Gilberto Freyre, autor da obra a qual é objeto de análise do presente trabalho, era graduado em Ciências Sociais e Artes nos Estados Unidos. Ficou muito conhecido, no Brasil e no mundo, após escrever Casa Grande & Senzala, publicado em 1933, razão de algumas inovações que a obra trouxe para campos das ciências humanas como a antropologia, sociologia e a história1. A pesquisa que originou a obra Casa Grande & Senzala iniciou em Lisboa, no ano de 1930. Depois de o autor estabelecer-se por um tempo na Bahia, conhecer parte do continente africano (Dacar e Senegal), e rumar para Lisboa.
O caráter inovador que Casa Grande & Senzala detinha dentro do campo historiográfico resultou da análise de alguns tipos de fonte que Freyre utilizou para compor sua obra. Tais fontes não eram utilizadas anteriormente por historiadores no Brasil. Algumas fontes empregadas por Freyre em sua obra são: manuscritos; documentos oficiais (guias e almanaques regionais, diários oficiais, publicações de prefeituras); e pessoais (diários de senhores de engenho, álbuns de famílias); litogravuras; fotografias; mapas; plantas de casas e engenhos; – entre outros documentos oficiais que teve acesso em arquivos nacionais lusos e brasileiros. O conhecimento adquirido através de entrevistas e conversas sobre o cotidiano dos brasileiros durante o período pesquisado auxiliou o autor durante a escrita de sua obra. Explorou muito bem os materiais os quais teve acesso, e modificou a historiografia brasileira ao utilizar a oralidade como fonte histórica.
A proximidade com a temática que aborda em seus escritos também o amparou na escrita, pois Freyre é contemporâneo do período pós-abolicionista, nasceu em 1900 em Recife. O autor explorou muitíssimo bem outras diversas teorias que suscitavam no período de escrita de Casa Grande & Senzala. Contrapondo, durante a obra, alguns autores que sustentavam ideias que afirmavam através da biologia o caráter de cada raça a fim de essencializar, de forma científica e racista, a hegemonia da “raça branca” perante as outras. Porém, Freyre também comete alguns deslizes, como o desejo de constituir o “ser brasileiro” a partir da mistura de três diferentes culturas (a indígena, a africana e a europeia – neste caso, a portuguesa). O autor deixa o âmbito biológico e adentra o universo da cultura. Freyre acaba hierarquizando as culturas e tratando da conquista territorial brasileira, do genocídio indígena e africano como realidades não violentas. Há um paternalismo português presente na escrita de Freyre, e a forte presença do catolicismo que pretendem atenuar as realidades conflitantes, demonstrando como as culturas se entrelaçam e juntas compõe a verdadeira essência brasileira.
Os capítulos aos quais detive minha leitura, e através destes está orientada a análise, tratam – como os próprios títulos já revelam –, de uma escrita contínua sobre a presença do escravizado negro na vida sexual e de família do brasileiro. Apresentarei alguns aspectos os quais dei mais importância do que outros, e os abordarei de forma sintética, para que posteriormente possa construir uma análise crítica do texto mais compreensível.
Em um primeiro momento o autor pretende demonstrar as raízes indígenas e/ou africanas que, segundo ele, estariam presentes em toda sociedade brasileira de forma cultural (modo de ninar os bebês, na culinária, no brincar das crianças e até no início da vida sexual dos homens). Neste trecho, com supressões, o autor demonstra como escravizados acabavam fazendo parte do cotidiano da família brasileira:
[…] um jovem de família […] para excitar-se diante da noiva branca precisou, […] de levar para a alcova a camisa úmida de suor […] da escrava negra sua amante. […] se sente a sombra do escravo negro sobre a vida sexual e de família do brasileiro.” (FREYRE, G. 1933, p. 368).
Ao longo do primeiro capítulo Freyre debate a criação de diversos tipos de estigmas através da biologia, como o suor dos corpos negros.
[…] Diferenças interpretadas como de superioridade e inferioridade e ligadas a traços ou caracteres físicos. Aliás, na inferioridade ou superioridade de raças pelo critério da forma do crânio já não se acredita; e esse descrédito leva atrás de si muito do que pareceu ser científico nas pretensões de superioridade mental, inata e hereditária, dos brancos sobre os negros. (FREYRE, G. 1933, p. 377-78)
O trecho acima demonstra que Freyre não embasava seus estudos e escritos em teorias científicas racistas. Porém, algumas características moralizantes e essencialistas também aparecem, a fim de entender e procurar diferenças entre brancos, negros e indígenas. Expõe seu conhecimento sobre as diferentes áreas africanas e suas respectivas populações, com seus diversos artifícios culturais.
Também demonstra a dicotomia presente entre negros e negros em condições de escravização, e aponta este como o erro grave de Nina Rodrigues2, pois para Freyre é impossível separar o negro introduzido no Brasil de sua condição de escravização. “A escravidão desenraizou o negro do seu meio social e de família, soltando-o entre gente estranha e muitas vezes hostil. […] seria absurdo esperar do escravo outro comportamento senão o imoral […]”. (FREYRE, G. 1933, p. 398). Freyre concebe que o crédito de responsabilidade à dicotomia do sistema econômico é promovido pela relação estabelecida entre senhores, filhos de senhores de engenho e as mulheres negras escravizadas.
No capítulo seguinte, que é a continuação do anterior, Freyre utiliza muito o relato de viajantes que passaram pelo Brasil no período ao qual o autor remete-se. O que se segue ao longo do capítulo é uma sucessão de comparações entre brancos e negros no Brasil, como por exemplo: a infância do menino branco e a infância do menino negro, etc. As diferenças ao acesso a educação, a leitura e escrita ficam bem evidentes. Neste capítulo questões de gênero são trazidas em todo momento: como as mulheres brancas e negras comportavam-se; formula-se sobre a moral destas diferentes mulheres em diferentes abordagens. A fim de ilustrar essas questões, as mulheres negras na obra eram tidas como representantes da tentação e do pecado. A relação com a religião também aparece neste capítulo, e como negros e brancos eram unidos perante o cristianismo. Porém, também havia formas de mistura e sincretismo religioso, como por exemplo: “[…] benze-a com azeite e logo te sarará.” (FREYRE, G. 1933, p. 522) No trecho da cantiga cristã, podemos observar a presença de um sincretismo religioso, pois, a arte de benzer para curar é característica de religiões de matriz africana. Diferenças em rituais fúnebres também são abordadas nesse capítulo, a forma como escravizados podiam enterrar seus mortos e como brancos enterravam os seus. A culinária, as festas e ritos, a alegria dos negros aparece na análise do autor, visando positivar a presença de negros em diversos âmbitos da sociedade brasileira. Porém, foi possível observar que em diversos momentos Freyre emprega um caráter caricato e folclórico a imagem do negro. Como já havia sido relatado no presente trabalho, uma essencialização e moralização da figura do negro, a fim de formar um estereótipo do “negro alegre”. Apesar de, ao fim do capítulo, refletir um pouco sobre o banzo – a saudade da África, a tristeza e a saúde precária do povo africano dentro do território brasileiro.
A cultura afro-brasileira é caracterizada por Freyre como uma infiltração na vida do brasileiro. Como algo que faz parte do imaginário de “ser brasileiro”, de uma forma independente da criação de um “ser brasileiro” ideal. Isto é, Freyre nos apresenta diversas características, que seriam intrínsecas a população negra, e que ao mesmo tempo já estão presentes em diversos espaços da cultura brasileira “em criação”. Freyre, ao debater com diversos teóricos sobre as ideias científicas e biológicas que buscam hierarquizar os seres humanos através das raças, não nega a ciência e seus dados repletos de verdades. Visto que, se utiliza de argumentos climáticos e geográficos para afirmar certas questões a respeito da população negra e sua relação com os brasileiros brancos.
Além dessas observações, de um campo mais geral, também pude observar – através dos estudos de gênero3, por meio dos quais desempenho minhas pesquisas –, uma forte objetificação dos corpos das mulheres. Intensificando-se quando se trata dos corpos das mulheres negras. O autor acredita em algumas características que seriam essenciais a todas as mulheres negras. Como, por exemplo, o fator da sexualidade aflorada, que faria com que os homens das famílias brasileiras fossem coagidos a relacionarem-se sexualmente com as mulheres negras fora de seus casamentos. Assim como o autor usa do exemplo da prostituição, quando relata que mulheres brancas agenciavam mulheres negras, fazendo a prostituição no Brasil ter um caráter racial no período que o livro trata.
Os legados da escravidão no Brasil em termos de dominação racial e de gênero e as desigualdades da sociedade pós-abolição conduziam a experiências sociais diferentes para mulheres negras e brancas: problemas presumivelmente comuns, como sexualidade, saúde reprodutiva e trabalho remunerado passaram a ter significações diferentes para mulheres negras e brancas. Ao reconhecer essas diferenças, as mulheres negras no movimento feminista passaram a desafiar noções generalizadas da opressão de mulheres que não levavam em conta a relação entre ideologia patriarcal e racismo. (CALDWELL, L. 2000, p.9.)
É possível observar, através da leitura de Kia Caldwell, que a relação entre gênero e raça devem ser consideradas sempre. A generalização das mulheres negras é notadamente vista através da história, e na obra de Freyre também é deveras presente. O fato do autor utilizar a categoria de gênero para criar estereótipos, e prover a todas mulheres negras certos comportamentos “negativos”, demonstra como essencializar o “ser mulher negra” é de fato de cunho racista.
Contudo, a obra Casa Grande & Senzala nos concede um aporte teórico, político e antropológico do período que não tínhamos acesso anteriormente. A obra, atualmente, tem diversas prerrogativas as quais são criticadas e muitos a deslegitimam. Porém, se Casa Grande & Senzala é utilizada da forma como a compreendemos em nossas aulas e debates, a leitura é muito enriquecedora. Pois, nos concede um amplo panorama da intelectualidade do período, suas ideias, teses, autores, e como suas teorias foram ou não assimiladas através do tempo. Freyre, por exemplo, era contra as teorias biológicas, vindas de uma vertente racista dentro da biologia e que servia para argumentar a utilização de mão de obra escrava, ou de lugares específicos dentro de uma sociedade estratificada. Todavia, acaba caindo no mito das três raças (o qual já foi referido anteriormente no texto), que também é considerado racista posteriormente. Isto porque acredita na grande influência da raça branca, neste caso a portuguesa, perante os indígenas e os negros. Freyre também acaba criando um estereótipo do que é “ser negro” no Brasil, com fatores essencialistas e moralizantes.
Sendo assim, acredito que a leitura do texto é muito válida, mesmo que em diversos momentos seja um pouco difícil ler, pois o autor utiliza palavras e argumentos machistas e racistas. Em contrapartida, como já dito anteriormente, a obra pode ser utilizada se for bem contextualizada e problematizada. Expondo a forma como aborda as questões que aqui foram trabalhadas, no devido contexto no qual foram escritas, e debatidas criticamente a partir destas ressalvas. Pensando que se a obra for apresentada sem as devidas elucidações, esta poderá vir a ser usufruída de forma desfavorável. Dessa maneira, acho muito importante conhecer a origem de diversas prerrogativas que ainda estão presentes na sociedade brasileira. Se lembrarmos das estereotipização de formas caricatas e folclóricas, que formam esse imaginário sobre o negro brasileiro, veremos que este tipo de apropriação ainda é presente. A título de exemplo, personagens de filmes e novelas brasileiros, onde nota-se a presença de homens negros como “brincalhões” e “piadistas”, e a mulheres negras retratadas como empregadas domésticas e hipersexualizadas4. Esse racismo velado e o mito da democracia racial ainda regem os pilares constituintes do Estado brasileiro. Mesmo que já existam diversas ações afirmativas com o objetivo de atenuar as desigualdades sociais, o racismo institucional e no próprio cotidiano se demonstram impunes. Reflexos de uma pequena parcela da população brasileira remanescente das oligarquias que não poupam esforços na manutenção de seus privilégios, e que nunca deixaram de perpetuar as diferenças entre as Casas Grandes e Senzalas por todo Brasil.
Notas
1 Atentarei apenas para as inovações dentro do campo historiográfico, visto que, a obra foi lida e esta análise escrita por uma estudante de história.
2 Antropólogo brasileiro, Freyre debate muito com as teses de Nina Rodrigues.
3 Gênero como uma categoria de análise histórica, dada em determinado recorte temporal e social. Utilizado neste trabalho a partir da autora Joan Scott, que compreende gênero como uma forma primária de relações de poder. Estas relações de poder que definem, de certa forma, e concebem estereótipos e essencializações do “ser mulher”.
4 “Sexo e as Nega”, série de TV produzida pela Globo em 2014. Foi possível observar a falta de empatia. abordando o tema das mulheres negras ao retratá-las de forma extremamente estereotipada e racista. Para saber mais: https://www.geledes.org.br/sexo-e-nega-uma-porra-mais-uma-vez-mulheres-negras-sao-estereotipadas-em-suasexualidade/#gs.GJFKHqw (Acesso em 28/06/2017).
Referências
CALDWELL, Kia Lilly. Fronteiras da diferença: raça e mulher no Brasil. In: Estudos Feministas. Florianópolis: UFSC, volume 8, nº 2/2000.
FREYRE, Gilberto. O escravo negro na vida sexual e de família do brasileiro. In: ________. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. – 51ª ed. rev. – São Paulo: Global, 2006. 727 p.
FREYRE, Gilberto. O escravo negro na vida sexual e de família do brasileiro (continuação). In: _________. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. – 51ª ed. rev. – São Paulo: Global, 2006. 727 p.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade e Educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 1997.
SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, p. 71-99.
Resenhista
Renata Coutinho Ferreira – Graduanda em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: coutinhohp@gmail.com
Referências desta Resenha
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006. 51ª Ed. rev. Resenha de: FERREIRA, Renata Coutinho. Uma breve análise da obra de Gilberto Freyre no contexto atual: pensando em raça, gênero e classe. Laboratórios de História. Rio de Janeiro, ano 2, n. 2, p. 229-234, jun. 2018. Acessar publicação original [DR]
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