Cartografias da História da Historiografia Portuguesa / Revista de Teoria da História / 2017
Apresentamos nesse número o dossiê Cartografias da História da Historiografia Portuguesa, no qual divulgamos a produção historiográfica lusitana recente em autores de diversas universidades portuguesas (Universidade de Coimbra, Universidade Nova de Lisboa e Universidade do Porto). O objetivo principal desse dossiê coaduna com a proposta geral dessa revista: o esforço continuo de historicizar o sujeito objetivante, afim de pensar o que “fazem os historiadores quando fazem historia”. No entanto, há dentro desse campo especializado na “auto-análise” disciplinar especificidades próprias em seus “sub-campos”, como é o caso especifico da História da Historiografia. A HH não pode ser confundida com as demais disciplinas fronteiriças, como a história intelectual, teoria da história, metodologia ou mesmo a escrita da história. O esforço de separar a HH enquanto campo autônomo vem levando uma série de historiadores a afirmar, no Brasil, a emergência de uma “comunidade acadêmica” cada vez mais preocupada com a “analítica da historicidade1”.
Entretanto, esse não é um esforço somente da intelectualidade brasileira, em outros países encontramos projetos similares nessa espécie de “giro historiográfico”. Neste dossiê, pretendemos demonstrar a partir de uma série de autores a contribuição portuguesa para o debate da “História da Historiografia2”. Essas cartografias permitem delinear percursos evidenciando as dimensões estéticas e políticas das narrativas historiográficas situadas em seus distintos tempos, fazendo um exercício análogo ao da “teoria da ideologia” e da “sociologia do conhecimento” ao perscrutar as visões de mundo que subjazem às produções intelectuais e as suas repercussões históricas. Esse esforço de analisar a historicidade da história-conhecimento pode ser encontrada nos diversos recortes temporais e análises dos sete textos que formam esse dossiê.
Nos dois primeiros artigos o foco reside na produção da historiografia portuguesa sobre o período medieval. No primeiro texto “História política e a periodização da História de Portugal: problemas, métodos e soluções” a historiadora Judite A. Gonçalves de Freitas faz uma análise das periodizações sobre o período medieval na historiografia portuguesa, nomeadamente, no quadro de uma nova “história política”, contextualizando as escolhas dos autores (sistema cronológico e o domínio historiográfico preferido). No outro artigo com foco no medievo, Pedro Alexandre Guerreiro Martins em “Uma época de grandeza: Idade média, decadência e regeneração na historiografia portuguesa (1842-1942), faz um balanço da historiografia portuguesa sobre a Idade Média no período entre 1842-1942 a partir das discussões historiográficas sobre a decadência nacional.
Nos dois próximos artigos, Eurico Gomes Dias “A excelência historiográfica nos primórdio da Academia Real das Ciências de Lisboa (1779-1820)” e a “Historiografia Portuguesa da época moderna” de Margarida Sobral Neto, o foco volta-se para a historiografia do período “moderno”. No primeiro, Eurico analisa os múltiplos esforços de renovação da escrita historiográfica portuguesa por meio da Academia Real das Ciências de Lisboa (1779). Para isto, perscruta a compilação das Memórias de Litteratura Portuguesa (vols. I-VIII, 1792-1814), afim de mapear os debates e autores dessa historiografia do fim do século XVIII e inicio do XIX. Já no outro artigo, Margarida Sobral Neto faz um balanço da historiografia sobre o período moderno em Portugal (séculos XVI e XIX) desde os anos 1970 até o fim do século XX, evidenciando os diversos elementos (recortes temporais, escolhas teóricas, etc) que constituem esse vasto corpo de conhecimento sobre o tema.
Nos quatro últimos artigos o foco reside nos debates historiográficos sobre o período contemporâneo. No primeiro texto “O problema da emigração e do exílio em Portugal: imagens e análises (1910-1974)” Heloisa Paulo reconstrói as diversas imagens construídas sobre o emigrante e os exilados nos regimes vigentes em Portugal entre 1910-1974, focando no caso do português no Brasil. Concomitante a este esforço, a autora também evidencia a historiografia sobre o tema. Já no segundo texto “História e historiografia, património cultural e museologia, lazer e turismo culturais: uma abordagem deontológico-epistemológica e teórico-metodológica”, João Paulo Avelãs Nunes evidencia as principais concepções disciplinares sobre o patrimônio cultural e da museologia, evidenciando as principais correntes historiográficas: desde o paradigma tradicional, o novo património cultural até o paradigma pós-moderno.
No artigo de Nuno Bessa Moreira em “Onde vais história da historiografia? Caminhos e problemas – Da geração de 1939-45 até aos finais dos anos 80: esboço de um balanço historiográfico” busca reconstituir o papel da História da Historiografia em Portugal, dando ênfase na análise crítica de alguns autores como Vitorino Magalhães Godinho, Joaquiam Barradas de Carvalho e A. H. Oliveira Marques. Por fim, no ultimo artigo desse dossiê “Colonialismo demográfico português em Angola: Historiografia, Identidade e Memória”, de Fernando Tavares Pimenta, há uma análise sobre os limites da historiografia portuguesa diante do “colonialismo demográfico” em Angola (e nas colônias em geral), analisando também a identidade nacional da Angola Pós-colonial a partir do prisma da memória histórica.
Esperamos com esse dossiê contribuir para sanar em parte o vácuo que ainda existe no conhecimento da historiografia e teoria da história portuguesa no Brasil, ainda tão desconhecida em seu passado presente no Brasil. Historiadores como Vitorino Magalhães Godinho, Joaquim Barradas de Carvalho, A. H. de Oliveira Marques, Luis Reis Torgal, Fernando Catroga e outros precisam ser lidos não somente por especialistas em Portugal / Brasil Colonial, mas também por todos aqueles interessados em um debate teórico-historiográfico cosmopolita.
Além do dossiê, publicamos também quatro artigos avulsos e duas entrevistas. Paulo Ângelo de Meneses Sousa, em seu artigo “A reconstituição dos discursos em Heródoto”, analisa os princípios metodológicos empregados por Heródoto em seu empreendimento voltado à reconstituição dos discursos do “debate persa”. O autor trabalha com a ideia de que tal processo de reconstituição implicaria tanto em uma necessária dimensão de construção ficcional como no tratamento de determinados aspectos lógicos da argumentação. Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves, em “O marxismo de Florestan Fernandes na obra ‘A Revolução burguesa no Brasil’ (1975)”, volta-se à análise da obra citada, considerada um clássico do marxismo brasileiro, concedendo ênfase nos aspectos que permitiram identificar, na história do Brasil, características peculiares de sua revolução burguesa, caracterizando, dessa forma, a própria especificidade da história político-social brasileira.
Alexandre de Sá Avelar, em “Toda vida pode ser contada: razão histórica e biografia em Wilhelm Dilthey”, examina as problemáticas relativas ao gênero biográfico durante o século XIX, especialmente a partir de Dilthey, argumentando que os pressupostos e conclusões de seus trabalhos de metodologia e epistemologia da história encontrariam correspondência na possibilidade e legitimidade da biografia. Joana Duarte Bernardes em “A experiência revolucionária como começo absoluto” aborda a questão da irreversibilidade moderna revolucionária na constituição de uma nova temporalidade, debatendo a relação desta com a dissolução do topos da história magistra a partir do prisma de Reinhardt Kosseleck.
Na seção de entrevistas, conversamos com dois importantes historiadores no campo da teoria da história: a italiana Silvia Caianiello e o alemão Jörn Rüssen. Silvia Caianiello, pesquisadora italiana do Instituto de História do Pensamento Filosófico e Científico Moderno, entrevistada por Francesco Guerra e Murilo Gonçalves. A entrevista trata de temas relativos ao trabalho da autora, as relações entre ciências da natureza e ciências do espírito, o tema da temporalidade, o trabalho em torno de Johann Gustav Droysen, dentre outros. Na entrevista com o renomado historiador, Jörn Russen, o professor Luis Sérgio Duarte da SIlva conversou sobre os novos projetos e o lançamento do seu novo livro Historik 2. Agradecemos a todos os discentes, docentes, autores de artigos e pareceristas que contribuíram para esse dossiê. Desejamos uma boa leitura e que se faça o debate.
Notas
1. Entre estes podemos citar os esforços contínuos de Valdei Lopes Araujos de delimitar as fronteiras da HH em diversos artigos e intervenções, ver: ARAUJO, Valdei Lopes. Sobre o lugar da historiografia como disciplina autônoma. Locus, Juiz de Fora, V. 12, 2007, pg. 79-94; ARAUJO, Valdei Lopes. História da historiografia como analítica da historicidade. História da historiografia, Ouro Preto, n.12, Agosto, 2013, pg. 35-44.
2. Entre os textos em torno desta problemática podemos citar: ASSUNÇÃO (2016); CATROGA, MENDES, TORGAL (1996); CARVALHO (1971a; 1971b); GODINHO (1971); MARQUES (1974; 1988); MOREIRA (2012); NUNES (1993; 2013); SÉRGIO (1920); SERRÃO (1968 1972).
Referências
ASSUNÇÃO, Marcello Felisberto Morais. A historiografia portuguesa em tempos de política do espírito: o caso da revista Brasília, do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de Coimbra. Práticas da História: Journal on Theory, Historiography and Uses of the Past, v.2, 2016a, pgs. 57-88.
ARAUJO, Valdei Lopes. Sobre o lugar da historiografia como disciplina autônoma. Locus, Juiz de Fora, V. 12, 2007, pg. 79-94.
___________________. História da historiografia como analítica da historicidade. História da historiografia, Ouro Preto, n.12, Agosto, 2013, pg. 35-44.
CATROGA, Fernando; MENDES, José Maria Amado; TORGAL, Luís Reis. História da História de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, pgs. 547- 673.
CARVALHO, Joaquim Barradas de. Da História-Crónica à História Ciência, Lisboa: Livros Horizonte, 1971.
CARVALHO, Joaquim Barradas de. As Ideias Políticas e Sociais de Alexandre Herculano, 2ª edição, Lisboa: Seara Nova, 1971.
FALCON, Francisco José Calazans. Historiografia portuguesa contemporânea: Ensaio Histórico Interpreativo. Estudos Históricos 1 (1988).
GODINHO, Vitorino Magalhães. Razão e História (Introdução a um problema), Lisboa, Faculdade de Letras, 1940. [Dissertação de Licenciatura em histórico-filosóficas].
GODINHO, Vitorino Magalhães. Ensaios III, Sobre Teoria da História e Historiografia, Lisboa: Sá da Costa, 1971.
MARQUES, A.H. de Oliveira. Antologia da Historiografia Portuguesa, 2 volumes, Lisboa: Publicações Europa-América, 1974
_______________________________. Estudos de Historiografia Portuguesa, Lisboa: Palas Editora, 1988. Matos, Sérgio Campos. História, Mitologia, Imaginário Nacional: A História no Curso dos Liceus (1895-1939). Lisboa: Livros Horizonte, 1990.
__________________. “O Ultranacionalismo da Memória Institucional.” In Portugal Contemporâneo (1926-1968). Volume IV, ed. Reis, António. Lisboa: Publicações Alfa, 1990. MOREIRA, Nuno Miguel Magarinho Bessa. A Revista de História (1912-1928), Dissertação de Doutoramento em História, 2 vols., Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2012. [Dissertação de Doutoramento em História].
Nunes, João Paulo Avelãs. A História Econômica e Social na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (1911-1974): Ascensão e Queda de um Paradigma Historiográfico. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1993.
____________________________. O Estado, a Historiografia e outras Ciências / Tecnologias Sociais. In: Historiografias Portuguesa e Brasileira no Século XX: Olhares Cruzados, ed. João Paulo Avelãs Nunes, Américo Freire. Coimbra: IUC, 2013.
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SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História e conhecimento histórico. Verbo, Lisboa, 1968.
________________________________. A Historiografia Portuguesa Doutrina e Crítica, séculos XII-XVI, Verbo, Lisboa, I Volume 1972.
TORGAL, Luís Reis. Historia e ideologia. Coimbra: Minerva, 1989.
Marcello Felisberto Morais de Assunção – Doutor (UFG). Editor e membro do corpo editorial da RTH
ASSUNÇÃO, Marcello Felisberto Morais de. Apresentação. Revista de Teoria da História, Goiânia, v.17, n.1, julho, 2017. Acessar publicação original [DR]