CASTELO, Cláudia; JERÓNIMO, Miguel Bandeira (org). Casa dos Estudantes do Império: Dinâmicas Coloniais, Conexões Transacionais. Lisboa: Edições 70, 2017, 271 pp. Resenha de: ALMADA e SANTOS, Aurora. Ler História, v.72, p.238-241, 2018.
Cláudia Castelo e Miguel Bandeira Jerónimo apresentam-nos um livro cujos capítulos resultam das comunicações apresentadas num colóquio internacional realizado em Lisboa, em 2015. A obra tem por ambição cumprir dois objetivos: refletir sobre as diferentes facetas da Casa dos Estudantes do Império e estabelecer uma relação com a mobilização transnacional de ideias, atores e práticas por parte dos estudantes. Num momento em que se assinala o 50º aniversário dos movimentos estudantis de Maio de 1968 em França, que tiveram repercussões em inúmeros países, o livro vem problematizar uma dimensão da contestação ao colonialismo português que, como os próprios organizadores reconhecem, tem recebido um tratamento superficial.
2A publicação do livro permite-nos estabelecer o diálogo com outra literatura recente que tem sido produzida quanto ao processo de descolonização europeu e português no pós-II Guerra Mundial. Fazendo um grande uso de fontes primárias, a obra encontra-se estruturada em treze capítulos, dos quais o primeiro, ao abordar o contexto nacional e internacional, serve de enquadramento para os demais autores explorarem as suas temáticas. Os nove capítulos seguintes reportam-se às especificidades da Casa dos Estudantes do Império, ao passo que os últimos três remetem-nos para outras realidades onde igualmente teve lugar o entrecruzar entre as ações das organizações estudantis e a contestação ao domínio colonial ou às decisões dos governos pós-coloniais.
3Seguindo-se à introdução dos organizadores, o primeiro capítulo, da autoria de Valentim Alexandre, embora sem trazer novidades substanciais, faz um ponto de situação do contexto no qual a Casa dos Estudantes do Império atuou. As considerações apresentadas vão de encontro às que o autor tem vindo a veicular nos seus trabalhos, reafirmando que a resistência portuguesa à descolonização assentava na irrealidade política, tendo havido uma conjugação entre o reformismo e a repressão como forma de salvaguardar a manutenção das colónias. Mais inovador, o capítulo de Margarida Lima de Faria e Sara Boavida incide sobre a análise sociológica dos membros da Casa, tendo por base a informação disponível nas fichas de associados das delegações de Lisboa, Coimbra e Porto conservadas no Arquivo da PIDE/DGS. Os dados reproduzidos permitem-nos estabelecer comparações e conhecer o número, a naturalidade, as idades, a profissão, o nível de ensino ou as áreas de estudo dos sócios. Contudo, como indicado pelas autoras, tal informação não pode ser considerada como definitiva, pois existe um conjunto de perguntas às quais ainda não permitem dar resposta.
4O terceiro e o quarto capítulos particularizam as vivências dos membros goeses, cabo-verdianos e guineenses da Casa. Retratados por Aida Freudenthal, os estudantes goeses são apresentados como tendo sido influenciados pelo convívio com associados de outras colónias, o que terá contribuído para a sua consciencialização política. Embora refira as reações dos estudantes quanto aos acontecimentos de Dadrá, Nagar-Haveli e Goa, o capítulo não faz uma caracterização cabal dos sócios goeses. A análise efetuada poderia ser mais consistente se, a título de exemplo, a autora tivesse também traçado o percurso de alguns desses estudantes dentro e fora da Casa. Quanto aos cabo-verdianos e aos guineenses, o capítulo de Ângela Coutinho interliga-se com o de Margarida Lima de Faria e Sara Boavida, onde vai buscar dados sobre os sócios nascidos em Cabo Verde e na Guiné. Concluindo que as experiências vividas em Portugal pelos estudantes foram relevantes para os futuros movimentos de libertação, a autora esclarece no entanto que a Casa dos Estudantes do Império não terá sido um local privilegiado de recrutamento dos dirigentes do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). São apontados espaços de sociabilidade política alternativos como o liceu Gil Eanes, em Cabo Verde, o que permite enquadrar a Casa dos Estudantes do Império na devida perspetiva, não sobrevalorizando a sua importância para os nacionalistas cabo-verdianos e guineenses.
5Num capítulo com bastante profundidade, Alexandra Reza debruça-se sobre o boletim Mensagem publicado pelos sócios da Casa dos Estudantes do Império. Examinando o boletim, Reza infere que os estudantes da Casa cunharam o conceito de unidade com diferença, para contrariar o de unidade sem diferença veiculado por Portugal, e que procuraram estabelecer ligações não somente entre as diferentes realidades existentes nas colónias portuguesas mas também com o que se passava além-fronteiras. A autora entende que utilizaram plataformas internacionais, como a revista Présence Africaine, indicando que aqueles que lutavam contra o colonialismo situavam-se no cruzamento entre fronteiras linguísticas e imperiais. Apoiando-se em reflexões quanto ao papel da literatura nas lutas de libertação, no capítulo subsequente, o sexto, Inocência Mata detalha as obras de ficção publicadas na coleção “Autores Ultramarinos”, organizada pela Casa. Verificamos porém que a autora ultrapassa o seu objetivo inicial, pois além de abordar as questões sugeridas pelas obras de ficção faz igualmente uma incursão na poesia produzida pelos estudantes, considerando que em alguns casos constituíam uma escrita de memórias.
6Victor Andrade de Melo questiona no capítulo sétimo se o envolvimento dos membros da Casa dos Estudantes do Império em atividades desportivas poderá fornecer elementos sobre a dinâmica de funcionamento da associação. Na sua principal conclusão, entende que existiu uma correlação entre desporto e atividades políticas, tendo o primeiro sido utilizado para escapar à vigilância que o aparelho repressivo do Estado Novo exerceu sobre a Casa. No seguimento de tais afirmações, Marcelo Bittencourt discorre sobre a diversidade, as escolhas e os contextos nas memórias referentes à instituição. Apesar do seu interesse, a abordagem efetuada por Bittencourt é ainda assim em grande parte genérica, focando-se superficialmente nas trajetórias e lembranças dos sócios angolanos, o que de início foi definido como o seu interesse principal.
7Uma outra perspetiva quanto à memória associada à Casa dos Estudantes do Império é introduzida por Margarida Calafate Ribeiro no capítulo nove, sobre os filhos dos associados. Todavia, poucos são os detalhes quanto ao conteúdo das memórias da segunda geração, os designados “filhos da Casa”, que a autora se propôs estudar. O texto aborda questões teóricas em torno da pós-memória, que somente de forma muito superficial são colocadas em diálogo com as experiências dos filhos dos associados da Casa dos Estudantes do Império. O livro ganharia em profundidade se esse capítulo fosse alargado, com a promoção desse diálogo. A finalizar a secção dedicada à Casa dos Estudantes do Império, a obra contempla um capítulo de Manuela Ribeiro Sanches que tenta explorar a contribuição dos associados para a descolonização da Europa, entendida enquanto libertação do colonizador à semelhança da libertação do colonizado. Concluindo que esse processo de descolonização ainda estava por concretizar, a autora que de início tinha o propósito de analisar os contributos de um grupo de estudantes salienta no entanto a figura de Mário Pinto de Andrade, na qual centra a sua narrativa.
8Como referido anteriormente, os últimos capítulos destinam-se a inserir a Casa dos Estudantes do Império na história transnacional do anticolonialismo e da contestação estudantil. Esse esforço é concretizado através de estudos de caso que se reportam a França, ao Reino Unido e ao Daomé, o que constitui indiscutivelmente um dos pontos fortes da obra, dado que permite-nos contextualizar melhor as atividades da Casa. No que se refere a França, Nicolas Bancel procura evidenciar que a radicalização dos movimentos estudantis coloniais esteve intimamente relacionada com os acontecimentos da guerra da Argélia. Para o Reino Unido, Hakim Adi expõe-nos o envolvimento dos estudantes africanos nas atividades anticoloniais, estudando a African Association, a West African Student Union, a Pan-African Federation ou o Committee of African Organisations. Por fim, Alexander Kesse foca-se na participação da Front d’Action Commune des Etudiants et Elèves du Nord na discussão sobre a evolução do Daomé após a independência, apresentando os estudantes daomeanos enquanto atores políticos.
9O final da obra consiste num posfácio de Cláudia Castelo, que deixa-nos pistas para futuras investigações sobre a Casa dos Estudantes do Império. Assim, Cláudia Castelo propõe que no futuro o programa de pesquisa contemple as causas que nortearam o comportamento do estado em relação à Casa, a comparação com outras associações de estudantes africanos e asiáticos nas metrópoles e nas colónias, o estudo da instituição no contexto de uma história compartilhada da solidariedade anticolonial, o cruzamento com a história social dos migrantes coloniais em Lisboa, a análise das formas de solidariedade antifascista e anticolonialista que a influenciaram e/ou foram por ela alimentadas, o exame do seu contributo para a disseminação do internacionalismo negro e as histórias de vida dos seus associados. Tais sugestões evidenciam que falta ainda explorar muitas dimensões sobre a temática, embora o livro no essencial atinja os objetivos propostos inicialmente. Efetivamente, retrata uma imagem matizada e pouco linear da Casa dos Estudantes do Império, que é enquadrada numa dimensão transnacional. Não obstante algumas debilidades, com o livro os nossos conhecimentos sobre o tema são consideravelmente enriquecidos, sendo que da publicação podemos retirar contributos para a promoção de novas preocupações historiográficas.
Aurora Almada e Santos – IHC – NOVA FCSH, Portugal. E-mail: auroraalmada@yahoo.com.br.
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