Os trinta anos recém-completados da publicação original de O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição, bem como os vinte anos de sua tradução brasileira, parecem uma data oportuna para refletir sobre a trajetória intelectual do seu autor nas últimas décadas. Aquele livro, como se sabe, foi responsável por projetar Carlo Ginzburg como um dos mais inovadores historiadores de sua geração e — traduzido em vinte e dois idiomas além do italiano — tornou-se uma espécie de marco da renovação dos estudos de história da cultura popular, tanto quanto de um modo de fazer história que aliava a análise atenta das minúcias, o interesse pelo protagonismo individual (ou o ponto de contato entre as estruturas de larga duração e o cotidiano mais banal de um personagem sem importância, cuja vida dificilmente poderia ser considerada como estatisticamente representativa) e tudo aquilo que muito freqüentemente se tem considerado como características centrais de uma perspectiva micro-histórica. Somava-se a isso, ainda, a atenção sobre a exposição e a narração, o flerte entre a história e a literatura.
Todos esses aspectos, imediatamente reconhecidos pela crítica histórica, converteram o livro num clássico, e não apenas na Itália. O exemplo próximo e mais eloqüente é aquele dado pelo público brasileiro, que garantiu não somente as reedições sucessivas da história de Menocchio (incluindo aí mais recentemente uma edição de bolso com grande tiragem), como também a tradução quase imediata da maior parte da produção intelectual desse autor nos últimos vinte anos.1
As razões desse tipo de acolhida não são facilmente analisáveis, como nota o próprio Ginzburg2 . Mesmo que se dê o desconto, no caso brasileiro, do interesse ambíguo pelas “modas historiográficas”, que não é de todo ausente nos meios acadêmicos, podemos pensar (não sem um pouco de auto-indulgência) que muito dessa atenção se deve ao reconhecimento da contribuição original das proposições do autor para a renovação do arsenal crítico mobilizado no debate intelectual contemporâneo — e que vai além do campo da historiografia. É válido ressaltar que um dos aspectos notáveis dessa intervenção é que ela não se contentou em reafirmar posições consolidadas. Propôs-se, isso sim, de um modo fortemente experimental, ampliar e deslocar constantemente seus campos de reflexão e de investigação.
Os artigos reunidos neste minidossiê de ArtCultura ilustram, à sua maneira, tanto o interesse continuado pelo trabalho de Ginzburg quanto sua capacidade de provocar novos nexos e novas e instigantes reflexões, não apenas para os historiadores, como igualmente entre os cultivadores de outras disciplinas que compartilham com a história o interesse onívoro por alargar seus horizontes e estabelecer novos confrontos intelectuais.
O primeiro artigo sai da pena do próprio Ginzburg, que se debruça sobre a personagem insólita de um comerciante protestante que, nascido na Suíça, tenta sua sorte no comércio no além-mar, na África e no Índico. Suas vicissitudes comerciais e seus projetos de colonização mobilizam mais que um forte espírito empreendedor e capitalista, ao invocar, paralelamente, veementes argumentos bíblicos. A investigação sobre essa personagem leva Ginzburg a mais uma de suas intrigantes discussões em torno das possibilidades cognitivas de uma abordagem micro-histórica.
No segundo texto, a trajetória intelectual de Carlo Ginzburg nas últimas décadas é revisitada pelo autor destas linhas, buscando entender os fios que ligam os vários caminhos de pesquisa e os embates intelectuais nos quais o historiador italiano se envolveu após a publicação de O queijo e os vermes. As imbricações entre história e literatura fornecem o eixo central desse debate.
No trabalho seguinte, Fernanda Pitta interpela a discussão teórica e a pesquisa de Ginzburg sobre a história da arte, ao procurar recuperar as formas pelas quais o autor interagiu com a tradição warburguiana de estudos, retomando algumas das suas contribuições ao vivo debate sobre a leitura dos testemunhos figurativos. No artigo que conclui o minidossiê, Aldrin Figueiredo parte de um episódio singular, que reuniu, em 2004, os historiadores Carlo Ginzburg e Sidney Chalhoub e o filósofo e crítico literário Benedito Nunes, em Belém do Pará, para discutir as relações entre história e literatura. A partir das intervenções de cada um deles sobre os literatos que são objeto de suas pesquisas — Stendhal, Machado de Assis e Haroldo Maranhão —, Aldrin propõe um diálogo entre os três trabalhos, mostrando como as reflexões de Ginzburg sobre a micro-história iluminam os desafios enfrentados pela aproximação entre a história e a literatura.
Notas
1 “Imediata”, naturalmente, para os padrões do mercado editorial brasileiro. Mas é digno de nota que o mais recente livro de Ginzburg tenha sido publicado no Brasil menos de um ano depois de seu lançamento na Itália, sendo a primeira edição estrangeira (GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007).
2 Ver, por exemplo, seu comentário na entrevista a Sylvia Colombo no caderno Mais!, do jornal Folha de S. Paulo (“O grande inquisidor”, 26 ago. 2007).
Organizador
Henrique Espada Lima
Referências desta apresentação
LIMA, Henrique Espada. Deslocamentos, provocações, confrontos: trinta anos depois de O queijo e os vermes. ArtCultura. Uberlândia, v. 9, n. 15, jul./dez. 2007. Acessar publicação original [DR]
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