Renato Pinto Venâncio é doutor pela Universidade de Paris IV – Sorbonne, onde defendeu, em 1993, a tese intitulada “Casa da Roda: instituition d´assistance infantile au Brésil, XVIII – XIX siècles”. Atualmente é professor da Escola de Ciência da Informação na Universidade Federal de Minas Gerais.
Em seu livro Cativos do Reino, o autor analisa casos em que escravos circulavam de uma região a outra, sendo responsáveis por transmitir valores e tradições nas diversas partes do reino português e suas colônias. Embora reconheça que esses casos não eram comuns, o autor consegue nos mostrar como essa circulação de cativos é importante para compreendermos a complexidade da escravidão da Idade Moderna, muitas vezes analisada de forma simplificada pela historiografia sobre o tema.
O primeiro capítulo deste livro tem como objetivo analisar uma dessas circulações, no seio das quais cativos são transferidos de Portugal para o Brasil e/ou do Brasil para Portugal. A região escolhida para a análise foi Minas Gerais no século XVIII, época em que a descoberta do ouro foi responsável por uma grande mobilidade humana na região. Venâncio concluiu, portanto, que os cativos do reino eram minoria entre os escravos, raramente chegando a representar 1% dos cativos da região. Esses escravos do reino nem sempre eram provenientes de Portugal, havendo aqueles que eram da Inglaterra, Holanda, Espanha, ou até mesmo cativos canarins e indianos. Havia ainda indígenas que foram para Portugal e outras partes da Europa, porém esse tipo de circulação não ocorreu durante muito tempo, pois os indígenas da América raramente sobreviviam naquelas regiões.
No capítulo seguinte, o autor analisa o caso de Angela da Cruz, nascida em 1716 em uma província do Alentejo. Sendo filha de uma escrava com o senhor, ela foi vendida depois da morte de seu pai/proprietário para o Rio de Janeiro, onde permaneceu até ser vendida novamente para outro senhor em São Caetano, freguesia de Mariana. Em 1737, depois de conseguir comprar sua alforria, casa-se com Domingos Fernandes de Carvalho, um português de origem humilde, mas que conseguiu ascender socialmente na América. Angela da Cruz morre jovem, sem nunca ter voltado para sua terra de origem, mas de acordo com seu testamento percebe-se que ela também ascende socialmente, pois demonstra práticas de uma elite senhorial e já não há nos documentos referência a sua “cor”.
O capítulo três é uma análise sobre a escravidão em Portugal. O autor relativiza as altas cifras do número de escravos do reino que a historiografia tem destacado. Segundo ele, a escravidão em Portugal era residual, embora em Lisboa o número de escravos fosse superior se comparada com outras regiões. Outro aspecto analisado neste capítulo é sobre as diversas tentativas em restringir o número de escravos africanos na Europa a partir do século XVIII.
Apesar dessas restrições, no capítulo quatro o autor procura demonstrar que, seja através do envio de presentes ou devido a aspectos físicos peculiares, a aristocracia do reino português não parecia querer abandonar o costume de ter em suas residências serviçais negros. O tráfico de pigmeus é reforçado ainda mais no século XVIII, quando surge o interesse pela história natural.
No capítulo cinco, o autor analisa detalhadamente as medidas tomadas por Portugal que tinham como objetivo diminuir o número de escravos no reino. A estratégia era criar medidas que permitissem que a escravidão terminasse de forma gradual, tanto que, de acordo com Venâncio, em nenhum momento foi decretada a abolição definitiva. No entanto, mesmo que essas restrições fossem válidas apenas para o reino, cativos do Brasil ficaram cientes desses alvarás, o que mostra que a circulação dos escravos do reino para a colônia e da colônia para o reino foram importantes para a divulgação de acontecimentos do outro lado do Atlântico. Como o autor procura destacar em sua obra, a circulação de escravos não era uma mera circulação de pessoas, mas também de valores e ideias.
Os capítulos seis e sete reforçam a ideia da importância da transmissão oral ao destacar que eram raros os escravos que sabiam ler e como os provérbios eram difundidos tanto para sublinhar os valores senhoriais como os valores dos cativos. Através dos provérbios, expectativas de vida e saberes eram transmitidos não somente pelo texto escrito, mas também pela oralidade.
No último capítulo o autor fala sobre os últimos senhores de escravos no reino. Apesar do fim da escravidão em Portugal ao longo do século XIX, ainda havia no reino donos de escravos que residiam no Brasil. Aos poucos esses senhores foram se desfazendo desses cativos, principalmente após a independência da colônia.
Como podemos perceber e como o próprio autor afirma, o livro não trata do tráfico de escravos tradicional, no qual o escravo após ser arrancado da África e enviado para a América tende a permanecer no Novo Mundo. As análises feitas pelo autor nos permitem pensar sobre outras formas de tráfico e a complexidade deste.
Venâncio destaca principalmente a presença de escravos que não eram provenientes da África. Havia escravos em toda Península Ibérica antes mesmo da expansão marítima, e não apenas nessa localidade, mas em várias regiões da Europa. A escravidão que foi recriada na América é proveniente dessa escravidão da Idade Moderna, que surge não no Atlântico, mas no Mediterrâneo. Esse fato, muitas vezes ignorado nas pesquisas acerca da escravidão na América, aparece de forma sutil no trabalho de Venâncio. Porém não é ignorado, mostrando inclusive como seria de extrema importância pesquisas sobre esses escravos ingleses, franceses, holandeses, canarins e indianos encontrados na documentação colonial brasileira.
O livro também nos permite pensar em como o tráfico permitiu a circulação não apenas de pessoas, mas de ideias, valores, notícias sobre diversos acontecimentos. Essas circulações aproximaram dois continentes separados pelo Atlântico, permitindo recriações e resignificações de modelos culturais que se influenciaram, completaram-se e se diferenciaram. Cria-se um novo mundo não apenas na América colonizada pelos europeus, mas na própria Europa onde surgem novos senhores de escravos, novos viajantes, aventureiros, homens bem sucedidos, cativos que passam de domésticos a trabalhadores rurais e indispensáveis à economia. Por que não dizer também que surge um novo mundo em África, parte integrante desse mundo conectado e essencial para o tráfico atlântico?
Cabe a nós pensar inclusive, que não foram apenas os escravos que permitiram a circulação de valores e tradições. Durante o século XVIII e início do XIX, as fronteiras entre países são fluidas, facilitando a circulação de diversas pessoas, distintas em suas origens, posições sociais, crenças, valores. Essas pessoas também contribuíram para a recriação desse novo mundo.
Cativos do Reino também nos mostra a importância de analisarmos exceções na história, que são de suma importância para evitar simplificações. Ao abordar um tema pouco analisado na historiografia sobre a escravidão na América, Venâncio nos mostra como, apesar de ser um dos temas mais pesquisados da história brasileira, ainda há tantos caminhos a percorrer.
Resenhista
Nicole de Oliveira Alves Damasceno – Doutoranda em História Social Universidade de São Paulo. E-mail: nicole_damasceno@yahoo.com.br
Referências desta resenha
VENÂNCIO, Renato Pinto. Cativos do Reino: A circulação de escravos entre Portugal e Brasil, séculos 18 e 19. São Paulo: Alameda, 2012. Resenha de: DAMASCENO, Nicole de Oliveira Alves. A excepcionalidade do tráfico: uma perspectiva da circulação de cativos no Império português. Temporalidades. Belo Horizonte, v.6, n.1, p.191-193, jan./abr. 2014. Acessar publicação original [DR]
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