CRARY, Jonathan. 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014. Resenha de QUEIROZ, Luciana Molina. Alea, Rio de Janeiro, v.18 n.3, sept./dec., 2016.

No primeiro episódio da série da BBC Black Mirror, chamado The National Anthem, o primeiro ministro britânico é chantageado pelos sequestradores de um membro da família real e obrigado a realizar em rede nacional um ato absolutamente constrangedor e degradante, sob a pena de ser responsável pela execução da Princesa Susannah caso não cumprisse as exigências por eles colocadas. Enquanto todos os habitantes do país são mostrados em torno de televisores acompanhando de maneira horrorizada a coragem e decisão do primeiro ministro, a Princesa anda por ruas completamente desertas, sem que ninguém fosse capaz de constatar que ela já havia sido liberada por seus raptores. O argumento dos sequestradores (e, portanto, do episódio) é um dos aspectos mais interessantes abordados por Jonathan Crary em seu livro 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono: o modo como experiências de gerações inteiras são completamente moldadas a partir da programação da cultura de massa. Um grande evento, como a Copa do Mundo, e mesmo as grandes tragédias, como a morte de um ídolo pop ou o recente ataque ao Charlie Hebdo, assim como a catástrofe do 11 de setembro, são exibidos e acompanhados com viva atenção em escala global. Nesse sentido, a história pessoal de um indivíduo é filtrada por aparelhos.

Tal como Black Mirror, o ensaio de Crary por vezes parece ficção científica. O próprio autor admite que parte de casos extremos para demonstrar a relação entre sono e capitalismo tardio, tais como acidentes industriais noturnos que vitimaram várias pessoas enquanto dormiam. Esses exemplos, que parecem parte de uma distopia ou de um cenário catastrófico num universo cyberpunk, podem facilmente levar o leitor de simpatias tecnofóbicas a desejar voltar a um mundo basicamente pré-capitalista e rural, no qual máquinas não mediavam nossas vidas. É verdade que, hoje, a tecnologia é tão bem aceita dentre os habitantes da cidade grande que qualquer crítica a ela sempre está sob suspeita de ter motivação conservadora ou nostálgica sem mais. Por isso, é vital estarmos alertas à identificação da agenda política e das bases teóricas em que se firmam as críticas à técnica. É necessário lembrar, por mais trivial que possa parecer, que a crítica marxista em geral deixa claro que se opõe ao uso da técnica feito pelo capital, e não à técnica por si, algo ambivalente no discurso de Crary, por vezes mais ansioso em denunciar a alienação do sujeito derivada da dissolução das noções de comunidade e pertencimento existentes nas sociedades tradicionais do que propriamente em esmiuçar a coisificação do sujeito em uma sociedade em que o capital adquire inúmeras vantagens quando aliado à técnica.

Apesar dos exageros de tom apocalíptico, algo subjaz de terrivelmente verdadeiro na exposição de Crary: a preocupação com a tendência do capitalismo a tudo colonizar e instrumentalizar. “Existem agora pouquíssimos interlúdios significativos na existência humana (com a exceção colossal do sono) que não tenham sido permeados ou apropriados pelo tempo de trabalho, pelo consumo ou pelo marketing” (CRARY, 2014: 24), argumenta. Há, então, incompatibilidade entre as demandas do mercado e as necessidades de uma vida humana saudável. Em uma época marcada pelo estranhamento e pela reificação, em que se sedimenta a crença de que não se pode encontrar prazer no trabalho, o tempo/espaço referente ao trabalho e o referente ao lazer são reinseridos em um continuum, talvez ainda mais pernicioso, posto que ainda se caracteriza pela alienação, e não tem ruptura ou escapatória. Nesse sentido, compreendemos as altas taxas de adoecimento físico e psíquico exibidas pelos professores universitários. Não só porque também se encontram subsumidos nesse mesmo imperativo categórico do publish or perish, mas também porque a mercadoria-fetiche por excelência do acadêmico, o conhecimento, e suas configurações em livros, cursos on-line e transmissões ao vivo do evento sobre comunismo em Bogotá ou Istambul parecem multiplicados pelas indicações realizadas pelos bancos de dados das lojas online e pelas atualizações das redes sociais. Em meio a curtidas de fotos do bebê do colega de trabalho, aparecem para ele inúmeras indicações de leitura. A todo instante se exige do acadêmico que esteja up-to-date, e em seus aspectos regressivos isso implica que ele deve se inteirar das novidades do mundo intelectual, sejam essas importantes ou frívolas. Faz parte do funcionamento da indústria acadêmica a existência de intelectuais pop star como o Žižek e de best sellers da economia como O capital no século XXI, de Thomas Piketty, pois eles são marcas da impotência do acadêmico para ignorar informações. Pertencer à comunidade acadêmica é algo que ironicamente reduz o tempo do intelectual junto às suas próprias inquietações teórico-existenciais, no corpo a corpo de seu objeto de pesquisa, e o reinsere na lógica capitalista – menos um intelectual autônomo e mais um autômato 24/7.

O horror da tese de Crary nos persuade porque mesmo o sono, esse último reduto do ser humano contra a produtividade capitalista, vem sendo progressivamente desguarnecido. Se há alguns anos o sonho ainda era visto como uma zona impassível de ser ocupada pelo capitalismo, o autor demonstra, através da análise da cultura de massas, que até ele aparece em filmes como A Origem, de Christopher Nolan, como algo passível de ser entendido por critérios de rentabilidade. É como se no imaginário popular já estivesse consolidado o desejo de eliminar o que Crary considera a última barreira para a expansão capitalista: o sono e o descanso. Isso o leva a empreender uma crítica a um só tempo corajosa e selvagem ao pai da psicanálise, que teria em sua primeira formulação a respeito dos sonhos afirmado que todo sonho é a realização de um desejo do sonhador (afirmação que ganharia um ad hoc quando Freud se colocou com a devida atenção a questão do sonho traumático). Para o estadunidense, essa formulação do sonho como algo existente somente como anseio individual, somada à crítica de Freud aos movimentos gregários em sua análise da psicologia das massas, teria acarretado graves equívocos teóricos e práticos. Freud nunca teve o interesse explícito e primordial de se comprometer com algum partido ou ideário político ao erguer as bases de seu trabalho. Mas Crary defende que subterraneamente haveria ali uma concepção de desejo ideologicamente favorável à manutenção desse estado de coisas, em que o privatismo dos gadgets pessoais se tornaria um sintoma externo do individualismo crescente. Para ele, “a privatização dos sonhos por Freud é apenas um sinal de uma supressão maior da possibilidade de seu significado transindividual. Por todo o século XX, pensou-se que os anseios estivessem ligados exclusivamente a desejos individuais – desejar a casa dos sonhos, o carro dos sonhos ou férias” (CRARY, 2014: 118).

Contudo, ainda parece ser a psicanálise, aliada às ciências sociais, o principal ferramental teórico para se compreender o desejo individual manifesto no sonho como algo formulado no estado de vigília a partir de vivências historicamente situadas. Nesse sentido, é útil voltar à “indústria cultural”, conceito cunhado por Adorno e Horkheimer. Ao nos chamar a atenção para o grande número de experiências compartilhados pelas mídias, Crary poderia ter ido além, e especulado como que essas experiências também moldam desejos e, combinando aspectos da teoria dos sonhos de Freud e da exposição de Marx sobre o fetichismo da mercadoria, poderíamos então nos questionar se a indústria cultural, ao contrário do que ele pensa, já não foi capaz de entrar no terreno insondável do sonho, submetendo-o ao menos em parte à lógica do capitalismo tardio. Afinal, um aspecto comum ao sonho e à mercadoria é justamente o modo como ambos são expressão de um desejo. Ainda que as pessoas sejam capazes de se associar a padrões de consumo diversificados, é inegável que muitas necessidades são moldadas pelo fetichismo da mercadoria, esse “passe de mágica” pelo qual de repente nos vemos absolutamente ávidos em adquirir determinado objeto convencidos de que há nele algo capaz de mudar nossas vidas. A cultura de massas, que engloba a publicidade, a imprensa e os meios de comunicação, bem como suas trocas com a indústria do entretenimento e do lazer, participa de uma equação na qual os desejos individuais tornam-se cada vez menos idiossincráticos, tendo em vista que são em alguma medida formados por uma estrutura totalizadora que é recebida coletivamente. Se isso vem ocorrendo, então os desejos já são em certo sentido transindividuais – sem dúvida não do jeito que pretende Crary, mas sim a partir de uma massificação dos objetos desejados e da própria faculdade de apetecer, que também pode ter como princípio algum anseio de ordem local, nacional ou mesmo mundial. As grandes detentoras dos meios de comunicação que buscam influenciar politicamente uma eleição ou sugerir para o público como deve se sentir e pensar a respeito de uma manifestação política ou sobre a possibilidade do país sediar uma Copa ou as Olimpíadas são capazes de atestar isso. Torna-se claro, então, que a questão que deve ser colocada não é a de se é possível sustentar algum desejo coletivo, mas antes se deve ter como foco o modo como esse desejo pode se dar.

Se Crary não desejava que sua crítica aos meios de comunicação e novas tecnologias fosse confundida com mera tecnofobia, teria feito bem em especificar de maneira mais rigorosa as diferenças entre individualismo e individualidade, pois, diante de sua argumentação, por vezes temos a impressão de que a única solução para o que observamos seria voltar a um modelo de sociedade pré-moderna, em que não havia possibilidade para a constituição forte de sujeito. Falta a ele ter uma visão mais dialética da coletividade, pois em seu ensaio retorna como falta o principal impasse relativo à cultura de massas (já presente no debate marxista, e mais especificamente nas disputas entre adornianos e benjaminianos): a relação entre o individual e o coletivo. Apontada como contribuintes do individualismo social, a cultura de massas no entanto reproduz uma estrutura que é recebida coletivamente, e que tem força suficiente para em alguma medida homogeneizar as massas em relação a uma visão de mundo e a um comportamento a favor do capitalismo. O blockbuster hollywoodiano, por exemplo, não só nos provê firmes noções de beleza e de erotismo, como também as associa a objetos e mercadorias específicos, tornando-se assim uma instância capaz de formar desejos associados ao estilo de vida existente no capitalismo. O sujeito não só se autodefine e se comporta como um consumidor como também naturaliza esse comportamento. Marcuse inteligentemente disse que, no capitalismo de hoje, a indústria cultural muitas vezes viria a substituir a lei paterna. Como construir utopias e desejos coletivos se a cultura de massas justamente opera a partir da falta de autonomia individual? Trata-se de uma das tarefas fulcrais da práxis política hoje: construir uma coletividade que se baseie não num comportamento comumente associado às massas, de irracionalidade quase animalesca (no retrato de Freud) ou de rebanho (como já aparecia na obra de Nietzsche), mas sim num comportamento em que as individualidades, de egos fortes e críticos, não se tornem facilmente massa de manobra de uma personalidade carismática e autoritária, como demonstram os usos feitos pelo nazismo da técnica, mas possam antes se agregar em torno da construção de uma utopia comum de motivações emancipadoras.

Luciana Molina Queiroz. Mestra em Filosofia pela UFMG e doutoranda em Teoria e História Literária pela Unicamp.E-mail: lucianamqueiroz@gmail.com

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Itamar Freitas

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