1 Certos livros, passadas décadas de sua publicação, continuam seminais. Visão do paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda, é um desses casos. O texto de titularidade do historiador é denso, erudito, com uma tese instigante que continua a movimentar a leitura e o debate mesmo 60 e poucos anos depois de seu surgimento.
2 Em Visão, Sérgio Buarque afirma que lhe interessava fazer a “biografia de uma ideia”, de como se forjou uma visão do Brasil como terra edênica. No longo e sinuoso percurso para construir seu argumento, ele advoga que os portugueses, no Brasil, deixaram a maravilha de lado em nome da experiência, da concretude de uma terra sem os achados de riqueza dos vizinhos espanhóis. Por antítese, os espanhóis, pródigos em minas de ouro e prata, abraçaram o discurso do maravilhoso. Ademais, ele constatou que, nos mapas portugueses, o Brasil aparece não como uma separata, mas como um complemento à montanha de prata de Potosí.
3 Essas duas premissas intrigaram Andrea Doré, professora da Universidade Federal do Paraná, especialista em História Moderna. O livro que ora se apresenta é fruto de uma longa e proveitosa pesquisa de pós-doutoramento em Harvard e de um bolsa de pesquisa nos acervos da John Carter Brown Library, período em que também vasculhou outras bibliotecas norte-americanas e brasileiras. Resultado dessa prospecção e da minuciosa análise da autora, Cartografia da promessa é também um inegável debate e homenagem ao mestre de Visão do paraíso.
4 Doré propõe não a “biografia de uma ideia”, como Holanda, mas a “de uma promessa”: “aquela que se fez em relação às terras do Brasil e influenciou a forma de explorar e descrever a geografia do continente sul-americano e os projetos dos europeus nos dois primeiros séculos de colonização” (Doré, 2020: 17). Expliquemos ideia tão fecunda. Tudo se relaciona, segundo nos segreda a própria autora, a um mapa (de João Teixeira Albernaz I) que ilustra um livro (Livro que dá razão do Estado do Brasil, Lisboa, 1612), no qual o autor, Diogo Campos Moreno, inequivocamente liga o Brasil a Potosí. Ao constatar como esse mapa e texto se esforçavam para construir as terras coloniais brasileiras como contíguas, interligadas ao vice-reino do Peru, Doré resolveu buscar se essa era uma exceção ou uma regra. Confirmou-se a regra. E aqui o entroncamento com Sérgio Buarque de Holanda, que, em 1958, já havia percebido como os lusos procuravam explicar a aparente falta de metais preciosos no Brasil com uma compensação geográfica, que tinha em Potosí um polo magnético. Mas se o prolífico historiador havia atribuído essa característica de construção de imaginário geográfico aos portugueses, Doré foi além e demonstrou que essa era uma noção europeia. Após a análise de mapas franceses, italianos, ingleses e holandeses, a historiadora percebe como Potosí e o Peru se tornaram a encarnação do “maior sucesso da expansão e produziu uma leitura do continente de grande longevidade” (Doré, 2020: 18).
5 Para entender o ponto de vista e o papel dos portugueses na elaboração dessa ideia, o livro busca outros olhares, de fora do universo português, para, apenas depois disso, estudá-los com a devida nitidez. Ao investigar como toda a porção sul do continente americano esteve, durante décadas, associada ao Peru (mormente a Potosí), como uma contraparte meridional da “América mexicana”,1 vislumbramos uma importante contribuição heurística a uma questão epistêmica caríssima aos historiadores: a da instabilidade do passado. Em outras palavras, ela analisa como se constituiu o nome de nosso continente não pelo que ele veio a se tornar (América do Sul), mas pelo que ele teve a chance de ser: “América peruana”.
6 Essa é uma noção de extrema sofisticação teórica. Ao estudarmos o passado temos que nos atentar para a cornucópia de significados e possiblidades que estavam diante dos agentes que mobilizamos. Para eles, o futuro não havia que não como uma incerteza. Doré, nesse sentido, estuda o passado de um futuro que não foi. Traz-nos possiblidades do que poderia ter sido e, com isso, sofistica a leitura da História e conclui como o passado contém muitas outras possibilidades para além de um único caminho que parece explicar as opções que vivemos hoje. Traduzindo em uma metáfora: imaginemos o passado como um jogo de cartas. Nós, depois de tempos passados do jogo, sabemos exatamente (ou, por vezes, parcialmente) a sequência em que as cartas foram puxadas do monte, ajeitadas no maço, postas à mesa. Sabemos quem ganhou e quem perdeu. Mas, quando fazemos historiografia, é mister atentar que os jogadores, lá atrás, não sabiam de tudo isso: nem qual a sequência de cartas apareceria nas mãos de alguém à mesa, como ela manusearia suas possiblidades, tampouco o desfecho da partida. Ao refazermos a história com todas essas possibilidades que o antanho tinha de futuros diferentes, enriquecemos a maneira de pensar a História. Doré seguiu à risca essa rica receita.
7 O livro dialoga de perto com outras questões teóricas. Com Reinhardt Koselleck e as noções de campo de experiência e horizonte de expectativa, ainda que de forma bem sucinta, e, mais umbilicalmente, com Michel de Certeau. No caso das noções de Koselleck, Doré as mobiliza para explicar como os autores de textos e mapas que analisou entendiam aquilo que descreviam a partir de noções apriorísticas (e.g.: como uma tradição ptolomaica e/ou uma busca por informações de primeira mão, advindas da experiência) e, com essa base, engendravam uma visão sobre a “América peruana”, Potosí e o Brasil. Já de Certeau vem sua leitura de que os mapas casam itinerários durante a primeira modernidade, juntando tradição ptolomaica e experiência em primeira mão de pilotos, funcionando, ao mesmo tempo, como narrativa e descrição, um quadro e um percurso. Com o tempo, esses percursos e itinerários em disputa são elipsados e os mapas passam a se mostrar sem a história que os constituiu.
8 Outro ponto a se destacar sobre a premissa do livro, além de seu diálogo intenso com documentação primária e historiografia afiada sobre o tema e de seu refinamento teórico, é sua ideia de fazer história a partir do estranhamento. A autora nos deixa claro que o que estranhamos nos mapas – seja no primeiro que analisou, numa aula na França em 1995, seja nos muitos que compõem o livro – é revelador de algo do passado, de possibilidades de, ao menos em parte, compreendê-lo. Automaticamente me lembrei do curto e justo prefácio de O grande massacre de gatos, de Robert Darnton, no qual, ainda nos anos 1980, ele nos alertava que o passado costuma residir onde um documento nos é mais opaco. Quando perdemos o sentido, quando ele nos escapa, lá está o “outro”, uma forma do passado se exprimir a me olhar. Parte do que fazemos é uma busca por tentar restaurar algum sentido a partir de estranhamentos.
9 O núcleo central da preocupação de Doré, como adiantamos há pouco, era responder as perguntas que abrem a segunda parte do livro, expostas no capítulo 4:
a singularidade da cartografia portuguesa ao figurar Potosí foi o estranhamento inicial que fez pôr em relação a montanha e as terras do Brasil. (…) o que Potosí significava para os portugueses [?]. Como essa significação se articulava como contexto político de criação da maior parte dos mapas, a União Ibérica? O que a presença de Potosí nos mapas pode nos dizer sobre a prática cartográfica dos portugueses? (Doré, 2020: 139)
10 Para responder a essas questões, que estão ligadas àquilo que Buarque de Holanda chamou de “realismo pedestre” dos lusos, a autora arquitetou um livro com duas partes que vão se afunilando em suas preocupações, da mais ampla à mais pedestre delas, como se o capítulo anterior encapsulasse o posterior em tramas maiores. A primeira parte do livro tem 3 capítulos, o primeiro deles um esforço hercúleo de mobilizar uma pletora de mapas, buscando entender por que alguns autores deram o nome à porção sul do novo continente de Peru, Peruana ou América Peruana, para nos insinuar a resposta que é a alma do livro: Potosí é um divisor de águas e sua descoberta cria uma magneto na cartografia e nos relatos de viagem ou sobre a América.
11 O ponto forte do capítulo é sua capacidade de ser amplo, de realizar um voo panorâmico, aquilo que Fernández-Armesto, com razão, já chamou de olhar da gávea do navio.2 Lá de cima, vemos um conjunto, por vezes confuso se olhado de perto, difuso à primeira vista, mas que, no olhar da águia em voo, revela o contorno de uma questão pelo jogo das escalas. Há excessos nesse texto e talvez a edição pudesse ter feito melhor para a visualização de detalhes nos mapas. Às vezes, a autora menciona um detalhe ou texto cuja visualização é simplesmente inviável. Mas temos que entender os limites do mercado de livros universitários em nosso país e o quanto deixa a desejar dado o péssimo contexto em que vivemos. Em qualquer lugar sério com livros e com as ciências do mundo, o livro de Doré sairia em papel cuchê ou similar, com páginas amplas e mapas impressos com detalhes. Não é o caso aqui, infelizmente.
12 O segundo capítulo se destaca em relação ao primeiro por circunscrever melhor a questão para o leitor. Vemos a autora percorrer os mapas da América e viajamos por textos de aventureiros, mercadores, cosmógrafos e um sem-número de pessoas que buscam Peruana e sua montanha: Potosí. Nele há representações do rico cerro argentífero em texto e imagens, mas temos, primordialmente, uma História social de Potosí: quem eram seus habitantes, como viviam, como eram o trabalho, os hábitos, o que horrorizava e fascinava quem visitava o lugar ou nele atuava por algum tempo.
13 No terceiro capítulo, o último e o melhor da primeira parte para pensarmos de onde vêm essas imagens de Potosí. Doré consegue prospectar quatro mapas e um conjunto pequeno de imagens que, ao associarem diretamente a América do Sul (ou toda a América) a Potosí, criaram um repertório que seria apropriado e que figuraria em diálogo com a produção cartográfica por longas décadas. Num capítulo sólido, que não à toa se chama Matrizes imagéticas, volta à cena o mapa de Petrus Plancius, de 1594 (que consta do capítulo 1); aparece o tão influente mapa mural de Willem Blaeu, de 1608; os mapas de leitura de Michaele Colinio e o de Arnoldo de Arnoldi, ambos do início do XVII; e, por fim, as ilustrações de Arnoldus Montanus, de 1671. Como a autora nos chama a atenção, com exceção de Arnoldi, publicado em Siena, todos os demais são produções dos Países Baixos, ávidos por informações e pela exploração marítima, com seu enorme potencial comercial, bem como de olho no pujante mercado consumidor de mapas que a Europa era.
14 Tivesse parado ali, nos achados desse pequeno cânone que engendra toda uma “cartografia de uma promessa” de um continente “montanha de prata”, o livro já seria muitíssimo interessante. Mas é na segunda parte que Doré dá uma volta a mais no parafuso que, ao ser apertado, reforça a nitidez do argumento do livro como um todo. Na verdade, percebemos como a erudita e meticulosa primeira parte do livro foi senão um luxuoso preâmbulo para entendermos a questão a partir do ponto de vista dos portugueses: como, do Brasil, os lusos viram Potosí e como essa visão serviu para projetar desejos e projetos em mapas e textos (objeto do capítulo 4, como já ressaltamos).
15 Se o capítulo 4 conclui com a ideia de que Potosí se mostrava como uma promessa (daí sua cartografia e o título do livro) de que os lusos poderiam achar ouro e prata no Brasil, bem como significava uma síntese das expectativas de toda a Europa sobre o continente americano como um todo, o Capítulo 5 aprofunda a noção de promessa de metais por aqui. Nele, aprendemos sobre como a Primeira Modernidade via a própria existência de metais preciosos na terra, sua relação com Deus, posições astronômicas, seu crescimento, como se pensava localizar jazidas e a melhor maneira de explorá-las. Toda essa discussão serve de mote para que Doré, finalmente, explore os pormenores das justificativas portuguesas para seu próprio fracasso em localizar tais metais em sua maior colônia (bem como ajuda a entender a existência de peruleros e outros portugueses que se aventuravam pelo lado de lá do tratado de Tordesilhas, em especial durante a União Ibérica).
16 O Capítulo 7, que resgata a experiência concreta de indivíduos portugueses no Peru, é muito interessante, pois faz um contraponto a Caminhos e fronteiras, mas, a rigor, não contribui para o argumento do livro como os outros o fizeram. Funciona como um interessante post scriptum ao capítulo 6 e como uma sugestão de para onde a pesquisa poderia caminhar doravante.
17 Ponto forte que a autora não ressalta o suficiente, em minha opinião: seu livro é uma justa homenagem a Sérgio Buarque, mas ela faz mais do que comentar ou relativizar (verbo que Doré e Laura de Mello e Souza, no prefácio do livro, usam) algumas de suas teses em Visão do paraíso. A autora, sim, desdiz o historiador, apresentando a ideia – mas parece ter receio em ser mais ousada – de que a “cartografia de uma promessa”, toda essa “geografia imaginada” (prospectiva), era um imenso e pródigo conjunto de lógicas do maravilhoso que ajudou a moldar o mundo português nas Américas. Pode ser que os lusos tenham abandonado a busca por Eldorados com esse nome (ou similar) por “realidades mais pedestres”. Por outro lado, como fica fartamente demonstrado por Doré, tiveram que justificar a falta de achados de metais preciosos por aqui com um sem-número de especulações (a autora aponta claramente três delas no capítulo 5). E pela senda do maravilhoso, e não longe dela ou se livrando dela, tendo Potosí como uma bússola ou ponto focal, construíram uma colônia. Projetaram, sim, seu imaginário para a busca de ouro e prata em rios míticos, em associações de cadeias de montanha, nas ciências que associavam o ouro ao sol, a eflúvios, emanações e tremores de terra. Venho advogando algo similar a algum tempo: o maravilhoso não é categoria oposta ao racional, à experiência (tão lusa, quase cartesiana avant la lettre). É, sim, seu componente ativo na Primeira Modernidade. É imaginando o “logo ali” que Doré tão bem investiga como os lusitanos se projetaram ao mundo e o próprio mundo em si. Eventualmente montariam em ouro nas Minas. E, assim como o fizeram em seu Potosí, teriam que justificar o achado: basta confirmar a maravilha via experiência uma única vez – mesmo tendo negado mil vezes a mesma maravilha – para que ela se reinvente.
18 O livro é uma joia e saímos dele com várias respostas, com muitas conjecturas e com um convite para continuarmos a pesquisa, seguindo os fios e os rastros que Doré diligentemente já percorreu. Sua leitura se torna obrigatória para quem estuda a Primeira Modernidade e seus entrelaçamentos entre maravilha e experiência na construção epistemológica de Novos e Velhos Mundos. De brinde, o leitor ainda ganha um bonito e afetuoso prefácio escrito por Laura de Mello e Souza.
Notas
1 Que busquei estudar em meu livro Patria Mestiza (2012).
2 Em entrevista para o livro Sobre o Novo Mundo: a história e a historiografia das Américas na Primeira Modernidade em 10 entrevistas (2018).
Referências
DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2014.
FERNANDES, Luiz Estevam de Oliveira. Patria Mestiza: a invenção do passado nacional mexicano (séculos XVIII e XIX). Jundiaí: Paco Editorial, 2012.
FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. “Felipe Fernández-Armesto”. In: Fernandes, Luiz Estevam de Oliveira; Reis, Anderson Roberti dos; Kalil, Luís Guilherme Assis (orgs.). Sobre o Novo Mundo: a história e a historiografia das Américas na Primeira Modernidade em 10 entrevistas. Curitiba: Editora Prismas, 2018, p. 89-103.
HOLANDA, Sergio Buarque de. Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000.
HOLANDA, Sergio Buarque de. Caminhos e fronteiras. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1957.
Resenhista
Estevam de Oliveira Fernandes – Professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Doutor em História (Unicamp). E-mail: leof79@gmail.com
Referências desta Resenha
DORÉ, Andrea. Cartografia da promessa. Potosi e o Brasil num continente chamado Peruana. São Paulo: Intermeios, 2020. Resenha de: FERNANDES, Estevam de Oliveira. Potosí no horizonte de mapas e textos. Terra Brasilis. Niterói, n.15, jul. 2021.
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