Cativos do Reino: A circulação de escravos entre Portugal e Brasil, séculos 18 e 19 | Renato Pinto Venâncio

A obra “Cativos do Reino: A circulação de escravos entre Portugal e Brasil, séculos 18 e 19”, de autoria do professor doutor Renato Pinto Venâncio, foi lançada em 2012 pela editora Alameda. Ao longo de oito capítulos, o autor leva os seus leitores a repensar a escravidão sob uma vertente diferenciada. A perspectiva que se tem é a da movimentação e circulação de escravos. Entendida como um fenômeno referente à transferência de cativos de uma região a outra, em áreas externas ao continente africano, esta circulação envolvia também fatores essencialmente humanos, como o trânsito de valores e as ideias.

Logo no primeiro capítulo Venâncio traça um dos itinerários que irá percorrer em suas reflexões: as rotas de circulação de cativos no interior do império português, especialmente nas Minas Gerais colonial. As Minas foram um lugar de intensa circulação de pessoas e mercadorias pós-descoberta do ouro, lugar em que senhores, acompanhados por seus escravos, vindos de partes distantes do império luso, fixaram residência e buscaram enriquecimento sob influência da quimera aurífera.

Uma dessas rotas de circulação consistia no trânsito de cativos naturais de Portugal para as Minas. E embora tenha conseguido localizar alguma documentação relativa aos escravos nesse perfil, conclui-se que as informações acerca destes sujeitos são parcas. Quanto ao grupo de proprietários destes cativos, no entanto, Venâncio verificou que pertenciam aos estratos senhoriais mais elevados da sociedade mineira. O autor ressalta também a raridade de mulheres escravas entre os cativos de origem lusa que habitavam Minas Gerais. A explicação para tal fato se daria pela prática da alforria, que por uma série de motivos – já enumerados e estudados por diversos autores2 – esteve mais acessível às mulheres.

Mas as Minas, ao que tudo indica e parafraseando Guimarães Rosa3, foram muitas desde o seu início. O autor encontrou em Minas Gerais colonial registros de escravos vindos da Índia, da Holanda e de “nação espanhola”, o que ressalta, mais uma vez, o caráter cultural diversificado existente nessa localidade. Outra rota de circulação de cativos, ainda pouco explorada pelos estudiosos, consistia no envio de cativos africanos do Novo para o Velho Mundo4.

A pesquisa empreendida por Renato Venâncio destaca também as razões, além da própria natureza da escravidão, para a mobilidade dos cativos na América. A qualificação técnica dos escravos, por exemplo, era um dos fatores da mobilidade, sendo que alguns detentores de habilidades como alfaiates, barbeiros, carpinteiros e sapateiros, eram frequentemente comprados e vendidos nas mais variadas extensões do império. Outro fator de circulação de escravos residia na punição, que existia nas formas de degredo e perseguições, empreendidas pela Inquisição ou pela justiça civil.

No segundo capítulo da obra, Venâncio trata da trajetória da escrava Ângela da Cruz. Nascida em Portugal, Ângela foi um exemplo de cativa do reino que experimentou a mobilidade física. Filha ilegítima, ela foi vendida assim que o pai – “de quem era cativa” – faleceu. Nessa ocasião, Ângela estava com nove anos de idade e foi parar nas mãos de traficantes lisboetas que a levaram para o Rio de Janeiro. Para o autor, esse episódio na vida de Ângela revela uma justificativa a mais para o envio de cativos do reino para o Novo Mundo: era uma forma de se livrar dos bastardos.

No Rio de Janeiro, Ângela foi vendida para um morador das Minas Gerais e, após atravessar o oceano Atlântico, a pequena cativa experimentou outro deslocamento de longa distância, num trajeto que poderia levar de quinze dias a um mês. A partir da trajetória de vida dessa cativa, o autor realiza uma análise sobre a vida dos cativos nas Minas Gerais setecentistas, expondo de maneira interessante as diversas e intrigantes situações a que esses colonos estavam submetidos.

No terceiro capítulo o autor nos apresenta alguns fatos curiosos relacionados à convivência entre portugueses e afrodescendentes em Portugal. Na Lisboa setecentista, por exemplo, registrava-se uma inusitada moda cultural: o costume de brancos espirrarem quando deparados a afrodescendentes. A literatura da época também tinha a sua parcela de culpa na construção de uma imagem negativa sobre a população de cor, relacionando os negros a animais mal cheirosos e menosprezando-os pela cor da pele.

Ainda no terceiro capítulo o autor investiga a significativa presença de escravos em Lisboa, através de uma análise sobre a extensa bibliografia do tráfico de cativos para Portugal e Espanha na Época Moderna. Uma das ressalvas feitas por Venâncio, nessa questão, é a impossibilidade de se quantificar, ao certo, a presença de africanos no conjunto da população – quer seja pela inexistência ou pela pouca confiabilidade dos registros, quer seja pela diferença de posições, olhares e definições acerca da população africana.

O quarto capítulo, intitulado de “O tráfico de pigmeus”, traz uma reflexão interessante sobre algumas sociedades nas quais a presença dos escravos não estava ligada exclusivamente às atividades produtivas. A escravidão servia, nesses contextos, como símbolo de distinção social – função que também exerceu no Império Português. O autor relata que a existência de escravos que desempenhavam o papel de “bobos da corte” – também chamados de chocarreiros ou bufões – não foram incomuns no mundo Europeu. No entanto, o perfil dos bufões variou geograficamente, tendo sido os africanos, comuns na Península Ibérica, enquanto nas demais cortes europeias, observava-se a presença de brancos entre estes sujeitos.

É importante ressaltar que o bobo da corte era recrutado entre loucos, anões e negros, mas que, com o passar do tempo, o papel desempenhado por eles adquiriu uma dimensão política: era uma maneira de o monarca criticar e ridicularizar os excessos cometidos por nobres, sem criar problemas políticos profundos.

Na gravura abaixo – reconhecida pelos estudiosos da história da escravidão, por ilustrar a capa da mencionada obra da pesquisadora Silvia Hunold Lara – tem-se a representação de vários anãos negros. Segundo Venâncio, a pintura retrata a condição subalterna da nobreza portuguesa – representada pelos anãos e pigmeus vestidos como aristocratas – frente ao nascente absolutismo monárquico.

No século XVII, os bobos da corte foram desaparecendo da Europa e no século XVIII, chegando a ser considerados “vestígios dos tempos bárbaros”, devendo ser substituídos por filósofos. Em Portugal, os bufões reapareceram na corte setecentista, como “serviçais domésticos de aristocratas”. Segundo o autor, até um circuito de “microtráfico” foi organizado para atender à demanda por anões que desempenhariam o papel de “serviçais”.

O declínio da escravidão em Portugal é o assunto principal do quinto capítulo, que lança luz, especialmente, sobre o papel desempenhando pelos escravos nesse processo. A partir de uma análise sobre as legislações setecentistas publicadas em Portugal, o autor discursa sobre diversas situações em que os cativos demonstravam conhecer a legislação vigente e lançavam mão dela em benefício próprio. Dentre as legislações destacadas estão as leis promulgadas em Portugal em 1761, 1773 e 1776, que embora possuíssem um cunho moderado e que permitiam abertura para exceções, objetivavam diminuir gradualmente a presença de escravos na metrópole.

Um grupo de escravos que demonstrou particular conhecimento e apropriação dessa legislação foi o dos marinheiros. Ao que tudo indica, entre um porto e outro, as notícias corriam e formas de deixar o cativeiro – embasadas nas leis vigentes – foram traçadas pelos escravos. Até noutro lado do Atlântico tais notícias e estratégias aportaram e aos poucos os administradores coloniais foram se dando conta das implicações “calamitosas” que tal difusão de novidades causava. Além disso, é preciso lembrar que tais novidades encontraram, no Brasil, um terreno fértil, já que no contexto intelectual começavam a surgir propostas de reformas frente à escravidão. Decerto que esses projetos reformistas não criticavam frontalmente o sistema escravista, mas defendiam a necessidade de reformá-lo e racionalizá-lo.

Também importante nas ações de liberdade dos cativos, foi o papel desempenhado pelas irmandades negras. As irmandades ou confrarias eram instituições surgidas na Idade Média europeia, e se organizavam a partir de devoções religiosas em comum ou de acordo com grupos sócio – profissionais específicos5.

Em Lisboa setecentista existiam seis confrarias de grupos étnicos africanos, sendo a confraria de Nossa Senhora do Rosário a que mais se destacava na luta contra a reescravização de libertos. Os confrades do Rosário também procuravam proteger os irmãos maltratados por seus senhores e tentavam impedir que os mesmos fossem vendidos para o Brasil – o que era considerado, por muitos, o pior dos castigos. O que Venâncio evidencia, nesse quinto capítulo, é a importância das iniciativas dos escravos na aplicação e ampliação do sentido das leis que objetivavam extinguir gradualmente a escravidão.

Possivelmente o leitor atento encerrará a leitura do quinto capítulo com uma “dúvida” atrás da orelha: Afinal, como os cativos tomavam conhecimento sobre as leis escritas? Sabiam ler? E é no sexto capítulo que essas dúvidas são esclarecidas. O autor analisa até que ponto os escravos e libertos tinham acesso a textos escritos e como tal habilidade pode ser pesquisada e identificada através de diferentes fontes históricas. Contudo, algumas ressalvas devem ser postas ao se analisar a questão da leitura e da escrita entre os cativos, tais como: o fato de um sujeito – naquela época e na presente – saber escrever ou desenhar o próprio nome não significa que ele tenha o domínio pleno da escrita e da leitura. A principal fonte documental utilizada por Venâncio são os livros de ingressos nas Irmandades. A localidade investigada pelo autor é a cidade mineira de Mariana.

No século XVIII as irmandades estiveram submetidas ao aparato burocrático da política absolutista e foram obrigadas a manter um livro de matrícula em que constassem o nome, lugar de residência e a assinatura do irmão. Essa última informação foi o que “tornou possível uma primeira avaliação do número de indivíduos que sabiam desenhar, assinar ou simplesmente marcavam uma cruz entre o nome e o sobrenome”6. A partir dessa análise, o autor constrói algumas tabelas para expor os principais resultados encontrados – fornecendo aos leitores e pesquisadores um rico e fértil instrumento de pesquisa.

É indubitável que existiram cativos com algum domínio da leitura e da escrita – embora tenhamos que admitir que certamente, estas foram ocorrências excepcionais. O que fica evidente é a importância da cultura oral – em suas variadas formas – para toda a população escrava, nas diferentes partes do império português. Afinal, os portugueses sabiam que letramento e escravidão eram incompatíveis, tendo-se em vista que tal habilidade aumentava a eficácia das revoltas e dava origem a falsificações de cartas de alforria.

No sétimo capítulo são esmiuçadas algumas formas de cultura oral que circulavam pelo império lusitano. Entre os cativos circulavam informações e experiências nas senzalas. O autor volta suas reflexões para a análise dos provérbios e máximas que circulavam no mundo luso – brasileiro dos séculos XVII e XVIII. Ressaltando que os adágios eram registrados em livros pela elite letrada, o autor também destaca que é preciso compreender os ditos populares como um posicionamento crítico frente à realidade que ora reafirma as tradições e ora revela as novas expectativas de vida da população. Outro aspecto fundamental que precisa ser ressaltado é que a circulação desses saberes, que utilizavam tanto o texto escrito quanto à oralidade, era resultado, muitas vezes, do intercruzamento de tradições e de culturas.

Os provérbios guardavam lições morais direcionadas a vários setores da sociedade: às mulheres, ao rei, aos senhores de escravos e aos escravos. Segundo Venâncio, alguns provérbios chegavam até mesmo a questionar a legitimidade da escravidão. Mas o que a circulação de cativos no império lusitano tinha a ver com a popularização dos adágios? Tudo. Basta lembrar que a venda de um cativo de uma região para outra implicava também em difundir essas tradições de um local para o outro e que os cativos vindos do reino ou de outras partes do império certamente tiveram algum papel na difusão dos valores das camadas populares – valores que eles conheciam bem.

O último capítulo da obra, chamado de “Os últimos senhores do reino”, debruça-se sobre o fim da escravidão em Portugal, ao longo do século XIX. Embora não tenha existido uma lei específica que proclamasse a abolição da escravidão em Portugal, decretos e leis que caminhavam no sentido da extinção da escravidão foram postos em prática. Nesse ínterim, o autor também aborda a transição da mão de obra escrava para o trabalho livre, no Brasil. Outro ponto interessante tratado no capítulo diz respeito às transações de venda, compra e de alforrias de cativos que aconteciam à distância e por meio de procurações – resultado de uma camada residual de senhores de escravos que viviam em Portugal e deixaram seus cativos e outros bens no Brasil. Venâncio encerra o livro concluindo que a circulação dos cativos aconteceu pelos oceanos e também internamente à sociedade colonial.

Embora a própria natureza da escravidão nos trópicos exigisse uma constante circulação, a tendência entre os senhores de escravos era manter uma escravaria estável, uma vez que a venda de um cativo podia implicar em separações familiares, gerando conflitos que podiam desestabilizar o sistema. A revenda significava para os habitantes da senzala, mudanças impostas, uma punição cruel. Assim, a estabilidade e controle da escravaria significaram, muitas vezes, a concessão e a negociação de pequenos espaços, como a chamada “brecha camponesa”. O desempenho de atividades agrícolas pelos cativos, dentro das propriedades senhoriais, de forma autônoma, era uma forma de mantê-los “em paz”.

Certamente, os portugueses que migraram para o Novo Mundo, tiveram que se moldar aos espaços e negociações que a escravidão nos trópicos exigia. E o papel que os cativos do reino desempenharam nessas adaptações não pode ser desprezado. Essa obra revela muito mais que do que a circulação de escravos pelo império português. O autor mostra como esse trânsito de pessoas também fora um trânsito cultural, permeado por tradições, inovações e readaptações. Sem dúvidas uma obra que deve ser lida não só por pesquisadores do tema, mas também por aqueles que desejem conhecer a história da escravidão, sob uma ótica renovada e que não despreza, em sua análise histórica, a dimensão humana das relações escravistas.

Notas

2. Destacam-se entre estes estudos: SILVA, M. B. N. da. História da Família no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. FURTADO, J. F. Chica da Silva e o contratador de diamantes: O outro lado do mito. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. PAIVA, E. F. Escravos e libertos em Minas Gerais: Estratégias de resistências através dos testamentos. 3ªEdição. São Paulo: Annablume, Belo Horizonte: PPGH-UFMG, 2009. KARASCH, M. C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro. 1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. FARIA, Sheila de C. Sinhás pretas, damas mercadoras: As pretas minas na cidade do Rio de Janeiro e de São João Del Rei.Tese apresentada ao Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. Concurso para professor titular em História do Brasil. Niterói: (manuscrito), 2004. RUSSEL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

3. Referência ao escritor mineiro João Guimarães Rosa, a quem é atribuída a seguinte frase: “Minas, são muitas. Porém, poucos são aqueles que conhecem as mil faces das Gerais.”

4. Sobre esse assunto, existem algumas obras referenciais, tais como: CUNHA, Manoela Carneiro da. Negros, Estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. 2ª Edição (Revista e ampliada). São Paulo: Companhia das Letras, 2012. SILVA, Alberto da Costa e. Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Ed. UFRJ, 2003. SILVA, Alberto da Costa e. Francisco Félix de Souza, mercador de escravos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: EDUERJ, 2004.

5. VENÂNCIO, Renato Pinto. Cativos do Reino: A circulação de escravos entre Portugal e Brasil, séculos 18 e 19. São Paulo: Alameda, 2012, p. 172.

6. Idem, p. 173.


Resenhista

Rogéria Cristina Alves – Graduada em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFPO), mestre em História Social da Cultura pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e atualmente ocupa o cargo de Analista Educacional na Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais. E-mail: rogeriaufmg@gmail.com


Referências desta Resenha

VENÂNCIO, Renato Pinto. Cativos do Reino: A circulação de escravos entre Portugal e Brasil, séculos 18 e 19. São Paulo: Alameda, 2012. Resenha de: ALVES, Rogéria Cristina. “Cativos do Reino”: trânsito de pessoas e culturas no império português. Revista Ultramares. Maceió, n.3, v.1, p. 177- 183, Jan./Jul. 2013. Acessar publicação original [DR]

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