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Cavaleiros de cola, papel e plástico: sobre os usos do passado medieval na contemporaneidade | Carlile Lanziere Júnior

Adolf Hitler numa propaganda nazista vestido com uma armadura e empunhando um estandarte com a suástica, manifestantes conservadores armados com escudos e espadas nos Estados Unidos, um cavaleiro com trajes que remetem à Idade Média e falas em latim convocando para atos contra o Supremo Tribunal Federal (STF) no Brasil. Percorrendo décadas de usos (e abusos) da Idade Média por movimentos políticos dos séculos XX e XXI, Cavaleiros de cola, papel e plástico: sobre os usos do passado medieval na contemporaneidade (2021) é expressão da atualidade e, quiçá, urgência dos estudos medievais no mundo contemporâneo, em especial no Brasil.

Em seu sétimo livro, o medievalista brasileiro Carlile Lanzieri Júnior, professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), explora novos domínios da história e da medievalística internacional, indicando a guinada arrojada que caracteriza as suas investigações nos últimos anos. Ainda que enquadrado entre os jovens historiadores brasileiros, Lanzieri Júnior é nome reconhecido entre os medievalistas do país, com dezenas de artigos e capítulos voltados, sobretudo, ao tema da sociedade e educação na Idade Média Central, dos intelectuais medievais e do controverso Renascimento do século XII. No entanto, demonstrando a inquietude que marca os intelectuais, ao menos desde 2016 o autor vem debruçando-se sobre novas abordagens e referenciais teóricos, em especial a História Global e os estudos pós-coloniais.1 Soma-se a tais vias a preocupação recente com os usos do passado medieval nas mídias digitais e na política contemporânea, temática que orientou projeto de pesquisa realizado na UFMT2 e que tem sido explorada nos últimos artigos,3 lives e eventos nacionais. Destarte, pode-se afirmar que Cavaleiros de cola, papel e plástico foi forjado no intenso diálogo acadêmico, estando atento aos problemas do tempo presente.

Aproveitando o último elemento citado, destaca-se que Cavaleiros de cola, papel e plástico é um livro necessário e oportuno. Num contexto internacional e brasileiro de avanço de movimentos antidemocráticos e conservadores, que por meio das redes sociais mobiliza (geralmente com uso de Fake News) e convence multidões de que a militarização, a violência, o combate às minorias, a homogeneidade étnica e a defesa de pretensas tradições patriarcais e machistas devem ser legitimadas no passado, em particular no passado medieval europeu, o livro de Lanzieri Júnior oferece subsídios para a reflexão acadêmica e para a resistência política. Não uma postura infundada que repele sem demonstrar, mas uma via alicerçada historiográfica e conceitualmente que indica caminhos para desconstruir discursos tentadores, com verniz de erudição e ciência, que cada vez mais desafiam os historiadores.4

Como medievalista engajado, Lanzieri Júnior apresenta um olhar apurado sobre o tempo presente e as variabilidades das mídias e da política brasileira, trazendo ao público referências bibliográficas e questões ainda pouco discutidas em nosso meio acadêmico, afinal discutir medievalismo5 – isto é, a recepção da Idade Média no período pós-medieval em suas múltiplas expressões – ainda soa como vanguarda nos corredores das universidades Brasil afora.6 Há algumas décadas, um conjunto de medievalistas têm investigado os usos políticos da Idade Média na contemporaneidade, tanto por movimentos de esquerda como, principalmente, por grupos de direita,7 constituindo um dos principais eixos internacionais de pesquisa dos estudos medievais na atualidade. Apesar disso, tais questões começaram a ganhar repercussão na medievalística brasileira somente em 2019, particularmente com as publicações e entrevistas de Paulo Henrique de Carvalho Pachá,8 professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desde então, a temática tem aparecido em eventos, artigos, capítulos e podcasts produzidos no país, porém Cavaleiros de cola, papel e plástico é o primeiro livro publicado no Brasil especificamente dedicado ao tema, demonstrando o fortalecimento do campo de estudos. Ademais, ressalta-se que a contribuição da obra não se limita ao público brasileiro, alcançando uma lacuna sentida por todo o conjunto de leitores da Língua Portuguesa, visto que em Portugal, por exemplo, mesmo com o fortalecimento de movimentos conservadores como a “Nova Ordem de Avis”, reconhecidos por seus atos xenófobos, poucos são os investigadores dedicados ao tema do medievalismo, particularmente em suas faces políticas.

Cavaleiros de cola, papel e plástico também é necessário e oportuno como uma resposta aos ataques acadêmicos recebidos pela área de História Medieval nos últimos anos, questão evidenciada nos debates em torno da primeira versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que propôs excluir os conteúdos de Antiguidade e Idade Média do currículo brasileiro.9 Como lembra Lukas Gabriel Grzybowski, professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL), responsável pela introdução do livro, os discursos contra o ensino do medievo na Educação Básica frequentemente sustentam-se na afirmação de que o Brasil não teve uma Idade Média, logo não há necessidade de se estudar tal conteúdo. Sem necessariamente enveredar pela crítica a essa equivocada percepção acerca do estudo da Idade Média, Lanzieri Júnior explora outra via, demonstrando que o crescimento das “manifestações, sobretudo de caráter político, que reclamam para si o domínio sobre o medievo e (re)criam uma realidade medieval para o Brasil (e o mundo) da atualidade”,10 por si só, justificam a urgência de se estudar e ensinar a Idade Média nos bancos escolares e universitários brasileiros.

O livro está dividido em três capítulos que, como explica o próprio autor, podem ser lidos em conjunto ou separadamente, sendo que a ordem proposta pela edição se estrutura em termos cronológicos, abarcando acontecimentos de agosto de 2017 à aparição do cavaleiro do grupo Lux Brasil em março de 2020. Em tom ensaístico, Cavaleiros de cola, papel e plástico demonstra uma sólida construção dos referenciais teóricos e da fundamentação bibliográfica, mobilizando, em especial, as noções de “pós-verdade”, “autoverdade” e “medievalismo banal”. Com uma linguagem leve e clara, estabelece diálogo fluído com o leitor, elemento que amplia a qualidade do texto facilitando a apropriação das discussões pelo público não acadêmico. Ademais, faz uso apurado de vários materiais midiáticos, mormente de imagens, aproximando o leitor do universo das redes virtuais.

O primeiro capítulo, intitulado “A alcateia negacionista e a mitologização do passado medieval: palavras de medo e esperança”, inicia-se com menção aos manifestantes de Charlottesville (Virgínia, EUA), que com capacetes, escudos e espadas defenderam a estátua do general Lee de ser retirada, numa expressão das novas dimensões do nacionalismo americano do século XXI que, por vezes, busca no medievo seus sustentáculos. Avançando com referências a outros acontecimentos, como o vídeo do cavaleiro do grupo conservador Lux Brasil no contexto dos ataques antidemocráticos ao STF, Lanzieri Júnior discute a construção de uma “memória global virtual que consome e ressignifica o medievo na contemporaneidade”.11 Em seguida, em diálogo com referências das mais diversas áreas, dedica-se a apresentar, ainda que brevemente, a construção desses usos políticos do medievo, recorrendo aos temas do nacionalismo e das identidades políticas na atualidade. Por fim, o capítulo mostra-se propositivo, indicando a História Pública, a maior inserção dos historiadores nas mídias digitais e a História Global, como caminhos potenciais para superar os abusos acerca do passado medieval.

O segundo capítulo do livro, “Cavaleiros de cola, papel e plástico: histórias conectadas de diferentes usos do passado medieval na contemporaneidade dentro e fora do Brasil e seus possíveis impactos na formação do conhecimento histórico escolar”, aproxima-se do campo de estudos do medievalismo, por meio da noção de “medievalismo banal” de Andrew Elliot, criticando a instrumentalização do passado por movimentos políticos contemporâneos. Na sequência, leva o leitor a uma viagem pela história conectada, que articula a atuação de grupos de direita no Reino Unido e no Brasil, atos na Virgínia e em Teresina, memes e vídeos nas redes sociais, e a defesa de homeschooling, aos novos caminhos mercadológicos de editoras brasileiras de viés conservador. Finalmente, propõe explicações ao recorrente uso da imagem do cavaleiro medieval pelos movimentos de direita, problematizando desde o chamado “imaginário militar romântico”, comum às mídias e ao entretenimento, aos ideais conservadores que se colocam na defesa de uma suposta cultura ocidental judaico-cristã. Mais uma vez, a História Pública é ressaltada como via a ser seguida por historiadores preocupados em oferecer respostas a tal cenário desafiador, assim como a História Global, com sua inclinação à diversidade, é lembrada como potencial caminho para o ensino de história.

O terceiro e último capítulo, “Ontem e hoje, o porta estandarte: reflexões finais sobre os usos do passado medieval, a estética bolsonarista e os discursos recentes da direita brasileira”, estabelece contrastes entre a propaganda nazista e a publicidade midiática dos presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro, a fim de demonstrar as raízes e os perigos dos usos do passado medieval por movimentos antidemocráticos. Em diálogo com Andrew Elliot e Nilton Pereira, Lanzieri Júnior assinala que tais usos do passado não têm “compromisso sério com o conhecimento histórico e os princípios éticos e científicos que o regem, apenas o anseio por transmitir uma imagem de forma rápida e objetiva a uma legião de seguidoreseleitores”.12

Em que pesem as pequenas gralhas na edição e a falta de aprofundamento em determinados debates, Cavaleiros de cola, papel e plástico é uma obra provocativa que convida à reflexão sobre a atualidade e a necessidade dos estudos medievais no mundo contemporâneo. Igualmente, ela representa o vigor da medievalística brasileira, cada vez mais atenta, em diferentes campos de investigação, aos debates internacionais, e engajada nos problemas no tempo presente e do ensino de história. Longe de esgotar o tema dos usos políticos da Idade Média, ao qual serve de introdução qualificada, o livro de Lanzieri Júnior demonstra que a pesquisa sobre o medievalismo em nosso meio acadêmico veio para ficar e que o campo poderá se constituir num front onde os medievalistas brasileiros resistirão aos negacionismos que desafiam a área e enfrentarão os novos combates pela História.

Notas

1 Autores como Stuart Hall (Da Diáspora), Michel-Rolph Trouillot (Silencing the past), Martin Bernal (Atenas Negra), Sebastian Conrad (What is global history?), Sarah Davis-Secord (Where three worlds met) e Andre Frank (ReOrient) têm sido referências constantes nas produções de Lanzieri Júnior nos últimos cinco anos.

2 Segundo as informações disponíveis no currículo lattes do autor, trata-se do projeto “Os usos do passado e o papel do medievalista diante de seus novos públicos” (2018-2020).

3 LANZIERI JÚNIOR, Carlile. O general, a catedral e o “filósofo”: reflexões acerca do papel do medievalista diante de seus novos públicos. Saeculum, João Pessoa, v.24, p. 35-47, 2019; Ontem e hoje, o porta estandarte: reflexões sobre os usos do passado medieval, a estética bolsonarista e os discursos recentes da direita brasileira. Roda da Fortuna, v.8, p. 161-180, 2020; LANZIERI JÚNIOR, Carlile; LIMA, Douglas Mota Xavier de. A Idade Média imaginada pelos adeptos da retórica do choque de civilizações em diferentes momentos dos séculos XX e XXI. Notandum (USP), São Paulo, v.4, p.53- 75, 2021.

4 Como afirma Jurandir Malerba: “a história não mais se produz somente na academia, muito menos se veicula apenas por meio do livro impresso. As plataformas digitais subverteram as bases da produção e circulação das narrativas sobre o passado.” (MALERBA, Jurandir. Os historiadores e seus públicos: desafios ao conhecimento histórico na era digital. Revista Brasileira de História, São Paulo, 2017, p. 142).

5 Para uma introdução ao campo do medievalismo, ver: FERRÉ, Vincent (dir.). Médiévalisme: modernité du Moyen Âge. Itinéraires, Littérature, textes, cultures [en ligne], 2010-3, 2010; EMERY, Elizabeth; UTZ, Richard (Ed.). Medievalism: key critical terms. Cambridge: D. S. Brewer, 2014; MATTHEWS, David. Medievalism: a critical history. Cambridge: D. S. Brewer, 2015; D’ARCENS, Louise (Ed.). The Cambridge Companion to Medievalism. Cambridge: Cambridge University Press, 2016; dossiê “Medievalismo(s), neomedievalismo e recepção da Idade Média em períodos pós-medievais”, Revista Antíteses, v.13, n.26, jul.-dez. 2020. Do mesmo modo, indicam-se os volumes da revista Studies in Medievalism, publicada desde 1979.

6 Apesar disso, nos últimos três anos observa-se o crescimento do número de estudos e, inclusive, a formação de grupos de pesquisa relacionados ao tema, por exemplo, o Laboratório de Estudos sobre a transmissão e História textual na Antiguidade e no medievo/LETHAM-UFBA; e o Núcleo de Estudos sobre Narrativas e Medievalismos/LINHAS-UFRRJ.

7 Exemplificam essa linha de estudos: HOLSINGER, Bruce. Neomedievalism, Neoconservatism and the War on Terror. Chicago: Prickly Paradigm Press, 2007; CARPEGNA FALCONIERI, Tommaso di. Médiéval et militant. Penser le contemporain à travers le Moyen Âge. Paris: Publications de la Sorbonne, 2015; LYNCH, Andrew. Medievalism and the ideology of war. In: D’ARCENS, Louise (Ed.). The Cambridge Companion to Medievalism. Cambridge: Cambridge University Press, 2016, p. 135- 150; ELLIOT, Andrew. Medievalism, politics and massa media: appropriating the Middle Ages in twenty-first century. Cambridge: D. S. Brewer, 2017; WOLLENBERG, Daniel. Medieval imagery in today’s politics. Leeds: Arc Humanities Press, 2018. Recentemente, a questão dos usos políticos do medievalismo foi ainda tema da revista Studies in Medievalism, em suas edições XXIX (março 2020) e XXX (abril 2021).

8 PACHÁ, Paulo. Por que a extrema direita brasileira ama a Idade Média europeia. Vi o mundo, 05 de abril de 2019. Disponível em: https://www.viomundo.com.br/politica/paulo-pacha-por-que-aextrema-direita-brasileira-ama-a-idade-media-europeia.html, último acesso em 09 de maio de 2021; PACHÁ, Paulo. Deus Vult: uma velha expressão na boca da extrema direita. El País, 02 de maio de 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/30/politica/1556658788_493763.html, último acesso em 09 de maio de 2021.

9 Sobre o tema, ver: LIMA, Douglas Mota Xavier de. Uma história contestada: a História Medieval na Base Nacional Comum Curricular. Anos 90, Porto Alegre, v.26, 2019.

10 GRZYBOWSKI, Lukas. Introdução. In: LANZIERI JÚNIOR, Carlile. Cavaleiros de cola, papel e plástico: sobre os usos do passado medieval na contemporaneidade. Campinas, SP: D7 Editora, 1ª edição, 2021, p. 13-15.

11 LANZIERI JÚNIOR, Carlile. Cavaleiros de cola, papel e plástico: sobre os usos do passado medieval na contemporaneidade. Campinas, SP: D7 Editora, 1ª edição, 2021. p. 41.

12 LANZIERI JÚNIOR, Carlile. Cavaleiros de cola, papel e plástico: sobre os usos do passado medieval na contemporaneidade. Campinas, SP: D7 Editora, 1ª edição, 2021. p. 96.


Resenhista

Douglas Mota Xavier de Lima – Universidade Federal do Oeste do Pará. E-mail: dougmotahistoria@gmail.com


Referências desta Resenha

LANZIERI JÚNIOR, Carlile. Cavaleiros de cola, papel e plástico: sobre os usos do passado medieval na contemporaneidade. Campinas: D7 Editora, 2021. Resenha de: LIMA, Douglas Mota Xavier de. Signum- Revista da ABREM, v. 23, n. 1, p.115-120, 2022. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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