que o conhecimento produzido na universidade seja acessível a um público mais amplo. No que diz respeito aos aspectos formais, a presença de diversos erros ortográficos indica que os seus textos deveriam ter sido submetidos a uma revisão mais criteriosa. Elaborados a partir do diálogo com os novos paradigmas interpretativos relativos a cada um dos temas analisados, os seus capítulos ajudam a reescrever a História do Ceará a partir de abordagens renovadas.
Resenhista
José Eudes Gomes – Instituto de Ciências Sociais / Universidade de Lisboa.
Referências desta resenha
VIANA JÚNIOR, Mário Martins; SILVA, Rafael Ricarte da; NOGUEIRA, Gabriel Parente (orgs.). Ceará: economia, política e sociedade (séculos XVIII e XIX). Fortaleza: Instituto Frei Tito de Alencar, 2011. 195p. Resenha de: GOMES, José Eudes. Revista Sertões, Mossoró, v.2, n.2, p.37-40, jul./dez., 2012. Acessar publicação original [IF].
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