Por muito tempo o termo “cartografia” esteve restrito ao campo da geografia significando apenas a arte ou ciência de compor cartas geográficas e/ou mapas (FERREIRA, 1999). Atualmente, contudo, a partir de uma (re)apropriação conceitual feita pelos filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995), o termo passou a ser visto, também, pelo prisma do que se convencionou chamar de filosofia da multiplicidade que busca em diferentes territórios as especificidades necessárias para compor uma área dinâmica.
A cartografia “é o primeiro princípio metodológico da filosofia de Deleuze e Guattari. Ela aponta para o fato de que o pensamento não é representacional, mas inventivo” (KASTRUP apud FONSECA; KIRST, 2003, p. 55). Sem querer categorizá-la, a cartografia seria uma ferramenta, instrumento, método de produção de conhecimento que não busca estabelecer desde o início um caminho linear, que não obedece a verbos regulares e que não busca estabelecer caminhos pré-determinados para o pesquisador em sua investigação.
É justamente partindo desta perspectiva que Rafael Leopoldo busca, em “Cartografia do pensamento Queer”, construir um mapa possível da Teoria Queer, aqui, sempre pensada no plural. O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível e suscetível de receber modificações a todo momento. Além disso, ele pode ser revertido, rasgado, e adaptar-se a montagens de qualquer natureza (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 22). Nas palavras do próprio autor, “não é só um guia para visitantes; faz parte, acima de tudo, do processo de constituição do território” (LEOPOLDO, 2020, p. 12).
Na construção deste mapa, a feminista Glória Anzaldúa é o primeiro caminho de entrada nos Estudos Queer. O que interessa para o autor é, desta forma, repensar as condições de possibilidade do pensamento queer. Durante este percurso teórico, o autor elege dois pontos de virada histórica fundamentais para a compreensão do pensamento queer: o giro performático e o giro tecnológico que, segundoele, “são verdadeiros paradigmas nos estudos queer, uma vez que reverberam em práticas e estudos de uma gama enorme de estudiosos e estudiosas” (LEOPOLDO, 2020, p. 22).
Rafael Leopoldo inicia seu livro apontando o contexto histórico da emergência da teoria queer apontando a necessidade de pensá-la como um campo de saber contra- hegemônico, subversivo e subalterno. Uma teoria que torce o nosso olhar; que propõe enxergar o mundo de uma maneira não normativa e que não aceita a divisão sexual dos sujeitos entre “normais” e “anormais”.
Para Leopoldo (2020), as origens da teoria queer remontam ao fim da chamada Revolução Sexual, dos movimentos liberacionistas e gays e do curto período de despatologização da homossexualidade, retirada da lista de enfermidades da Sociedade Psiquiátrica Americana em 1973. Foi em meio ao refluxo conservador detonado pela epidemia da AIDS (1970- 1980) que pesquisadores/as de diversos países desenvolveram análises inovadoras sobre a hegemonia política heterossexual.
Assim como ele, o sociólogo Richard Miskolci (2014, p. 8) afirma que “Teoria Queer” é um rótulo que busca abarcar um conjunto amplo e relativamente disperso de reflexões sobre a heterossexualidade como um regime político-social que regula nossas vidas. Tratam-se de regulações sexuais e de gênero socialmente impostas que criam e mantém desigualdades de toda ordem.
Dando continuidade a este mapeamento do pensamento queer, o autor esclarece, logo no primeiro capítulo, o longo diálogo que ela tem com a psicanálise e a potencialidadeque ela proporcionou na concepção de sujeito e, principalmente, na contestação da homossexualidade como perversão. Destarte, no segundo capítulo “teoria queer e o direitos dos animais” o autor destrói a separação entre humanos e não humanos. A ideia é compreender o animal não humano como um animal queer, evidenciando que assim como os demais animais, os não humanos têm a capacidade de sofrer e vivenciar o luto. De acordo com Leopoldo (2020, p. 56) poderíamos entender a situação queer do animal não humano e ainda reforçar alguns elementos positivos da animalidade, deixando entrevisto a possibilidade de outras relações com eles.
Ademais, no terceiro capítulo “A teoria queer e o pós-estruturalismo” o autor aponta o contexto histórico-social que permitiu e deu as condições de possibilidade para a emergência da teoria queer. Além disso, expõe a influência de filósofos pós-estruturalistas para a sua constituição, como Gilles Deleuze, Félix Guattari, Michel Foucault, Derrida, dentre outros. Para o pesquisador, não há primeiro uma teoria pós-estruturalista que se queeriza ao ser repensada por bichas, sapatas e transexuais, mas, tanto Foucault, Deleuze, Guattari e Derrida são herdeiros do feminismo e dos movimentos homossexuais, tal como estes mesmos movimentos são herdeiros da filosofia pós-estrutural.
Nos capítulos quatro e cinco o autor propõe problematizar a relação entre a teoria queer e os pensamentos gays e lésbicos. No que se refere ao pensamento lésbico o autor dialoga com as mais renomadas pensadoras do feminismo lésbico: Monique Wittig, Gayle Rubin e Adrienne Rich que foram vitais para a constituição da teoria queer. De acordo com Leopoldo (2020), a principal contribuição de Wittig para a teoria queer diz respeitoa sua compreensão da heterossexualidade não somente como uma prática sexual, mas como regime político, estritamente ligado à produção capitalista.
Sobre Gayle Rubin o autor afirma que sua grande contribuição para a teoria queer se dá, principalmente, com a publicação de seu longo ensaio “The traffic in women: notes on the ‘political economy’ of sex” (“O tráfico de mulheres: notas sobre a ‘economia política’ do sexo”), de 1975, onde relata os conceitos de “sistema sexo-gênero” e de “heterossexualidade compulsória”. Já no que diz respeito ao pensamento homoerótico gay o autor convoca estudiosos gays para abordar a temática da homossexualidade no contexto histórico da pandemia da AIDS e da revolução sexual das décadas de 60 e 70.
No livro, Rafael Leopoldo ainda aborda o diálogo entre a teoria queer e o feminismo negro e o transfeminismo. Sobre o primeiro, o autor aborda a problemática depensar a categoria “mulher”, heterocentrada e eurocêntrica como a sujeita universal do feminismo e pontua a ausência de outros feminismos para além da lógica do norte global. O feminismo negro, segundo o pesquisador, trouxe outras vivências, conhecimentos, consciências e empoderamentos para o debate. O objetivo foi de pensar um feminismo plural e não cisnormativo ou heternormativo.
Nos capítulos finais do livro o autor se dedica a descrever os dois principais pontos de virada na construção da teoria queer: o giro performático, com a contribuição decisiva da filósofa estadunidense Judith Butler e o giro tecnológico com as contribuições de Donna Haraway e Paul Beatriz Preciado. Sobre o primeiro, o autor afirma que o livro “Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade” da Butler que além de fazer uma genealogia detalhada sobre a funcionalidade do conceito de Gênero para o feminismo, apresenta pela primeira vez sobre a performatividade de Gênero, este que veio a ser um dos conceitos centrais da Teoria Queer.
No que diz respeito ao giro tecnológico o autor ressalta o surgimento do movimento ciborgue e o regime de poder farmacopornográfico problematizado pelo PaulPreciado para pensar a construção do gênero para além do campo do discurso, mas também inseri-lo como um efeito biotecnológico. Por fim, o autor finaliza sua obra discutindo acerca das masculinidades e a teoria queer, apontando a potencialidade que esta proporcionou nos estudos sobre homens ao tratar a masculinidade sempre no plural e desviando o foco de sua produção das genitálias.
O livro é de linguagem fácil e compreensível. Além disso, é inegável que se trata de uma obra de grande envergadura teórica. No entanto, ao cartografar os caminhos que possibilitaram o surgimento da teoria queer o autor não explora e nem cita as contribuições de teóricos do sul global para sua produção. O posfácio, porém, sinaliza que terá uma segunda obra que abordará tais questões, por ora, esperamos e ressaltamos que isso não diminuiu a potencialidade do livro e das discussões que ele suscita.
A divisão das partes em tópicos facilita a compreensão do leitor, possibilitando um melhor entendimento da obra. Face à estrutura dada aos capítulos eles podem servir de base para seminários em que a temática seja sobre gênero e sexualidades. O trabalho é repleto de bibliografias especializadas sobre a temática e de grande utilidade para pesquisadores/as da área. Doravante, os capítulos que compõem o livro podem ser lidos de forma separadas e isso não atrapalha a compreensão da obra completa.
Em suma, esta obra é de suma importância para todos/as os/as pesquisadores/as que se dedicam aos estudos voltados para os princípios e conceitos fundamentais de epistemologias feministas, neste caso, da teoria queer. O livro vem contribuir para o aprofundamento deste tema, abrindo novas possibilidades de leitura e descortinando novos cenários de investigação.
Referências
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Eletrônico – Século XXI – Versão 3.0. Rio de Janeiro: Nova Fronteira e Lexicon Informática Ltda., 1999.
FONSECA, Tania Mara Galli; KIRST, Patrícia Gomes. Cartografias e devires: a construção do presente. UFRGS, 2003.
LEOPOLDO, Rafael. Cartografia do pensamento Queer. Salvador: Editora Devires, 2020.
MISKOLCI, Richard. Um saber insurgente ao sul do Equador. Revista Periódicus, v. 1, n. 1, p. 43-67, 2014.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. I. São Paulo: Ed.34, 1995.
Resenhista
Cassiano Celestino de Jesus – Doutorando em História Social pela Universidade Federal da Bahia (PPGH/UFBA). Integrante do Laboratório de Estudos sobre a Transmissão e História Textual na Antiguidade e no Medievo (LETHAM/CNPq/UFBA). Bolsista FAPESB. E-mail: cassianohistoria@gmail.com
Referências desta Resenha
LEOPOLDO, Rafael. Cartografia do pensamento Queer. Salvador: Editora Devires, 2020. Resenha de: JESUS, Cassiano Celestino de. Ponta de Lança- Revista Eletrônica de História, Memória & Cultura. São Cristóvão, v. 16, n. 31, p. 212-216, jul./dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]
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